Muito já se discutiu sobre a função da literatura. Este é um dos fossos teóricos que, às vezes, críticos e estudiosos insistem em tentar compreender, sendo incapazes de chegar a uma resposta unívoca. A literatura teria a função de entreter? De ensinar? De soar premonitória ou admonitória? De julgar, condenar ou absolver? De retratar a […]
Muito já se discutiu sobre a função da literatura. Este é um dos fossos teóricos que, às vezes, críticos e estudiosos insistem em tentar compreender, sendo incapazes de chegar a uma resposta unívoca. A literatura teria a função de entreter? De ensinar? De soar premonitória ou admonitória? De julgar, condenar ou absolver? De retratar a sociedade em um determinado tempo? Teria a função de ser História e não estória, ou vice versa? O máximo a que podemos chegar é uma lista das funções da literatura, mas nunca apreendê-la por completo. A reflexão sobre o motivo pelo qual se deve ler um livro acaba surgindo ao final de A infância de Jesus, de J. M. Coetzee. Na qualidade de leitor, sei que uma história foi contada nas 300 páginas do livro: identifico a presença de personagens, conflito e enredo, assim como a fumaça da ficção, que adeja sobre o texto. No entanto, também me senti como se tivesse recebido um pout-pourri de questões filosóficas, elencadas no meio da história com o didatismo de uma aula. O conflito entre a ficção e a intenção do autor é aquilo que mais destaco na minha leitura.
Iniciarei dizendo que vou tratar do livro, e não do autor. Quase todas as pessoas que conheço mencionam os outros livros de Coetzee ou o fato dele ter ganhado um Nobel de Literatura, algo que lhe alcançaria automaticamente a excelência literária. Não analisarei a pessoa do autor ou o seu histórico, manterei a minha leitura concentrada no livro, abstraindo fatos que sejam externos a ele.
Em muitos momentos, A infância de Jesus aproxima-se da estrutura de uma parábola. Um homem velho (Simón), acompanhado de um menino (David), chega em um novo país na condição de refugiado. Neste lugar, de contornos inexistentes e repleto de simbologia, as pessoas pretendem esquecer o passado e viver somente o presente. O sentido das coisas e o motivo do progresso humano soam irrelevantes enquanto se tiver trabalho, casa e comida. Não existem questionamentos, e cada dia sucede ao outro de forma modorrenta. Os sentimentos são mitigados ao mínimo necessário. Os habitantes deste novo país soam conformados com a realidade: realizam seu trabalho, fazem sexo como forma de alívio, não pretendem a evolução e, sim, manter o status quo. Simón procura a mãe do menino, que se perdeu dele no navio, e, para tanto, confia somente na sua intuição. Pode-se dizer que Simón é a parte subjetiva da sociedade, com suas perguntas, dúvidas e instabilidades servindo de elemento de desestabilização da trama, enquanto os demais moradores de Novilla, que são felizes na sua vida insossa, acabam funcionando como a parte racional, tentando responder as questões do recém chegado e domar a sua resistência. Neste cenário, o menino representa tanto a incerteza do futuro quanto o acréscimo de um elemento novo na equação humana, que poderia ser, no caso, a religião, assunto que permeia todo o livro sem ser diretamente mencionado.
Quando trato do livro como narrativa, percebo que a história ficou fragilizada pelo excesso de intenção de virar parábola. As personagens acabaram soando estereotipadas, para não dizer sem profundidade, o que talvez seja o desejo do autor: deixar uma sociedade tão massificada e amorfa que é incapaz de traços distintivos. Devemos distinguir profundidade psíquica das personagens da profundidade dos temas que eles abordam, que são inegavelmente interessantes; as personagens não se desenvolvem, não crescem, não se separam da sua matriz criadora, parecendo sempre repetir os mesmos temas. Em muitos momentos, é tão grande o esforço feito para dar um caráter universal para a narrativa que ela acaba saindo forçada. Coetzee é um excelente escritor e sabe escapar do clichê fácil, mas o problema de desejar encaixar temas universais dentro de uma história é deixá-la com uma constante sensação de já-visto, pois os dramas humanos são sempre os mesmos em todo lugar do mundo.
Agora, se considerarmos o caráter filosófico da trama, fazendo com que a parábola sirva de preâmbulo para a discussão de ideias, o livro cresce em interesse. A questão central, em torno da qual as personagens se debatem, é a luta entre o sobreviver e o viver: o que valeria mais? Levar uma vida insossa, sem grandes aventuras, mas com as necessidades mínimas atendidas, ou tentar arriscar, sentir emoções diferentes, ter novos desafios? A sociedade tenta colocar o indivíduo dentro das suas normas, achatando a individualidade, mas um homem pode lutar contra um sistema? A própria comida sem gosto da cidade é um lembrete de que, como a alimentação permite a sobrevivência, nada mais é necessário. O trabalho, que não possui objetivo e é replicado diariamente sem maiores dúvidas, lança questões que assombram o mundo atual. O sexo, vazio e tratado com indiferença, vira outra forma de estrangulamento emocional. Cada capítulo possui um tema sobre o qual as personagens tecem as suas visões de mundo, abrindo as possibilidades de discussão, mas sem fechar nenhum ponto de vista.
À medida que David cresce e questiona as convenções sociais em conversas com Simón, o livro fica mais intenso. É sintomático o fato do menino encontrar um exemplar de Dom Quixote na biblioteca do local e usá-lo como forma de afrontar a realidade que o cerca. Não é tão difícil traçar um paralelo com a história do cavaleiro que andava em um mundo somente seu, tentando mudar toda a sociedade em que estava inserido. É uma nova parábola, e tem a ver com a busca de todo o ser humano pelo seu lugar no mundo. Em lutar contra o conformismo. Em ter a arte como uma forma de libertação dos freios sociais e como maneira de dar um sentido para a vida.
Pelo fato de transitar nos instáveis limites entre ficção e filosofia, em alguns momentos A infância de Jesus atinge um didatismo que afeta a verossimilhança da trama, como se o autor desejasse não contar a história, mas mostrar sua visão de mundo. De tanto desejar o universal, Coetzee força a história e a transforma em uma série de discussões que atingem a atualidade.
Se deixarmos de lado a trama e aceitarmos a ideia de que o livro é um exercício de filosofia, uma oportunidade de usar a literatura como forma de discussão de temas gerais, a leitura ganha interesse. Se um eventual leitor buscar o livro imaginando que lerá uma história ficcional por meio da qual irá refletir sobre a sua realidade, provavelmente sairá decepcionado. Coetzee faz o movimento contrário: a história é usada como pano de fundo e reforço das questões filosóficas levantadas.
Ao final do livro, não será a trama que os leitores lembrarão, e sim as perguntas suscitadas e as discussões que surgem entre as personagens. Se esta proposta for aceita, o leitor terá uma série de questões para refletir. Como ficção, o romance não é tão forte, deixando todas as questões filosóficas claramente destacadas. Não se pode negar que não seja uma proposta ousada, usar a trama como subterfúgio para a filosofia.
Considerando-se que, quando a literatura se aproxima demais do didatismo ela se torna panfletária, A infância de Jesus pode ser considerada tanto como um exercício de reflexão sobre a condição humana como pode ser uma parábola da vida e dos dilemas modernos. Cabe ao leitor decidir a forma com que receberá o livro, com base na sua própria visão do motivo para o qual existe a literatura, se guiar o leitor por meio da ficção ou ser o objeto buscado através do levantamento de questões filosóficas. No entanto, este não é um livro para buscar o entretenimento, a epifania ou a catarse; graças à mão segura com que Coetzee controla a narrativa, a obra foi feita para ser lida com vagar, capítulo a capítulo, extraindo lições e dúvidas que se transmitem para as questões do cotidiano. É um livro de ideias e, como tal, é de se esperar inquietações.
::: A infância de Jesus :::
::: J. M. Coetzee (trad. José Rubens Siqueira) :::
::: Companhia das Letras, 2013, 304 páginas :::
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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