“É tentador relegar o pós-modernismo ao armário de curiosidades da história, junto com a teosofia e o idealismo transcendental, mas ele infiltrou-se no mainstream das ciências sociais e humanas.” Edward O. Wilson (1998) por Daniel Lopes – Pense em um tema interessante e de extrema relevância. Pense em um autor com boa escrita. Agora pense […]
“É tentador relegar o pós-modernismo ao armário de curiosidades
da história, junto com a teosofia e o idealismo transcendental, mas
ele infiltrou-se no mainstream das ciências sociais e humanas.”
Edward O. Wilson (1998)
por Daniel Lopes – Pense em um tema interessante e de extrema relevância. Pense em um autor com boa escrita. Agora pense em como ele consegue arruinar grande parte de seu livro.
Este texto não é sobre a parte aproveitável de A TV no armário: A identidade gay nos programas e telejornais brasileiros, do jornalista e acadêmico Irineu Ramos Ribeiro, do Centro de Estudos e Pesquisa em Comportamento e Sexualidade. É, antes, sobre a parte inteiramente dispensável desta obra.
É impressionante como intelectuais promissores se deixam enredar em teorias da moda, por mais nonsense que sejam, e nos lugares-comuns de abordagens surradas e sem muita relação com a realidade. No caso de Irineu Ribeiro em A TV no armário, a base teórica é o pós-modernismo / pós-estruturalismo / construcionismo / desconstrução / Estudos Culturais. Como tal liquidificador poderia ajudar na análise dos preconceitos que gays sofrem na televisão brasileira, e como poderia ajudar a combater estereótipos, preconceitos e legislações injustas? Ou será que na verdade ele atrapalha a compreensão do problema e a busca por soluções?
Sua fundamentação teórica, Irineu expõe na Introdução e no primeiro capítulo (de quatro). Entre os autores que percorre brevemente, estão Gilles Deleuze, Félix Guattari, Stuart Hall e as feministas radicais Teresa de Lauretis e Judith Butler. Todos devidamente versados e influenciados pelo mestre Foucault. Na abertura do capítulo 1, “Limiar dos gêneros”, o autor escreve que “Nestes tempos pós-modernos, parece não fazer mais sentido falar do masculino e do feminino exclusivamente em termos biológicos”.
Nesse ponto como em tantos outros, os pós-modernos realmente acham que estão propondo algo de novo. Nunca vimos o masculino e o feminino exclusivamente em termos biológicos. Das sociedades pré-históricas, em que o papel da mulher na lida com plantas e animais pequenos era tido como indispensável para a sobrevivência do grupo, até a opressão feminina por fundamentalismos religiosos, raramente se levou em conta fatores hormonais.
A nota de rodapé na mesma página esclarece:
Refiro-me aqui à pós-modernidade segundo J. F. Lyotard, quando discorre sobre o saber nas sociedades mais desenvolvidas. O autor opõe a ciência moderna, legitimadora do consenso e da unanimidade, à ciência pós-moderna, calcada na “incredulidade em relação aos metarrelatos”, que aguça nossa sensibilidade para as diferenças, reforçando nossa capacidade de suportar o incomensurável.
O rodapé está escrito em código, para não chocar sensibilidades. “Incredulidade em relação aos metarrelatos” seria uma característica da “ciência pós-moderna”. “Metarrelatos” é um termo que os pós-modernos usam para designar “narrativas totalizantes”, como as teorias científicas, que em sua suposta arrogância não reconhecem o valor cognitivo de narrativas menos ou nada empíricas, como os mitos de origem. O certo é que tal coisa como “ciência pós-moderna”, se existe, não é ciência.
Algumas observações de Irineu são corretas. Por exemplo: “A homossexualidade [historicamente] nasce de um discurso médico, psiquiátrico, como uma patologia. E, o que é mais importante, como uma forma de identidade global que se impõe ao sujeito.” No entanto, o remédio pós-moderno empregado, que ele vê com bons olhos, foi na verdade um erro tremendo: “Tal análise será a chave para a teoria queer no momento de questionar qualquer forma de identidade.” A Teoria Queer, ela mesma fortemente influenciada por Foucault, diz que a orientação sexual de uma pessoa é um construto social e não tem nada a ver com a natureza humana.
Mas como assim, questionar qualquer forma de identidade? Essa poderia ser apenas uma força de expressão. Mas não é.
Os pontos básicos estão sintetizados na segunda metade de um parágrafo da Introdução:
Uma característica essencial da análise da sexualidade de Foucault e das interpretações pós-estruturalistas e queer decorrentes consiste em não considerar o indivíduo um sujeito autônomo cartesiano (“Penso, logo existo”), possuidor de uma identidade inata ou essencial, cuja existência independe da linguagem. O que casualmente os indivíduos afirmam como sendo o “eu” (ele próprio em si mesmo), não é senão uma ficção socialmente construída, um produto da linguagem e dos discursos específicos vinculados com as divisões do saber.
É o pós-modernismo em grande forma, com um jargão após o outro.
Felizmente para a causa da igualdade de direitos para os homossexuais, as teorias que guiam Irineu estão grandemente equivocadas. Elas possuem tantos erros e, se levadas a sério, prestam tamanho desserviço aos gays, que é até difícil saber por onde começar.
– Se o indivíduo não é um sujeito autônomo, fica implícito que suas necessidades e anseios só são dignos de atenção e consideração enquanto necessidades e anseios de um grupo; se eles não se conformarem ao padrão do grupo, pior para o indivíduo. Essa visão é anti-humana e paternalista. Alguém pode argumentar – como fez nosso amigo Otávio Dias ao ler a versão inicial deste texto – que o próprio direito é resultado da luta entre grupos e que quando, por exemplo, o movimento em defesa dos negros ganhou direitos ao longo da história, todos os negros daquela sociedade foram beneficiados. Concordo. Da mesma forma podemos citar os grupos em defesa da mulher. Mas em seus melhores momentos esses movimentos não apelaram para a negação do valor da autonomia do indivíduo (muito menos de sua existência), e fizeram de forma correta o apelo moral que cada homem e mulher discriminado deveria ter os mesmos direitos básicos que o resto dos membros da sociedade. Quando os grupos organizados de homossexuais conseguem defender com sucesso causas como a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, isso também representa uma vitória para cada homem e mulher homossexual. O que considero perigoso é a mudança de foco dos que devem ser os beneficiários das lutas (os indivíduos) para os grupos. Simone de Beauvoir disse certa vez: “Não deveríamos permitir a nenhuma mulher ficar em casa para cuidar de crianças. A sociedade deveria ser totalmente diferente. As mulheres não deveriam ter essa opção, precisamente porque se tal opção existir, muitas mulheres farão essa escolha.” Claro, se você não leva em consideração mulheres de carne e osso, com vidas e ambições distintas, por que deveria permiti-lhes a opção de percorrer um caminho que contrarie a imagem ideal da Mulher? Se uma pensadora do nível de Beauvoir cometia esses deslizes, imagine pessoas menos preparadas e atoladas até a testa no pós-estruturalismo.
– Se o indivíduo não possui “identidade inata ou essencial”, nenhum homossexual poderá dizer que não escolheu tal condição e que apenas é e exige respeito. E não terá razão de se ofender quando alguns evangélicos disserem que seu comportamento não é natural. Sem falar que as chances de sucesso de certa psicóloga transformar homo em heterossexuais são bem grandes.
– O que pensar da presença da homossexualidade em milhares de outras espécies? Que trata-se de um comportamento natural, profundamente influenciado pela biologia, certo? O homem pertence ou não ao reino animal? Pertenceu mas não pertence mais? A homossexualidade pode ser inata em outras espécies, mas não na nossa? Mas fazer o que, se, para falar da homossexualidade, Teresa de Lauretis e Judith Miller – “duas pesquisadoras que se apoiam em teorias feministas e no chamado pós-estruturalismo” – “buscam negar qualquer resquício de uma base natural para a identidade individual ou de grupo”?
– E será que essas teóricas acham que também a heterossexualidade obedece apenas a injunções sociais, e não a necessidades biológicas? Uma pista é dada por (ela de novo) Teresa de Lauretis, que, como explica com entusiasmo Irineu Ribeiro, “analisa a heterossexualidade como uma instituição sócio-histórica e, por isso, contingente, não natural, não universal.” E eu que achava que se não fosse por alguns milhões de anos de relacionamentos heterossexuais hoje não haveria qualquer grupo social para impor sua hegemonia sobre o outro, pelo simples fato de ambos não terem vindo a existir.
– Por fim, o “eu” como “produto da linguagem e dos discursos específicos vinculados com as divisões do saber” não que dizer absolutamente nada ou qualquer coisa.
Ainda na introdução, Irineu, influenciado por “outros autores”, se pergunta o que aconteceria se o “To be or not to be” shakespeareano fosse traduzido para o português, não como o “Ser ou não ser” usual, mas como “Estar ou não estar”. Sim, ele quer dar ares de diversidade sexual à frase. Através dessa breve exploração literária, ele chega à seguinte afirmação: “O ser humano não é nada definitivamente, ao contrário, está sendo”. Frase com muito pouco de verdade em relação à sexualidade, que não é a mesma coisa que gosto culinário ou preferência partidária. Um estudo sobre a eficácia dos esforços para mudança da orientação sexual (SOCE na sigla em inglês) empreendido no ano passado pela Associação Psicológica Americana concluiu que o sucesso de tais esforços é “improvável”, não obstante o fato daqueles que se submetem ao SOCE geralmente terem “pontos de vista religiosos fortemente conservadores”, que é o que os leva a tentar mudar a orientação sexual. Mais informações no press release da associação e, com análises de outros estudos, no site do departamento de psicologia da Universidade da Califórnia.
Além do que, novamente: se fosse verdade que o homossexual apenas “está sendo” (porque tenho certeza que Irineu não quis dizer que só os heterossexuais é que ainda “estão sendo”), não haveria por que se indignar com os intolerantes que dizem que, com um pouco de esforço, o gay pode “deixar de ser”.
Irineu lembra que Judith Butler disse que não podemos ver a humanidade como se aprisionada no binarismo homossexual-heterossexual, porque existe “uma gama de comportamentos variantes” que não se enquadram a um ou outro, e isso está correto; para muitas pessoas, a orientação sexual não é empecilho para explorar novos horizontes. Mas tal constatação não parece ser suficiente, e tanto Butler quanto Irineu defendem que, do mesmo modo que uma drag queen interpreta a masculinidade/feminilidade, um homem e uma mulher heterossexuais apenas se “fantasiam” de homem ou de mulher. “Ninguém é, de fato, 100% heterossexual ou 100% homossexual”, escreve o autor.
Mas, jogos de linguagem à parte, você não diria que 100% heterossexual é aquele indivíduo que sente atração apenas por pessoas do sexo oposto? E 100% homossexual, aquele que só sente atração por pessoas do mesmo sexo? Então, sim, claramente uma enorme quantidade de pessoas é 100% hetero ou homo. Pessoalmente, conheço poucos homossexuais que estimariam em mais de 0% as chances de virem a ter um relacionamento afetivo-sexual com pessoas do sexo oposto. O mesmo raciocínio vale para os heterossexuais (inclusive eu próprio, se os teóricos de fins do século 20 me permitem dizer que me conheço bem). E apesar de saberem pouco ou nada da teoria dos construtos, essas pessoas continuam vivendo suas vidas sexuais. Mas essa é apenas a realidade, e a realidade não é empecilho para os voos vertiginosos do pós-estruturalismo e que tais. Além do que, essa conversa de checar no mundo externo a veracidade de alegações lembra aquela velhacaria que os pós-modernos (“a rebel crew milling beneath the black flag of anarchy”, definiu E. O. Wilson) abominam, a “ciência moderna”.
Pelo final do capítulo 1, Irineu escreve que
(…) a perspectiva pós-estruturalista não identifica como válidos os pressupostos universais criados pelo Iluminismo e rejeita a crítica tradicional. Está pautada na hiperdesconfiança, na hipersuspeita. É uma crítica da crítica e, por isso, é tão incômoda.
A verdade é bem menos pomposa que isso. O pós-estruturalismo/modernismo incomoda sim, mas incomoda os pesquisadores sérios. Isso porque essas teorias confundem desnecessariamente a cabeça de alunos, desperdiçam energia e raramente guardam alguma lógica, sequer interna; ao invés de explicarem com clareza a realidade, negam a própria existência desta como algo mensurável e exterior a “narrativas”, e se perdem em textos crípticos acessíveis por completo apenas aos iniciados na cabala. Note-se ainda 1)que a “hiperdesconfiança” e a “hipersuspeita” dos pós-estruturalistas só desconfia e suspeita dos corpos de conhecimento e modos de pensar pré-pós-modernos, a forma como encaram os devaneios uns dos outros sendo isenta de qualquer ceticismo sério; e 2)a tragédia que representa o fato de supostos porta-vozes de movimentos de emancipação rejeitarem com tamanha facilidade a herança racionalista do Iluminismo.
O fato é que homens e mulheres não são cem por cento iguais comportamentalmente. Sistemas reprodutores e hormônios não são apenas detalhes. O homem é mais propenso a competir usando violência e tem a mente mais hábil para lidar com espaço e objetos tridimensionais; a mulher experimenta as emoções básicas com mais intensidade e tem relações sociais mais íntimas (Pinker, 2004). Da mesma forma, acumulam-se evidências de que genes e estrutura cerebral têm influência considerável para que uma pessoa venha a ser homo, hetero ou bissexual. Admitir isso não tem nada a ver com chancelar estereótipos e nem impede a luta por direitos iguais: a orientação sexual de uma pessoa é algo extremamente natural, e propor a “cura” de um homo ou bissexual não faz sentido moralmente (não o faria ainda que a orientação fosse resultado apenas de decisão própria) nem tem base científica.
Diferença não implica desigualdade. Os mesmos estudos que nos permitem enxergar as diferenças entre homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, também nos colocam frente a traços que nos unem a todos – mesmo nível médio de inteligência, mesmas emoções básicas, capacidade de sacrifício em prol da vida de filhos biológicos ou adotivos, etc. –, proporcionando uma base racional sobre a qual fundar a luta por igualdade de direitos.
Por outro lado, uma mentira não é uma mentira menor apenas porque pensa servir a uma boa causa. Como lembra Steven Pinker em Tábula rasa, se grupos progressistas como os de liberação feminina e homossexual fizerem questão de basear seus movimentos em teorias sobre o ser humano que, em vista das descobertas da ciência, são cada vez mais duvidosas, tão logo o público tome conhecimento desses fatos, as causas correrão o risco de cair em descrédito.
A boa e velha ciência, através dos estudos sobre a natureza humana, é hoje mais do que nunca uma aliada indispensável de quem deseja a igualdade de direitos para mulheres, homossexuais e outros grupos, e o fim de qualquer preconceito. O pós-estruturalismo, pós-modernismo, desconstrucionismo e outros eventos da moda, são amigos da onça.
::: A TV no armário: A identidade gay nos programas e telejornais brasileiros :::
::: Irineu Ramos Ribeiro ::: Edições GLS, 2010, 136 páginas :::
– LEIA TAMBÉM –
Sobre a natureza humana e sua negação:
::: Tábula rasa: A negação contemporânea da natureza humana :::
::: Steven Pinker ::: Companhia das Letras, 2004, 672 páginas :::
Sobre pós-modernismo e ciência:
::: Fashionable nonsense: Postmodern intellectuals’ abuse of sciense :::
::: Alan Sokal e Jean Bricmont ::: St. Martin Press, 1998, 190 páginas :::
Sobre as querelas de setores da esquerda acadêmica com a ciência:
::: Higher superstition: The academic left and its quarrels with science :::
::: Paul R. Gross e Norman Levitt ::: Johns Hopkins University Press, 1997, 348 páginas :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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