Quando, afinal, acaba essa Copa?
A sensação é a de um cidadão ateu de um país convertido ao fundamentalismo. Ou ateu habitante de um país de fundamentalistas subitamente alçados ao poder. As emissoras de TV convocam insistentemente os fiéis à oração; amigos que antes o tratavam cordialmente passam a condenar seus comentários de infiel; seu convivío social é ameaçado pela incapacidade de seguir as cerimônias e rituais que todos esperam que você siga.
A Copa do Mundo nem começou e, como nas coberturas de viagem presidencial ou das reuniões da OMC, já cansei com a preparação. Me encheu a paciência, espero fervorosamente que acabe logo. Não me arrisco a dizer isso em ambiente cheio, por medo de chicotadas, apedrejamento e crucificação no adro do templo, para servir de exemplo aos outros sacrílegos.
Já contei meu drama de avesso a futebol, não me queiram mal, tenham pena de mim e de meu inferno particular. Mas escrevo esse texto como pecador compulsivo; sei que serei excomungado por quem o ler até o fim.
Vejo a pobre Fátima Bernardes ao vivo, madrugada gelada em Johanesburgo, explicando que para cobrir uma Copa é preciso ter credencial, e que ela… já providenciou a credencial que usará. O Irã ameaça mandar navios para romper o bloqueio de Gaza, há crises nas campanhas de Serra e Dilma, a Márcia Tilburi descobre insuspeito conteúdo revolucionário na Lady Gaga, experiências tocantes de educação sacodem o Piauí e, nos noticiários, metade do tempo é dedicado à Copa do Mundo. Dedicado a repórteres que, ainda sem Copa, dedicam-se ao que minha mãe, vendo novela arrastada, chamava de “encher linguiça”.
(“Momento histórico em sua carreira”, empolgou-se o Renato Machado, no Bom Dia Brasil, ao repórter que percorreu o sítio arqueológico onde milhares de turistas vão ver o que restou dos australopitecos que mandavam no pedaço, há milhões de anos. O que um apresentador não faz para manter tremulando o lábaro auriverde.)
Eu entendo, claro, a beleza da coisa, o balé dos jogadores em campo; as histórias de superação, física e social; o exemplo dos jovens egressos de comunidades carentes transformados em ídolos mundiais (e fonte de renda para moças salientes); entendo o prazer de participar de uma empolgação coletiva… Mas o desespero, a agonia, a histeria dos mujahedins de camisa verde-amarela berrando pela pátria de chuteiras, dessa Igreja fui excomungado quando criancinha.
Dá para adivinhar, claro. Aquele moleque de óculos fundo de garrafa e pernas cambetas nem sequer podia cabecear uma bola sem o risco de quebrar as grossas lentes verdes e ver o jogo transformar-se em uma confusão de borrões semoventes. Nunca seria um craque, acabou não sendo nem jogador de pelada de fim de semana, não pôde ser torcedor, por despeito, quem sabe. Fanatismo é coisa que se passa de pai para filho; não haveria hereditariedade de torcida com um pai que, por diversão, torcia pelo Calouros do Ar no Ceará, só porque o time jamais havia vencido um torneio que fosse. (Aliás, não deve ser à toa que ao procurar por “fanatismo” no Google Images, boa parte das imagens seja relativa a futebol).
Mas apelo para a lógica da coisa (embora seja ilógico apelar para isso quando estamos falando de religião): o que é exatamente a “seleção brasileira”? Aqueles rapazes nascidos no Brasil que jogam em times europeus em troca de somas de seis a sete dígitos, em Euros? Certamente o que faz a Seleção não é a camisa verde e amarela; essa quem estava usando, dia desses, era a Tanzânia, ou o Zimbábue, sei lá.
Não pode ser a nacionalidade; se brasileiro no time caracterizasse a seleção, tão adequado quanto torcer pela seleção de Dunga, da qual ninguém gostou, seria vibrar com a de Parreira, técnico que já trouxe título ao país e agora comanda um escrete cheio de sul-africanos com a alegria de viver que só a Bahia tem.
Durante muito tempo, tentei consolidar uma teoria sociológica: o futebol ocuparia, na alma nacional, o vazio deixado pela falta de participação política, pela falta de condições de uma participação política decente. Alijado das decisões, pelas elites do país, pelas máquinas partidárias, pela frustração e pela necessidade de ganhar o pão de cada dia, o brasileiro médio teria encontrado no futebol um destino para sua necessidade de participação, de intervenção, de empolgação. (Não vale lembrar o Luis Fernando Verissimo para destruir minha tese sobre “brasileiro médio”; é evidente no caso dele que, obrigado a viver nos EUA, aferrou-se a qualquer coisa que confirmasse sua essência gaúcha – nem que essa qualquer coisa fosse o Internacional).
Se não pode opiniar sobre o PAC porque as informações que tem são confusas, truncadas, insuficientes, qualquer brasileiro pode, porém, deitar seu verbo sobre a escalação do Ganso – que permite, inclusive, melhores piadas de duplo sentido. Se não sabe o que se passa com o orçamento da educação nem com as diretrizes para o ensino superior, o torcedor sabe, porém, exatamente o que acontece com o time do Corinthians (ou do Flamengo, ou do Botafogo) e a solução ideal para superar uma eventual má fase (que, no caso de um desses times parece só se resolver com reza brava. Falo para provocar, não tenho a mínima ideia da situação de nenhum dos três).
Eu tinha também uma tese psicológica, que apelava, claro, para o Freud, embora o austríaco ande desmoralizado pelas revisões multiculturalistas que andaram fazendo da obra machista dele. Não sei qual era o time do velho, mas ele dá elementos para explicar essa estranha sensação de delírio coletivo que vejo tomar conta dos ambientes que frequento.
Sabe o Mal-Estar na Civilização? O livro onde ele fala daquela coisa de “sentimento oceânico”, que cada indivíduo sente quando está confortavelmente alojado no ventre materno, sem preocupações com a dívida na padaria ou com as contas de telefone; aquilo que o pobre ser humano sente ter perdido quando é empurrado para a luz, a fome, o frio e o desconforto, e que passa a buscar pelo resto da vida, nem que seja no colo da Luana Piovani, sem jamais encontrar. Pois é, a torcida traz de volta a sensação de abrigo, pertencimento, aquele calor gostoso do útero materno. A torcida organizada, claro, seria uma espécie de líquido amniótico com potencial tóxico.
É uma situação confortável, essa da torcida, a menos que seu time esteja ameaçado de cair para a segunda (ou terceira) divisão – e, nesses casos, o torcedor é obrigado a replicar a dolorosa situação do nascituro ao descobrir que nem no útero da própria mãe está a salvo de alguma ordem de despejo.
Mas, nos momentos em que os cartolas, os técnicos, os adversários ou os malditos pernas de pau do time não atrapalham, o torcedor pode sentir-se entregue à divina tarefa de viver, simplesmente, a existência gozosa de um desejado ser humano em gestação, absorvendo o que quer que entre por seu cordão umbilical e deixando que alguma força superior se encarregue dos dejetos, assim como os torcedores imaginam que algum misterioso ser sobrenatural deve limpar a porcalhada deixada por eles nos estádios.
E enquanto a avassaladora parcela da população se deixa levar pela onda religiosa da Copa, movida por não sei quais pulsões sociológicas, antropológicas ou psicológicas (em alguns casos psiquiátricas), o não-torcedor, esse pobre pária, é um herege que se arrisca a todo momento por caminhos repletos de fiéis em estado de exaltação. O ateu, o sujeito que não torce, reza mais que o William Bonner para ver a Fátima Bernardes logo de volta para casa, porque o regresso da moça acompanhará o fim desse purgatório, representará a redenção da minoria oprimida que não aguenta mais tomar café da manhã tendo à frente a careca do Escobar, aquele repórter esportivo gente boa do Bom Dia Brasil.
E, olhando pelo lado fanático da coisa, uma volta antecipada da seleção será o fim da carreira de Dunga como técnico. Não é isso, afinal, o que toda a torcida deseja, caramba? Ou não peguei mesmo o espírito da coisa?
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