Guia prático da pseudociência negacionista

por Carlos Orsi (25/06/2012)

Cite fatos científicos corretos, mas irrelevantes para o assunto em questão

Negacionismo é um fenômeno que ocorre quando um determinado dado da realidade, confirmado por sólida evidência científica, por algum motivo, desagrada tão profundamente uma determinada parcela da sociedade que passa a ser lucrativo — psicológica, política ou financeiramente — tergiversar a respeito. Hoje em dia a vítima mais evidente é o aquecimento global de origem humana, mas já houve picos envolvendo, por exemplo, a natureza cancerígena da fumaça de tabaco, a evolução das espécies por meio de seleção natural, o Holocausto na 2ª Guerra.

Embora cada um dos negacionismos citados tenha especificidades próprias, há algumas estratégias comuns, adotadas por todos. Um livro que trata do assunto é o Merchants of doubt. Abaixo, apresento algumas das jogadas clássicas do negacionismo.

Encontre acadêmicos que defendem o seu ponto de vista

É só procurar. Do mesmo modo que conviver com a Hustler (e, vá lá, com a Veja) é o preço a pagar pela liberdade de imprensa, o preço da liberdade de investigação acadêmica é haver catedráticos falando bobagem: procurando bem, deve dar para achar até um astrônomo que ainda defenda que o Sol gira em torno da Terra. Claro, gente assim é minoria, e o melhor que um leigo pode fazer é se guiar pelo consenso da comunidade científica, não pela opinião de especialistas isolados, mas na hora de montar o seu documentário (ou livro, ou reportagem) você pode passar por cima desse critério, que (quase) ninguém vai ligar.

Cite fatos científicos corretos, mas irrelevantes para o assunto em questão

“A órbita da Terra não é circular, é elíptica”. “Aranhas não são insetos”. “O derretimento do gelo que flutua sobre o Oceano Ártico não elevará o nível dos mares”. “Cidades criam ilhas de calor”. Coisas assim devem ser ditas no mesmo tom em que as patricinhas de anedota dizem “Hellooooo-ôu“, a insinuação sendo a de que a implicação a favor da tese negacionista é tão óbvia e fulgurante que não precisa ser explicitada, a menos que o ouvinte seja um idiota. Como ninguém gosta de passar por idiota, todo mundo balança a cabeça, espertamente, e o argumento inválido, devidamente vaselinado, desliza feliz rumo ao alvo.

Descontextualize a ciência

Afirmações como “erupções vulcânicas injetam milhares de toneladas de CO2 na atmosfera” muitas vezes são usadas para causar um clima de impotência — como não dá para controlar o que os vulcões fazem, para que se preocupar com as míseras emissões humanas? Para estar no contexto adequado, no entanto, essa afirmação deveria vir suplementada pelo dado de que o efeito dos vulcões no clima é, majoritariamente, de resfriamento, por conta do enxofre e de outras partículas que eles lançam na atmosfera; pelo fato de que as emissões humanas de CO2 já superam as vulcânicas; e, por fim, pela constatação do óbvio: não temos controle sobre os vulcões mas temos (algum) controle sobre nós mesmos.

Manipule desonestamente o conceito de “dúvida” científica

Uma das coisas que torna a ciência uma empreitada maravilhosa é sua incapacidade de reconhecer verdades absolutas. Mesmo que uma verdade absoluta seja descoberta — um candidato razoável seria, por exemplo, a afirmação de que todos os seres vivos da Terra têm um ancestral comum — o processo científico jamais fechará de vez a questão a respeito.

Sempre haverá a possibilidade (cada vez mais remota, mas sempre aberta) de novas evidências demonstrarem que o que parecia verdade era, de fato, apenas ilusão, ou somente uma versão grosseiramente simplificada de como as coisas realmente são. Negacionistas tentam lançar mão desse componente de dúvida estrutural que acompanha toda afirmação científica para deslegitimar diagnósticos dos quais discordam (que cigarro faz mal, que todos temos um ancestral comum, que a revolução industrial vem aquecendo a Terra, etc.).

Ao fazer isso, no entanto, eles deliberadamente passam com o trator por cima de três conceitos importantes: o de dúvida razoável, o de informação boa o suficiente e o de ação responsável. Por partes.

Embora toda dúvida seja possível, nem toda dúvida é razoável, frente às evidências disponíveis. Por exemplo, você pode duvidar que esteja lendo esta postagem — talvez isto tudo seja um sonho especialmente tedioso –, mas qual o motivo, a evidência, para isso?

Quanto à informação boa o suficiente: em muitos casos, até sabemos que os dados que temos não correspondem a como as coisas realmente são, mas ainda assim eles são bons o bastante para guiar certos tipos de decisão — você não precisa de fotos de altíssima definição de uma paisagem para saber onde acaba a floresta e começa o deserto, e a Nasa se vira muito bem com as leis de Newton para navegar suas sondas, mesmo sabendo que o trabalho de Einstein é superior.

Já ação responsável é, ora bolas, ação responsável. Não é porque existe a possibilidade filosófica de que a lei da conservação da energia não seja uma verdade absoluta que os engenheiros estão livres para ignorá-la ao criar seus projetos. Se verdades provisórias são tudo o que temos, é com base nelas que temos de agir no mundo. E nem é correto dizer que as verdades provisórias são “todas iguais”, que acreditar na lei da gravitação universal é “a mesma coisa que” acreditar em duendes. Algumas verdades provisórias admitem menos dúvida razoável, fornecem mais informação boa o suficiente e, no fim, guiam ações mais responsáveis que outras.

Use a inércia e a covardia a seu favor

Não, o fofo do vovô Hans não era um assassino sádico. O cigarro é tão gostoso, como é que pode fazer mal? Eu, parente de macacos? Como assim, botar a família na SUV a diesel e descer para a praia é colaborar com uma crise ambiental? O ser humano não gosta de ser arrancado de sua zona de conforto, e os negacionismos se alimentam disso — muitas vezes, de fato, nascem disso. No geral, representam um esforço a fim de reunir dados e criar argumentos que façam essa abstração estatística, o cidadão médio, se sentir melhor. O negacionismo ideal é o que produz, no tal cidadão médio, a sensação de que ele sempre fez tudo certo, que, mesmo sem saber os comos e os porquês, sempre se comportou, pensou e acreditou da melhor forma possível.

Quando o negacionismo contraria algum tipo de consenso social — como no caso do Holocausto — seu efeito final é geralmente tranquilizador: veja, esse bicho-papão em que vocês todos acreditavam, na verdade, nunca existiu. Ufa!

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.

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