Sócrates: filosofia, vida e morte

Emily Wilson revisita a radicalidade socrática na teologia e na psicologia, acentuando alguns elementos que tinham por principal objetivo fazer as pessoas perceberem a si mesmas, para além de sistemas morais e políticos.

"A morte de Sócrates: Herói, vilão, falastrão e santo", de Emily Wilson

“A morte de Sócrates: Herói, vilão, falastrão e santo”, de Emily Wilson

Platão é bastante influente na história da filosofia, e costuma ser um dos primeiros autores indicados para quem pretende se familiarizar com o pensamento filosófico de forma mais sistemática. Através dele, conhecemos Sócrates, seu mestre e também personagem presente em muitos de seus diálogos. Sócrates nos é apresentado como vítima da injustiça, alguém que foi condenado à morte pelas suas crenças. Os interesses de Sócrates, que giram em torno da moralidade, dos valores, da felicidade, da verdade, entre outros, são todos reconhecidamente filosóficos a partir dele; ele foi o fundador da filosofia tal como a conhecemos, e obviamente o desfecho trágico de sua existência contribuiu para isso.

Ocorre que essas temáticas são muito mais do que simples eventos ilustrativos presentes em manuais de filosofia, conforme indica Emily Wilson em sua obra A morte de Sócrates: “O julgamento de Sócrates e o seu resultado assinalam um problema com o qual as democracias até hoje têm que lidar, ou seja: o que fazer com os dissidentes.” Logo na introdução, a autora deixa claro que, em toda a sua obra, quer trabalhar com a concepção de um Sócrates multifacetado de um modo sem paralelo com qualquer outra personagem, isto porque ela não quer cair na tentação de taxar o filósofo como um precursor de uma série de grandes heróis que se rebelaram contra a opressão e restrição governamental, pois assim esqueceríamos que é possível não admirar Sócrates.

Para cumprir tal meta, Emily Wilson atravessa toda sorte de relatos, contrapondo as diversas figuras que compõem Sócrates: seu status na história, sua função de professor e mestre, sua vida familiar, entre outros.

Apesar de termos acesso a esse conteúdo um tanto “negligenciado”, o que já tornaria possível discutir uma série de outras questões, como o fato de os estudos sobre filosofias autobiográficas ainda serem vistos como periféricos na academia, a autora sustenta a exposição de forma bastante consistente, tornando assim evidente o quão rica e enigmática é a figura de Sócrates. Assim, ela revisita a radicalidade socrática na teologia e na psicologia, acentuando alguns elementos, como a ironia socrática, que tinham por principal objetivo fazer as pessoas perceberem a si mesmas, para além de sistemas morais e políticos. Destaco uma passagem:

Sócrates não estava interessado em garantir que os governos aplicassem punições ou praticassem justiça social. Em sua filosofia, sem dúvida a coisa mais importante na vida era você, como indivíduo, sabia se comportar bem. Uma pessoa pode ser intimada por esse ponto de vista radicalmente individualista – ou emocionado – da ética, ou ambos.

A autora não omite fatos discutíveis da vida de Sócrates, pois apesar de defender a autonomia dos indivíduos contra a tirania das instituições, ele lutou pela cidade de Atenas em nada menos do que três campanhas militares durante a Guerra de Peloponeso, além de afirmar o dever de obediência aos deuses. Porém, sua atitude padrão, que acabou desembocando na morte, prevalece e serve como testemunho do poder de seu próprio pensamento — afinal, segundo Wilson, ele adotou um método e uma prática filosófica que seguramente transtornavam um grande número de pessoas. E não é de se surpreender que ele tenha feito muitos inimigos.

Como se não bastassem a própria vida de Sócrates e os relatos de seus contemporâneos, ainda somos apresentados a perspectivas diversas sobre o percurso socrático dentro da própria história da filosofia; entre semelhanças e discordâncias, somos aproximados de Sócrates mediante Montaigne, Hegel, Kierkegaard, Nietzsche, Foucault e, por que não?, Popper, aquele que afirma que, se Platão está na raiz do totalitarismo moderno, Sócrates lutou e morreu pelo oposto.

Em todo caso, A morte de Sócrates é uma leitura recomendada àqueles que carecem de contato com uma filosofia menos conformista do que aquela que julga a realidade sem sair dos gabinetes.

::: A morte de Sócrates :::
::: Emily Wilson (trad. Fátima Siqueira) :::
::: Record, 2013, 288 páginas :::

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