As reflexões de Lawrence começam na literatura, mas geralmente acabam se deslocando para outras áreas
Existiu uma época em que a crítica literária era exercida exclusivamente por escritores. Acreditava-se que, por conhecerem os meandros da criação, eles seriam os maiores indicados para analisar a obra de outros colegas. Não existia nenhum aparato crítico e, por este motivo, as considerações feitas sobre a obra de outros autores eram de cunho subjetivo. Por este motivo, quando os escritores opinavam sobre as obras alheias, acabavam refletindo sobre o próprio trabalho, comparando-o com a obra do outro autor. Por conseguinte, muitos dos textos críticos escritos no passado por outros escritores tratam menos do texto do outro e mais do próprio trabalho, deixando a crítica duplamente interessante.
Em tempos no qual a crítica literária ainda não encontrou o caminho que une o mundo acadêmico com o grande público, a publicação de Estudos sobre a literatura clássica americana, de D. H. Lawrence (1885-1930), preenche um vazio crítico de extrema relevância. Os pensamentos do escritor inglês, autor de clássicos como Mulheres apaixonadas e o escandaloso O amante de Lady Chatterley, são atuais e ainda despertam reflexão. Ao abordar a obra de luminares como Herman Melville, Nathaniel Hawthorne e Edgar Alan Poe, ele trata de questões e problemas não só de estilo, mas também presenteia o leitor com comentários ferinos e cruéis. O resultado é delicioso. Impossível não ler o mau humor de Lawrence e as suas diatribes contra a América, contra os americanos, contra a liberdade, contra o amor, contra a idealização do bom selvagem e contra uma série de outros consensos sociais sem sentir um sorriso surgir nos lábios.
Não é todo dia que se lê um livro de crítica literária em que Benjamin Franklin é chamado de “sabidinho”, “banal”, “ingênuo” ou o “mais completo cidadão que já praticou atividades venéreas”. Nathaniel Hawthorne é chamado de “mimoso”, “homenzinho adorável de olhos azuis” e “ironista desatinado”. A verve sarcástica de Lawrence é endereçada a cada escritor que analisa com especial crueldade. Ele elenca uma série de detalhes de contos de Edgar Alan Poe para considerá-lo misógino e com uma visão distorcida do amor. Reclama da eterna insatisfação de Melville, que procurava uma sociedade não tocada pela civilização, mas, quando a alcançava, preferia a idealização sonhada do que a realidade. Ridiculariza impiedosamente Walt Whitman e o seu “sofrimento por amor apaixonado”, falando que é uma literatura “chuif-chuif-chuif” e que somente locomotivas podem sofrer por amor apaixonado, pois carregam uma pressão imensa no interior do peito metálico.
O estilo de Lawrence, dotado de parágrafos curtos e frases impactantes repletas de efeitos gráficos, como reticências, sinais de interrogação sobrepostos e muitos sinais de exclamação, deixam a crítica literária viva e participante. Percebe-se que o autor se entrega com fúria ao mister de analisar a obra dos colegas escritores, e muitos dos seus textos podem ser lidos como libelos ou discursos prontos para serem apresentados em um debate. É difícil ver tamanha paixão e entrega em uma obra crítica. Percebe-se que as opiniões de Lawrence são fruto de uma cuidadosa leitura e que ele estaria disposto a defendê-las até a morte. Nos dias atuais, orgulhosa da sua pretensa neutralidade, a crítica literária se esconde atrás do politicamente correto, vendo as obras literárias como produto de um tempo, sem atentar para a sua permanência. Neste cenário, ler Estudos sobre a literatura clássica americana acaba se revelando uma surpresa, um inesperado alento de vento novo a tocar as obras de escritores já consolidados.
As reflexões de Lawrence começam na literatura, mas geralmente acabam se deslocando para outras áreas. Por exemplo, a análise da obra de Hawthorne inicia tratando de A letra escarlate. No entanto, o livro é somente um pretexto para o escritor inglês abordar o pecado e como ele mora somente na consciência do ser humano que o pratica. Partindo desta concepção, Lawrence afirma que o pecado em si não existe, e sim a forma com que a sociedade se comporta em relação às transgressões morais. Por emanar de uma sociedade naturalmente imoral, o pecado seria o estado natural do homem, servindo mais como punição infligida pela própria pessoa do que como um ato divino.
Quando trata da obra de Hector St. John de Crèvecoeur, o escritor e ensaísta concentra a sua análise nas discrepâncias do fato de que, para escrever uma obra que saúda a natureza e os índios, o autor precisou abandonar o cenário idílico descrito para ir morar na corte francesa, ou seja, na civilização. Graças à sua ironia mordaz, Lawrence desconstrói o mito de formação americano com alguma virulência, afirmando que o autor que fala disto foi incapaz de conviver com o próprio cenário que idealizou. Nas entrelinhas, parece que Lawrence o considera um covarde, pois Crèvecoeur abandonou a mulher americana e o filho recém-nascido para a sanha dos selvagens, voltando para a Europa, onde passou a escrever sobre os dois, em uma idealização de amor irrestrito que não correspondeu à realidade.
Ainda que as críticas feitas sobre as obras dos autores americanos sejam pertinentes, o viés adotado por Lawrence às vezes incomoda. Ele aborda a vida do autor em conjunto com a sua obra, vendo os pontos de divergência e de convergência entre ambos. A obra deveria se bastar por si só. No entanto, a análise feita pelo autor inglês parte de elementos pessoais – o vício em drogas e em bebida de Poe e o puritanismo de Franklin, por exemplo – para esmiuçar os seus livros, procurando relações entre o dito na obra literária e a experiência vivenciada pelo seu criador. Em alguns casos, esta comparação acaba soando forçada. Em tese, a ficção pode até possuir um início na realidade do seu autor, mas não somente nesta, e sim na sua observação do mundo que lhe cercava. A crítica literária se ocupou por muitos anos deste assunto, sendo que, desde as teorias literárias que defenderam a “morte do autor” e a capacidade da obra de conter um micromundo de realidade distante do seu demiurgo, tal abordagem tornou-se defasada.
Mais incômodo que este viés crítico é o constante ataque que D. H. Lawrence faz contra a América. Pode soar estranho que, em um livro onde se analisa escritores americanos, o seu país de origem seja ridicularizado e atacado em quase toda oportunidade possível, mas é o que ocorre. Com o intuito de provar que a América seria uma espécie de “prima pobre” da Europa, Lawrence questiona se os americanos seriam realmente livres ou se esta liberdade não é um ideal que ainda pretendem atingir. Para tanto, justifica que as pessoas realmente livres não teriam apreço às leis, à justiça e aos valores morais, pois pessoas livres devem se comportar fora de qualquer tipo de sociedade sob pena desta liberdade ser falsa. Ora, é uma visão assaz simplista da situação, com o aditivo de que nenhuma pessoa que queira viver em sociedade poderia ser, então, livre.
Distorcendo a História para que ela se encaixe nos seus propósitos, Lawrence menciona que os americanos saíram da Inglaterra para refundar a Europa no seio do Novo Continente, tarefa esta na qual estavam destinados a falhar diante da sua fraqueza moral. Lawrence ataca a democracia como melhor sistema de governo, ataca a natureza da América, ataca os índios e os colonos, considerando-os formas de vida inferiores. De tão frequentes, os seus ataques deixam o livro um pouco cansativo, assim como o autor soa despeitoso. No entanto, o paradoxo torna-se mais evidente do que nunca: se a América é tão ruim e com valores morais tão frouxos, além de possuir instituições copiadas da perfeição europeia, como a sua literatura conseguiu frutificar, tornar-se relevante e merecer os estudos realizados? Contudo, alguns ataques merecem maior consideração, em especial a estranheza que Lawrence tem pela velocidade americana e a capacidade que os seus cidadãos teriam de simplificar e menosprezar todo o mundo (como exemplo, ele cita o caso de um americano que, diante da Vênus de Milo, exclama “ah, esta obra está inacabada! O que podemos ver a seguir?”). Esta visão não mudou muito até os dias recentes, mantendo a sua verdade na forma com que os europeus enxergam os americanos.
Apesar das ressalvas, o livro que reúne os ensaios de D. H. Lawrence transborda atualidade. As suas reflexões merecem ser consideradas. A análise crítica dos escritores e de suas obras tornou-se um pouco datada, mas ainda desperta interesse, em especial pela capacidade que Lawrence possui de puxar um detalhe quase insosso do livro analisado e destacá-lo para justificar a sua visão de mundo. Conhecendo um pouco mais do autor pela forma com que ele se posiciona diante dos seus pares, a obra do escritor inglês ganha novas possibilidades de abordagem. Além disto, as tiradas sarcásticas de Lawrence, distribuídas generosamente no decorrer dos seus ensaios, faz com que a leitura de uma obra crítica se torne leve e dinâmica, assim como atrai curiosidade para a sua própria produção artística a fim de ver se a sua visão do mundo está exposta nela da mesma forma com que analisa os demais escritores. Como exemplo dos pensamentos espalhados pelo livro, destacarei um que demonstra muito bem as risadas capazes de surpreender o leitor nos momentos mais intensos da crítica: “Enquanto o homem tiver um traseiro, não há dúvida de que deve ser açoitado. Até parece que o Senhor o fez de propósito”. Esta observação irreverente caracteriza D. H. Lawrence, um homem acostumado à polêmica e sem papas na língua.
::: Estudos sobre a literatura clássica americana :::
::: D. H. Lawrence (trad. Heloisa Jahn) :::
::: Zahar, 2012, 256 páginas :::
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Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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