por Luiz Biajoni
E se eu te convidasse para ver uma peça com atores mirins? Hein? Você ia pensar duas vezes, certo? E se eu dissesse que esse grupo é de Iracemápolis, interior de SP, cidadezinha com vinte mil habitantes? Sua dúvida iria aumentar, né?
Podia dar a você algumas informações que talvez despertassem o seu interesse: o grupo tem meia dúzia de peças no currículo, fez sensação no Festival de Curitiba e foi convidado, como hors-concours, para o Festival Nacional de Teatro de Limeira. Interessou?
Olha só: o maior sucesso do grupo foi Macbeth. Ah, você pode me dizer, crianças entre oito e doze anos, com sotaque caipiracicabano, interpretando Shakespeare? Sem maiores informações talvez você abandonasse de vez a ideia de me acompanhar ao espetáculo, certo?
Pois você deixaria de conhecer o fantástico trabalho do Núcleo de Vivência Teatral, trupe de crianças que já montou Machado de Assis, Guimarães Rosa e Tchekov, além de duas adaptações viscerais e subversivas de O Mágico de Oz e de Chapeuzinho Vermelho.
Por trás do grupo – ou à frente dele – está Daniel Martins. Graduado em Artes Cênicas, Línguas Portuguesa e Inglesa e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina, Martins tem dois livros publicados, um deles sobre as semelhanças nas obras de Samuel Beckett e Guimarães Rosa.
O diretor do grupo, bancado pela prefeitura de Iracemápolis, tem um talento especial para identificar, motivar e treinar pequenos atores, fazendo com que crianças ou pré-adolescentes sejam capazes de decorar falas enormes, caprichar nas expressões faciais sem caricatura ou exagero e desenvolver uma empatia singular com o público. A empatia está diretamente relacionada ao espaço onde as peças acontecem; o pequeno centro cultural de Iracemápolis, com cadeiras espalhadas no mesmo nível dos atores, a uma distância mínima. Quem senta nas cadeiras da última fila, muitas vezes precisa ficar em pé para acompanhar alguns detalhes. Existe uma proximidade diferente ali. A empatia vem também, é claro, do fato de serem crianças. Torcemos para que tudo saia bem, para que os atorezinhos não errem as falas, não se percam nas deixas – mas tudo flui tão estranhamente bem e incrível que, num determinado momento, simplesmente nos esquecemos que são crianças ali.
A maravilha do trabalho de Martins também tem a ver com sua visão geral das obras encenadas. Fã de boa música, ele costura os trabalhos com referências musicais inusitadas. O impacto para os espectadores mais, digamos, “antenados” é de pura satisfação. Para o público geral, há o interesse e até o estranhamento. Para as crianças, evidentemente trata-se de uma descoberta. Assim, a trilha-sonora de Macbeth, que foi encenado pela primeira vez em 2008, misturava Laurie Anderson, Radiohead, Philip Glass e The Verve. Em A Hora e a Vez de Augusto Matraga, em meio a tiros, mortes e abusos sexuais, tínhamos Almir Sater e Sepultura, Silvio Caldas e Chico Science. O penúltimo espetáculo, uma visão “meninos versus meninas” de Chapeuzinho Vermelho tinha trilha de indie rock com Weezer e Belle & Sebastian – entre outros.
O ápice do trabalho de Martins com a criançada de Iracemápolis, creio eu, é a nova peça: A Feiticeira. Baseada em oito contos de Tchekov, mostra a exploração e a submissão forçada da mulher. É denso, cheio de silêncios monstruosos e tem até um infanticídio em cena, para horror supremo da platéia – tudo com trilha sonora de Billie Holiday e Robert Johnson, entre outros da mesma linha. Assim como aconteceu com o sangrento Macbeth, prevejo que algumas pessoas irão protestar contra a violência em A Feiticeira.
O ator é o veículo para o personagem, para a história. Algo errado em crianças encenando tragédias? Há tragédia, dentro da dramaturgia mundial, que supere o que vemos todos os dias em nossos jornais? A experiência de Daniel Martins, além de mostrar que crianças podem ter talentos insuspeitos, não aponta para uma fuga do realismo através da literatura – que recria a realidade? Uma espécie de simulacro do real – com crianças que ainda serão, num futuro próximo, os atores de uma realidade, hãn, mais real?
Será que Daniel Martins não mostra, para essas mesmas crianças, atores e espectadores, que a violência gráfica dos videogames, tão direta e sangrenta, é boba e chata perto da violência real das letras, discursiva e cerebral?
Dúvidas que surgem depois da aceitação do convite: vamos ver um espetáculo de teatro infantil?
Se for com os incríveis atores de Iracemápolis, vá sem medo. Ou com.
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No YouTube dá pra ver alguma coisa da criançada de Iracemápolis (o que, é claro, não substitui ver pessoalmente).