A simplicidade aparente da história de Michel Henry esconde uma série de armadilhas

"O jovem oficial", de Michel Henry

O oceano sempre representou um grande fascínio para o ser humano. Basta ver a história das navegações para perceber quantos homens dedicaram suas vidas a devassar a fronteira líquida, não raro representando uma disseminação cultural, política e econômica, à medida que povos separados por águas até então insondáveis travavam o primeiro contato. Por tais motivos, o oceano acabou se tornando um espaço de mistério e exotismo, e até hoje os homens se lançam a ele no mesmo espírito desbravador dos antepassados (mas com os confortos da modernidade). A literatura apropriou-se desta inquietude, e algumas das maiores obras literárias já escritas versam, de alguma forma, sobre os mistérios que moram no oceano, como o caso de Moby Dick, a obra máxima de Herman Melville, ou Lorde Jim, de Joseph Conrad.

Estar no meio do oceano, dentro de um navio, é estar submetido aos caprichos da natureza ou a perigos desconhecidos. No entanto, o inimigo pode estar dentro da própria embarcação, convivendo ao lado dos marujos, e pode ser tão terrível quanto os segredos que moram no fundo das águas. Esta é a premissa de O jovem oficial, livro de Michel Henry (1922-2002), escritor e filósofo que, na tradição da escola filosófica francesa da qual fazem parte expoentes como Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Simone de Beauvoir, transporta questões e dúvidas existenciais para dentro da ficção.

Em poucas palavras, a história pode soar banal: um Jovem Oficial, no seu primeiro serviço como membro da tripulação, recebe a incumbência de acabar com os ratos do navio. Ao transferir esta responsabilidade, o Comandante salienta a importância da tarefa, dando carta branca ao subordinado. Após muita reflexão, ele sugere um plano de extermínio, o qual será executado, com consequências imprevisíveis. Como toda alegoria, os personagens não são nominados. Tal recurso possibilita que as relações expostas no livro possam ser aplicadas em qualquer situação cotidiana.

Apesar da ausência de divisão formal em capítulos ou temas, o livro é constituído por três momentos decisivos: no primeiro, o Comandante, através de uma longa exposição, demonstra para o Jovem Oficial a importância da tarefa que lhe está sendo confiada, empregando argumentos convincentes para que ele não se sinta desmotivado ou humilhado, uma vez que irá caçar ratos, algo pouco glamouroso no meio marítimo. No segundo momento, o Jovem Oficial dedica-se à reflexão sobre os motivos que lhe levaram a ser escolhido para a tarefa de matar os ratos, assim como entrevista outros membros da tripulação e passa longas horas refletindo diante do oceano. No terceiro e último momento, o número de ratos cresce de forma assustadora, levando o Jovem Oficial a expor o plano que até então esboçara, o qual é imediatamente executado pelo Comandante.

Por ser um livro em que a ideia é mais importante do que a ação, os personagens pouco se movimentam. Não existe nenhum drama ou fato que impulsione as rodas ficcionais. No entanto, as reflexões são intensas e elaboradas. A simplicidade aparente da história esconde uma série de armadilhas. O leitor precisa se enrodilhar nos pensamentos dos personagens, entendendo os pontos de vista e os questionamentos que surgem de cada ideia. O jovem oficial é um livro que se deve sorver lentamente e com extrema atenção, uma vez que as linhas argumentativas são mais importantes do que a história em si. Algumas pessoas podem se afastar da leitura, pois ela demanda muito mais cuidado do que uma obra ficcional comum. Aqueles que persistirem neste esforço serão recompensados por exercícios retóricos e de argumentação realmente impressionantes. Não basta explicar as ideias, elas precisam ser motivadas. Neste afã, os argumentos contrários à exposição do raciocínio são apresentados, discutidos e depois destruídos de forma lógica.

-- O autor --

Em um mundo cada vez mais acostumado a seguir ordens, soa estranha e longínqua uma época em que as pessoas, antes de obedecer determinações, precisavam preocupar-se com a argumentação e a retórica que as embasavam. Na Antiguidade clássica, tal discussão normalmente era realizada por agentes políticos. No entanto, o mundo atual carece de argumentos convincentes ou a capacidade de discutir fatos com profundidade, e a política deixou de atrair os grandes debatedores e luminares intelectuais. Estamos mais acostumados a obedecer do que a discutir, e o livro de Michel Henry lembra a época em que as pessoas debatiam de forma exaustiva antes de ordenar.

Muitas formas de interpretação surgem no livro. Os ratos podem ser comparados à corrupção, ao mal, à morte, a qualquer elemento insidioso e cruel que germina diante dos olhos impotentes de uma pessoa ou grupo social. Importante lembrar que Henry foi um escritor filiado à Resistência, enfrentando o regime nazista que dominou a França. Da mesma forma, o combate pontual e preciso sugerido pelo Jovem Oficial demonstra que as soluções são fáceis e estão ao alcance de qualquer um que deseje realmente resolver o problema. As medidas implementadas no navio para debelar os ratos não são milagrosas ou distantes da realidade; ao contrário, surpreendem por serem simples e de fácil execução. A estratégia de limpeza exaustiva, purificação dos ambientes, ampliação das punições e, por fim, uma saída honrosa para o inimigo é algo que poderia ser aplicado com sucesso para qualquer problema que o homem venha a enfrentar. No entanto, a solução mais lógica e mais simples é aquela mais protelada.

No livro, o Comandante alude à existência de um Manual de combate aos ratos, dizendo ser ele ineficaz e útil apenas a título de referência, não como prática. No seu discurso para a tripulação, o Jovem Oficial elogia o livro e as pessoas que o fizeram (o elogio inicial é parte da desconstrução argumentativa de um conceito), mas afirma que as Normas contidas nele só mascaram a própria incapacidade de resolver a situação, uma vez que ensinam a caçar ratos individualmente, ao invés de lidar com o problema de forma coletiva. Desta maneira, o Manual criaria a ilusão de que os homens estavam no comando da situação e que os ratos estavam sendo mortos, mas, na verdade, eles procriariam em ritmo muito mais acelerado que o da matança. As Leis criadas pela Marinha serviriam somente para evitar a reflexão sobre o problema, eis que não lidavam de forma a resolvê-lo, e sim somente atenuá-lo. Torna-se inevitável refletir sobre as Leis que tentam disciplinar as pessoas, se elas estariam dispostas a resolver os problemas da sociedade ou somente diminuir a sua abrangência sem terminar de vez com eles.

Apesar de ser uma leitura lenta e reflexiva, a história de Michel Henry mantém a sua atualidade. É inquietante descobrir que os seres humanos continuam criando subterfúgios e compartimentalizações dos problemas, ao invés de pensar na solução prática que está diante dos seus olhos. Continuamos negando os problemas e recusando-nos a enxergar as soluções, como se resolver a fraqueza fosse algo vergonhoso e, assim, proliferam as leis inócuas, as denúncias inúteis de atos de corrupção, as justificativas estéreis para as maldades, as brincadeiras sem graça e sem pensamento sobre assuntos sérios. No entanto, mesmo que os problemas sejam resolvidos, em um esforço concentrado de vontades, pode não significar nada. A última frase do livro deixa implícito que o problema sempre existirá, e cabe a cada pessoa fiscalizar para que eles não renasçam. Os ratos sempre existirão no navio se a vigilância afrouxar, pois, no mais fundo de cada embarcação, de cada alma, sempre existirá o resquício de um mal à espreita.

::: O jovem oficial :::
::: Michel Henry (trad. Pablo Simpson) :::
::: É Realizações, 2012, 136 páginas :::
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Gustavo Melo Czekster

Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.

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