Esse é um daqueles livros que agradam, quando agradam, mais pelo caráter inusitado da narrativa do que pelos meandros e impacto do enredo. Temos uma narradora que está na ponta de uma cadeia que começa ainda na segunda guerra mundial. Arno e Gunther são meio-irmãos, filhos de judeus berlinenses. Eles vivem no Brasil do pós-guerra […]
Esse é um daqueles livros que agradam, quando agradam, mais pelo caráter inusitado da narrativa do que pelos meandros e impacto do enredo. Temos uma narradora que está na ponta de uma cadeia que começa ainda na segunda guerra mundial. Arno e Gunther são meio-irmãos, filhos de judeus berlinenses. Eles vivem no Brasil do pós-guerra e são casados, respectivamente, com Rose e Ingrid. Roger foi criado como filho de Arno e Rose, mas é na verdade filho de Gunther, da pulada de cerca deste com Rose. A narradora é esposa de Roger.
Não há mistério em torno dessas relações, já expostas relativamente cedo no romance de Elvira Vigna. Narradora e Roger foram adolescentes no 1968, com toda a empolgação e experimentação que isso envolve. Atualmente, mantém uma galeria de arte e trabalham em uma ONG de menores carentes, e o relacionamento está frio, para dizer o mínimo. O que deu para fazer em matéria de história de amor é uma investigação dos elos familiares de Roger empreendida pela narradora cujo nome não sabemos; mais especificamente, da complexa relação entre Arno e Rose. Ao contrário do irmão Gunther, artista fracassado na juventude e depois homem de negócios de sucesso, Arno manteve-se sempre com alguma credibilidade no mundo das artes, e, após seu falecimento, o filho Roger tenta manter aceso nos meios especializados o nome do pai.
Roger acredita que o pai deixou uma grande obra de arte de sua autoria escondida em algum lugar da casa no Guarujá onde morava com a esposa Rose. Com os pais mortos, ele se decide por encontrar tal obra. Mas, ao invés dele, é a narradora quem vai ao Guarujá, e faz questão de ir sozinha. Passados uns dias lá, ela realmente encontra uma obra que havia sido escondida por Arno. Uma peça que não é lá essas coisas, à primeira vista – até que um detalhe seu seja revelado pelo final do livro.
Por que esse mergulho da narradora na vida dos pais de seu marido? Porque ela acha que, a partir daquela relação, pode puxar um fio que ajude a esclarecer sua própria relação em crise com Roger.
Muitos parágrafos curtíssimos se sucedem em O que deu para fazer…. Isso cai bem como um reflexo da pressa que a narradora quer imprimir ao processo. Ela tem pressa em encontrar respostas. Mas – e isso é o mais importante de tudo – ela não faz questão de que essas respostas estejam mesmo solidamente estabelecidas em fatos reais. Uma melhora no seu casamento é um objetivo maior do que apresentar cristalinamente o passado de Rose e Arno. Se alguma lição puder ser tirada da relação entre um dado real e um outro dado fruto de sua imaginação, já bastará.
A narradora nos apresenta um evento do passado de Rose-Arno ou Gunther-Ingrid, e propõe caminhos alternativos que podem ter levado até ele. Ou ela já ia firmemente percorrendo um caminho, quando subitamente muda de rota. O que importa é o evento e a lição que pode ser tirada. Ela pode narrar algo o mais implausível a partir de um dado de outra forma irrelevante. Por exemplo, a partir de um comentário casual de Roger, ela evoca um passado marcado pela pedofilia. (A não ser, claro, que o comentário não tenha sido meramente casual.)
Diante desse texto, em que alguma coisa é elaborada a partir do quase nada mediante uma prosa não convencional, o importante é fazer duas perguntas. O produto final satisfaz a narradora? O produto final satisfaz o leitor? Para saber a resposta à primeira, favor ler o livro. A resposta à segunda pergunta é não de todo, pelo menos para este leitor bem aqui.
Enredos não absolutamente resolvidos, sustentados por conclusões de um narrador longe de confiável, não são novidade na literatura de Elvira Vigna. Tampouco narrativas secas e corridas. Mas o resultado é mais positivo quando a trama em si desperta mais interesse, e na qual o narrador esteja mais diretamente envolvido, por assim dizer, com os mistérios sendo desvendados. Os dois livros anteriores da Elvira, Deixei ele lá e vim (2006) e Nada a dizer (2010), são prova disso. Para quem já acompanha a obra da autora, seu novo livro é naturalmente indicado. Para quem ainda está para descobri-la, começar por um desses outros dois romances pode ser mais agradável.
::: O que deu para fazer em matéria de história de amor :::
::: Elvira Vigna :::
::: Companhia das Letras, 2012, 208 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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