Um livro sinuoso como a correnteza

por Gustavo Melo Czekster (07/06/2012)

Nos contos do gaúcho Olavo Amaral, a água é uma presença constante

"Correnteza e escombros", de Olavo Amaral

Apesar da sua onipresença, a água é um líquido misterioso. Mais de 80% do planeta é formado por ela, mas insistimos em chamá-lo de Terra. Os corpos humanos possuem a água como um dos seus elementos mais importantes, mas a preferência por outras das suas roupagens (cerveja, vinho, café, refrigerante) é universal. O leite que nos liga à mãe é formado por sua água, a qual passa para o organismo do recém nascido. Ela pode ser sinuosa na sua forma líquida, dura na sua porção sólida, invisível acaso esteja no estado gasoso. Devemos a nossa vida à água, mas o ditado afirma que viemos do pó e para ele voltaremos.

No livro de contos Correnteza e Escombros, do autor gaúcho Olavo Amaral, a água é uma presença constante, assombrando as histórias com o seu vulto sempre sugerido e raramente mostrado. A capacidade que a correnteza possui de contornar obstáculos – e, acaso não consiga, destruí-los e arrastá-los consigo na forma de escombros – é o mote do livro. Todos os personagens experimentam situações em que é necessária uma adaptação e, quando não conseguem ou não podem realizá-la, preferem destruir ao invés de se afastar. Em “Orinoco”, o rio enlouquece os estrangeiros que chegam a uma selva, a voz cristalina prometendo divinizar aqueles capazes de sobreviver às suas águas. Da mesma forma, em “Voadores”, cidades vizinhas, separadas por um abismo tanto físico quanto psicológico, enfrentam-se por causa das suas concepções de mundo, enquanto dois habitantes, um de cada lado, tentam criar uma ponte de compreensão entre mundos distintos, apesar da inviabilidade de escapar do contexto social e cultural em que se encontram.

Alguns contos se aproximam da fábula, como o citado “Voadores”, onde os personagens e os locais sequer são nominados, insinuando uma situação que poderia ocorrer em qualquer lugar do mundo, a gênese de todas as divisões já criadas pela Humanidade. O conto “Precisamos seguir em frente” é outro modelo desta abordagem, pois os personagens caminham ao longo de uma praia deserta, em uma jornada inacabável e diariamente retomada, remontando ao mito de Sísifo. De certa forma, a inexorabilidade da sua caminhada – e a sensação de que não sabem o motivo pelo qual a realizam – também é uma característica da correnteza, que possui seus próprios motivos e caprichos para escolher o local por onde deverá singrar. É inútil lutar contra o seu curso, o qual se confunde com o próprio Destino, e cabe aos personagens se adaptarem.

A linguagem é segura e madura. Olavo Amaral sabe a história que deseja contar e não perde a mão na narrativa. Contudo, em algumas vezes os seus contos parecem se prolongar e a tensão narrativa desvanece um pouco, mas, em seguida, é retomada. Percebe-se que alguns contos chegam próximo de serem considerados novelas, pois existe um certo excesso de personagens e de situações que poderiam ser resumidas sem que a história perdesse o impacto desejado. No conto “Trezentos e um”, o palestrante de um congresso se hospeda em um hotel, passando a ser incomodado pelo barulho de sexo feito no quarto acima. Curioso, resolve investigar a situação, deparando-se com uma série de situações insólitas, até desembocar no mais absoluto surrealismo. Ainda que se entenda que o conto deseja criar suspense no leitor, atraindo-o para a situação vivenciada pelo personagem, o excesso de cenas e de resoluções seria mais condizente em uma novela. Por ser uma narrativa breve, o conto deve comportar uma concentração dos seus efeitos sob pena do leitor perder o interesse. No entanto, graças à linguagem sempre renovada e límpida, não se percebe nenhum rompimento ou desgaste no fluxo narrativo, somente uma perda da tensão que a própria história deveria proporcionar. Seria algo a evitar no futuro – ou escrever uma novela, pois capacidade literária neste sentido o autor possui de sobra.

-- O autor --

Os contos mais interessantes acabam sendo os curtos. Nestes, a estranheza é rapidamente definida, não sendo construída aos poucos, e o conflito torna-se claro desde o início. Em “Superfície”, o personagem sai do aquário onde residia como um peixe e assume a vida e as responsabilidades de um ser humano, passando a ser constantemente assombrado pela água de onde escapou, mas demonstrando adaptação à sua nova realidade. A dimensão exígua do conto e a sua tensão são palpáveis, assim como a narrativa é verossímil, em especial por que não poucas pessoas já se sentiram deslocadas como se tivessem sido retiradas do seu verdadeiro ambiente. Destaque para o momento final, quando o personagem encontra vazão para a sua angústia, assim como as alegorias para o seu desconforto e as lutas para entender o que estava acontecendo. No entanto, a citação no início do conto de um livro de Julio Cortázar estraga um pouco a estranheza para quem já conhece a história de onde saiu a citação, mas é justificável pelo teor da trama.

Outro destaque positivo do livro é a força das imagens criadas. A narrativa não contém nenhum elemento de inovação na sua forma ou na estrutura, mas justamente por tal motivo os contos ganham verossimilhança. As frases não se destacam umas das outras. As imagens surgem ao natural, descrevendo a sensação vivida, sem parecer falso. Ao mesmo tempo, a segurança das palavras utilizadas permite que o leitor entenda exatamente o que está acontecendo, sem a possibilidade de estabelecer metáforas ou analogias inapropriadas.

Exemplo desta força nas imagens são as alusões feitas ao leite. A forma com que o autor enxerga este líquido vital dá a substância para “Dias de Plexo Solar”, um dos melhores contos do livro, onde um casal se vê envolvido em um triângulo amoroso com uma vaca. O leite adquire vários significados dentro do conto, pois passa desde alimento até jogo de sedução, chegando a se tornar elemento erótico. É um conto que atinge o leitor de várias formas, ainda mais pela utilização indiscriminada de imagens, sons e cheiros, criando o final “surpreendente, porém inevitável”. De maneira idêntica, as cores de um casal cujas linhas traçadas em um mapa se entrelaçam no meio das ruas de Porto Alegre (“Hidrocor”) é outro exemplo da força das imagens gerada pela narrativa leve do autor, pois o amor surge de forma quase inocente, como se os personagens fossem duas crianças, mas a chuva que cai transforma as cores, até então apartadas, em uma única sequência misturada. É a chuva, ou a água, unindo as pessoas, assim como faz estranhos conversarem embaixo de proteções nos dias de temporal.

Correnteza e Escombros é um livro de beleza plástica. Em alguns momentos, a linguagem engana o leitor, fazendo-o pensar que está lendo sobre trivialidades, mas, por trás desta superfície aparente, se esconde um oceano vibrante de sensações e significados. Os elementos fantásticos vivenciados pelos personagens aderem ao seu cotidiano de forma intensa, redimensionando as suas vidas, forçando-os a adotar novas visões sobre o mundo que os cerca. Já dizia Heródoto que “nenhum homem atravessa o mesmo rio duas vezes”. Da mesma forma, nenhum leitor escapará indiferente ao livro de Olavo Amaral, e todo aquele que tocar no seu rio narrativo, acabará tendo que atravessar outras vezes o mesmo caminho, sempre encontrando uma narrativa nova e fluida a esperá-lo.

::: Correnteza e escombros :::
::: Olavo Amaral :::
::: 7 Letras, 2012, 140 páginas :::
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Gustavo Melo Czekster

Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.

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