Mutatis mutandi (lat. mudar o que pode ser mudado)

por Lúcio Carvalho (08/06/2012)

Ter tido um filho com síndrome de Down não mudou a minha vida

1.

Há mais de cinco anos eu ganhei, saído de dentro da barriga da minha mulher e envolto em sangue e mucosidades, meu segundo filho. Ele nasceu com a síndrome de Down. No nascimento, havia apenas indícios disso, segundo a neonatologista que nos atendeu, mas era quase certo o diagnóstico. Faltava apenas a confirmação do exame de cariótipo, obtido do sangue de seu minúsculo calcanhar, que se confirmou ao fim de mais ou menos um mês.

Durante aquele primeiro mês de sua vida, quando pensávamos na possibilidade de que ele tivesse ou não tivesse o terceiro cromossomo no par 21, vivemos momentos de angústia, certamente que sim. Acho que tínhamos algum tipo de esperança de que o cariótipo não confirmasse aquele diagnóstico que, fatalmente, nos traria muitas dúvidas e a necessidade de conhecer melhor um assunto que ignorávamos por completo e que, se pudéssemos, continuaríamos a ignorar, não tenho ilusões quanto a isso. As pessoas — de um modo geral, não aquelas que estão envolvidas profissional ou emocionalmente — pensam e vivem dessa forma simplista, dançando conforme a chuva. É meio simplório dizer isso, mas é o mais próximo da realidade que consigo atingir.

Diagnósticos são temíveis, principalmente quando revelados diante de olhos ignorantes. Que fosse um erro de exame da pediatra, afinal ela apenas fundara sua suspeita num exame de aparência física. Poderia ser uma confusão ou outra coisa que não a realidade, a realidade de que nosso filho tinha mesmo nascido com a síndrome de Down. Mas logo percebemos que se tratava de uma angústia sem razão de ser. O que mudaria um exame desses e seu resultado? Na realidade dele, em seu futuro, muito pouco. Na nossa realidade, muito pouco também. Ali estava um bebê que, como todos os bebês, logo aprendeu a arte de dissipar temores, sem que ninguém o ensinasse. Dali em diante, o único que nos cabia era aprender a conhecê-lo e educá-lo, antes mesmo de imaginar que uma transformação intrínseca pudesse operar em nossa subjetividade, à revelia inclusive de nossa vontade.

Pois então. Passado todo esse tempo, tenho uma revelação a fazer: ter tido um filho com síndrome de Down não mudou a minha vida. Não consigo me imaginar nem como um privilegiado nem como um desafortunado. Não consigo olhar para ele e perceber nada que invoque piedade ou compaixão. Nem tampouco percebo sequer um traço angelical. Só vejo uma criança. Às vezes, uma criança doce e amorosa, às vezes um capeta ardiloso. Em qualquer das vezes, um sedutor barato com bochechas irresistíveis.

Meu filho mente. Ele faz manha. Birra. Ele finge sofrer para receber atenção. Mas quando ele ri, ri a valer e não há quem consiga não começar a rir também.

O dia em que percebi que meu filho mentia, tive um choque verdadeiro. Um dos “sintomas” ou características com o qual havia entrado em contato por terceiros a respeito desse grupo de pessoas, os “portadores” da síndrome de Down, nos informava que são anjos na terra, seres ingênuos e incapazes da mentira. Para alguns psicólogos, a mentira é uma elaboração complexa de raciocínio. Envolve o mentiroso ter consciência de uma realidade, falseá-la deliberadamente e checar o efeito de sua ação através da observação da reação do interlocutor. Foi um choque verdadeiro perceber que ele mentia, mas também um alívio, afinal quebrava ali duas falácias numa tacada só, a de que seriam diferentes em essência dos outros seres humanos e incapazes de pensamentos complexos, mesmo que expressos de forma não verbal.

Tive a grande sorte de ter tido uma experiência pregressa de paternidade. Já havia vivido esses “sintomas” com minha filha mais velha, que tem dois anos a mais que ele e que, às vezes, me parecer tardar até demais a superá-los. Os sintomas da infância. Imagino que, se seguirmos os “ensinamentos” de nossos filhos, muito logo perderemos o emprego e, se todos os pais também o fizerem, o mundo se tornará ainda mais caótico, apesar de que muito possivelmente mais feliz e poético. É por isso mesmo, aliás, que temos o dever de garantir às crianças o exercício completo da criancice na época de sua infância, para garantir a presença da verdadeira poesia entre nós. E para deixá-los brincar também, que é a sua forma peculiar de aprender a cultura na qual estão inseridos.

Às vezes, mais por estímulo externo, eu fico pensando se um ser humano pode mesmo transformar outro. Se um filho pode mesmo transformar um pai ou se, no fim das contas, não é mesmo o pai (e/ou a mãe) que vai moldar o filho, transformando-o pelo seu exemplo, hábitos, cultura. Lembro imediatamente de Kafka e seu personagem Gregor Samsa, cuja ânsia por transformação o levou a acordar um dia sob a casca e asas de uma abjeta barata. Buda, que esvaziou-se de si mesmo após longuíssima meditação e o desafio do medo, do próprio desejo e de alguns demônios que apareceram de última hora. Cristo, que supostamente se deixou matar pela humanidade inteira, expiando os pecados do mundo. Eu, que tive um filho com síndrome de Down. Ops! Eu?! Como assim? Será que fui mesmo, algum dia, objeto de alguma transformação? Por causa de meu filho? Qual o significado de uma afirmação como essa, afinal de contas? Por que é tão fácil encontrá-las nas palavras de pais e mães de crianças com deficiência, não necessariamente a síndrome de Down?

Significa que, ao termos um filho com deficiência, deixamos de ser quem éramos para nos tornarmos seres melhores? Que absorvemos automaticamente maior tolerância, respeito à diversidade, solidariedade e tantos outros valores dignos das mais nobres criaturas? Mas isso não seria um tipo de apropriação indébita de atributos do nascimento de um terceiro? Quando um filho com deficiência nasce, renascemos juntos? Será mesmo?, eu me pergunto. Será mesmo?

Uma reconfiguração moral completa, como num disco rígido reformatado? Significa que estamos diante de uma possibilidade inigualável de mudar a forma de ver o mundo e as outras pessoas? Não soa um pouco pretensiosa demais uma afirmação como essa?

Significa que, por conta própria, não precisamos sequer nos dar ao trabalho de rever preconceitos, atitudes, visões de mundo? Como então podemos querer convencer alguém de qualquer coisa com esse tipo de exemplo e postura? Se não tivéssemos esse filho, poderíamos continuar a ser quem éramos, mesmo que fossemos criaturas triviais ou coisa pior? Por que confirmamos que um filho com deficiência pode redimir ou potencializar nossos valores e essência?

E porque será que a transformação é aparentemente sempre positiva? Alguém nunca se tornou um pai ou mãe pior depois do nascimento de um filho com síndrome de Down ou outra deficiência? E aqueles pais que sumiram no mapa, deixando como herança apenas a carga genética e uma péssima lembrança para mães que enfrentaram sozinhas a criação de um filho? E aqueles que, como o caso do escritor norte-americano Arthur Miller, simplesmente repudiaram o próprio filho? E os anônimos que repetiram seu gesto, se reconhecerão numa metamorfose? Terão virado monstros? Terão sido sempre monstros?

Precisamos ter certeza mesmo que somos super-pais para não parecermos minimamente monstros? Será que quando nos outorgamos ou sentimos “super” não estamos implicitamente depositando em nossos filhos uma carga da qual eles não são titulares por excelência ou escolha? Não fica implícito que sua existência compete numa sobrecarga para nós, que somos pais “além do que seria o normal”? Afinal, há possibilidade de haver um super-pai na ausência de um sub-filho? Ou não deveríamos nos preocupar com esse tipo de coisa? Eu não sei. Sinto que não e sinto que sim, e às vezes me confundo. No fundo eu penso em quem nós, pais, estamos queremos convencer com ideias desse tipo. Temos, de fato, alguma necessidade disso? Ou então, de forma mais drástica, por que precisamos mesmo ser pais especiais, pais transformados, pais melhorados e salvos pelos filhos, pais escolhidos? Não é possível simplesmente ser pai e mãe, com todo o erro, culpa, alegria, acerto, dor, delícia, realização, frustração que isso deve trazer consigo?

Meu filho tinha sete ou oito meses de idade quando acompanhei uma mãe que perdera o filho que tinha praticamente a mesma idade que o meu, por complicações de saúde. Naquele momento, uma realidade muito mais dura que um diagnóstico de deficiência caiu sobre a minha cabeça, e de forma muito pesada. Achava que já sabia disso, mas ali senti como se pudesse ser eu mesmo. Poderia ser eu ou qualquer outro pai ou mãe. Bastava o dado ter dado uma volta a mais ao girar e pronto. Naquele momento estava confirmando algo que todos sabemos, de forma mais ou menos racional: não há razão para a dor e só a dor dos outros é uma dor hipotética. Não há razão alguma para alguém sofrer e alguém não sofrer. Não há nada de especial em ser ou não ser pai de um filho com uma deficiência.

2.

Por coisas assim, sinto que a crueldade da vida é, em certa medida, sua própria magia. Pode fazer parte de uma vida sofrer e de outra, não. Assim é. Da minha, faz parte ter um filho como o meu e essa experiência tão peculiar e única não pode ser, de modo algum, exemplo para ninguém, muito menos um parâmetro moral. Não é tarefa fácil, entretanto, não nos deixarmos aprisionar tão rapidamente por esse tipo de armadilha. Se não formos nós mesmos e nossa vida, alguém ou algo fatalmente irá nos mostrar o quão somos triviais e o fato de termos um filho com síndrome de Down ou outra deficiência apenas um acaso que nos desafia, não a sermos super-pais, mas pessoas que precisam assumir provavelmente a mais difícil de todas as tarefas: a de transformar os próprios filhos. Eu duvido, inclusive, que haja outra transformação tão efetivamente possível, em se tratando dos seres humanos.

É até possível debitar à recusa dessa possibilidade alguns dos mais graves problemas do mundo, que nada são além do que as consequências diretas da ação dos homens, mesmo quando procuramos nos esquivar das evidências disso. Estes comandantes do mundo que, em grande medida, cada vez mais se parece mesmo com aquela ilha de O Senhor das Moscas, de William Golding, no qual crianças são lançadas ao desafio do autogoverno e se deparam com a violência da natureza humana em seu estado-bruto, impedidas de lidar com ela ou resolvê-la pela falta de crítica histórica.

Logo que foi publicado, procurei ler o premiado livro de Cristovão Tezza, O Filho Eterno. Alguns anos antes eu havia lido Uma Questão Pessoal, do japonês Kenzaburo Oe. As duas obras são muito semelhantes, tratam basicamente das impressões e consequências pessoais do nascimento de um filho deficiente. Devo ter me surpreendido bastante com o relato do escritor brasileiro porque, mesmo situado a uma distância de tempo maior que a de Kenzaburo, a reação paterna narrada é muito distante daquela, mas em sentido negativo. Em O Filho Eterno, encontramos uma narrativa em primeira pessoa na qual em nenhum momento o filho chega a ser um sujeito, a esboçar uma personalidade, por mínima que seja. O filho ali cumpre a missão errônea de causar ao pai sensações e inquietudes particulares. Tão particulares que imponderáveis, porque assim, afinal, é a experiência humana.

De outros pais, colhi a queixa de que se trata de um livro negativo que, a despeito de ser muito bem escrito, limita-se a “esquartejar” a rejeição paterna, deixando de oferecer qualquer visão positiva a respeito do nascimento de um filho com síndrome de Down, mesmo tendo diante de si a liberdade literária. Eu não gostei porque não consegui sentir-me tão mal por ter um filho com síndrome de Down quanto o seu personagem. De resto, não sou crítico literário para levar isso adiante, embora a questão me exija uma boa dose de autocontrole. Se o livro é, como o autor diz, apenas parcialmente autobiográfico, essa tarefa seria bastante complexa, senão impossível. Pretendendo ou não (creio muito que não), o livro instaurou um imaginário relevante sobre o que é ser pai de uma criança que nasce com a síndrome de Down, mesmo que se refira a acontecimentos de mais ou menos vinte anos atrás.

Se na literatura os autores transformam personagens ao seu bel prazer, na vida real tudo é diferente, pelo bem ou pelo mal. Educar um filho é por si só uma tarefa claudicante, imperfeita. Como a literatura, complexa ao extremo para qualquer juízo apressado. Sobre educação, há toneladas de literatura também. Há literatura falando sobre a eficiência disso ou a eficácia daquilo, mas nenhuma literatura é capaz de prever ou assegurar o futuro de ninguém, tenha a pessoa nascido com ou sem uma deficiência. Apesar de tentadora, a ideia de seguir os passos que conduziram os outros ao sucesso é falível por natureza. Os contextos sociais não são replicáveis, assim como não o são os contextos afetivos ou culturais, muito menos os econômicos.

Eu gostaria muito de me iludir que me tornei muito mais “humano” a partir do nascimento do meu filho, mas não consigo. Não acho nem que tenho esse direito. Quem há de se tornar mais humano é ele e a mim cabe apenas facilitar um pouco as coisas sem, contudo, trilhar o caminho em seu lugar. A tarefa não é simples. As tentações são muitas. A superproteção, hoje percebo melhor do que há cinco anos atrás, é uma delas, mas seu único efeito é torná-lo alguém supervulnerável. Nessa faixa etária, seus problemas são coisas simples aos olhos de um adulto. Para ele, são os seus problemas, e enfrentá-los integra uma parte indispensável de sua vida.

Depois do que acabo de afirmar, me sinto finalmente confortável para fazer uma segunda revelação. Apesar de tudo, apesar de ter certeza absoluta de que meu filho não me transformou em nada nem ninguém estranho ao que sou, tenho como quase certo que eu é que vou acabar por transformá-lo. Que, na verdade, já o venho transformando. Que vou provocá-lo a fazer isso, porque na infancia (talvez não só nela) os pensamentos precisam ser provocados, é uma questão de plasticidade cerebral e, se não formos nós a provocá-los, serão outros, ou até mesmo objetos como brinquedos e tevês. Como boa parte dos pais e mães, julgo ter excelentes intenções. Mas será que é o suficiente? Especialmente se temos um filho descrito clinicamente como um sujeito “portador” de necessidades especiais?

Mutatis mutandi, isso nos torna diferente dos outros pais? Ou não percebemos que assim impomos aos nossos filhos uma carga de sacrifício por serem como são? Isso é justo com eles e com as outras crianças e famílias? Queremos filhos tolerados ou incluídos? Vamos fazer as contas. Eu acho que é possível deixar outro tipo de saldo às pessoas com deficiência, em sua vida adulta, em seu futuro. Não se trata de deixar de reconhecer os méritos e as dificuldades de um filho “especial” nem de deixar de enxugar o próprio suor, se trata de conferir liberdade. Inclusive liberdade para criar problemas para nós mesmos, impávidos pais. Afinal, não éramos super?

E, antes que perguntem quem sou eu para dizer uma coisa dessas, aviso. Sou apenas um pai que espera aprender a própria lição. Se chegaram até aqui e não gostaram, tenham paciência: contrariando a mim mesmo, estou apenas tentando me transformar.

Lúcio Carvalho

Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).

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