Engana-se quem entende a solidão e os solilóquios assombrando o autor. A literatura é um diálogo, essencialmente. Tomando partido de um conceito bakhtiniano, todo autor dialoga consigo antes de emprestar sua voz para a literatura. É o diálogo que irá constituir o escopo, os meandros e as reviravoltas do enredo, através de experiências vividas, referências […]
Engana-se quem entende a solidão e os solilóquios assombrando o autor. A literatura é um diálogo, essencialmente. Tomando partido de um conceito bakhtiniano, todo autor dialoga consigo antes de emprestar sua voz para a literatura. É o diálogo que irá constituir o escopo, os meandros e as reviravoltas do enredo, através de experiências vividas, referências de outros escritos, influência do ethos e de sonhos não realizados. O livro, em suma, nada mais é que a consequência dessa imergência, a retratação dessa viagem.
A literatura do goiano Wesley Peres acontece em abismal imergência. Desde que debutou como romancista (são dele também os volumes de poesias Palimpssestos e Rio revoando) em 2006, por conta da conquista do Prêmio Sesc de Literatura, com Casa entre vértebras, o melhor original descoberto pela premiação, o escritor se vale de uma amálgama de teoria, prosa e poesia para entecer tramas amarradas a discursos vigorosos de personagens que encontram-se em pleno desmoronamento pela inabilidade de exorcizarem-se dos limites impostos por terrores e paixões. Nada é nuclear ou cômodo. Vivem-se experiências radicais onde se evidencia uma forte inadequação entre corpo e mente, conjurando uma narrativa que não flua ao longo, mas encadeada por fragmentos que se revelam com características de um puzzle que não necessariamente será desvendado. Wesley não facilita para o leitor, o que é corajoso e louvável em tempos de facilidades excessivas.
A Casa entre vértebras não é segura, a morte é uma residência segura, sentencia uma das primeiras falas do livro. O acúmulo de referências sobre a finitude está na incapacidade de antever a sua incidência fatal, de modo que, se meter num espiral de sensações, ideias e lembranças desvairadas, é a única forma de tentar traduzir para si próprio essa angústia. Nesse primeiro romance, construído por camadas de rascunhos epistolares, poesias e notações, o protagonista-narrador procura estabelecer contato com uma mulher, que em dado momento recebe o nome de Ana, transformando suas falíveis tentativas em devaneios que incorporam temas como infância, amor e solidão. Não se sabe se este estado é ocasional ou efeito de um desvio psicológico, nem se essa mulher existe, de fato. Aqui vale mencionar que, além de escritor, Wesley é psicanalista; o que não se impõe sobre a plasticidade da trama, mas reflete sobre o apuro e o domínio para com os temas e a linguagem. E isso fica mais evidente em As pequenas mortes, seu recente romance.
Diferente de Casa entre vértebras, em As pequenas mortes são explícitas a causa e a condição psicológica do protagonista. Felipe Werle é um paranoico. Culto compositor de música erudita, recém-laureado com um prêmio importante, e leitor de Georges Bataille e Emil Cioran, acredita que foi contaminado durante o trágico episódio do acidente com o Césio-137, em Goiânia, onde vivia aos 12 anos, em 1987. Essa conjuntura geográfica lhe dá a certeza de que está com câncer, de que a morte lhe espreita, ainda que repita pilhas de exames que lhe afirmam o oposto. Lidar com tal paradoxo é o ponto de partida para um afundamento norteado por uma série de obsessões, onde cada novo relato que se recebe sobre o assunto acrescenta um elemento a mais numa cadeia que inelutavelmente foi posta em funcionamento. Como, em dado instante, o protagonista preconiza: “A memória é uma coisa viva, as coisas não param num mesmo lugar”.
Diante dessa massa densa e profusa, Wesley mune-se de fartas referências para dar forna a uma voz contraditória, autocomiserativa, hedonista, distópica, que condena o próprio corpo motivada pelas imagens mortiças de Leide, a menina que ingeriu partículas de césio, desconsiderando os apelos de Ana (há uma curiosa fixação pelo nome Ana), sua amante, de que se tratam apenas de fantasmas. Tal analogia distingue bem a interseção onde o escritor situada a sua literatura, pressionando fortemente realidade e ficção, de modo que o relato provoca uma tensão narrativa entre vários discursos: de um lado, a linguagem científica; do outro, a psiquiatria acrescida da sociologia, e, para completar, a subjetividade do personagem nas lembranças da infância desfigurada pela radiação e no ódio anunciado pelo pai.
Esse último ponto fica mais evidente na segunda metade do livro, intitulada “O livro de W.”, justamente quando a voz narrativa altera-se da primeira para a terceira pessoa. A mudança traz leveza para a prosa e compartilha algumas características centrais com as do estupendo romance Os suicidas, do argentino Antonio di Benedetto. Assim com Felipe Werle, o protagonista anônimo é obcecado pela morte, porém a autoimposta, em decorrência do suicídio do pai, para o qual reserva um misto de repulsa e pena. Marcela é a sua Ana, tentando armá-lo com lucidez numa viagem empreendida pelos inúmeros casos, formas e razões para o suicídio. O protagonista não enxerga a morte como algo por vir, mas como meta. No entanto, pensar fixamente que está morrendo, também não é uma forma de suicídio?
Vale mencionar o requintado projeto gráfico da Rocco, manchando as bordas da páginas com um azul celeste que remete à pulverização do césio, mas que, por conta da contundência da narrativa, traz igualmente a impressão de algo acometido por cianose.
Essa angústia branca, a mãe dizia sabe-se lá por que razão, mas de um certo jeito eu sentia, coração de mãe é desse jeito, aquele negócio bonito, aquele negócio azul, era de um azul que parecia coisa de Deus, mas eu senti sabia que era coisa do diabo aquilo, todo mundo pensando em ficar rico com aquilo, Deus não manda riqueza assim caindo do céu, aquele azul não era azul do céu, era com se fosse um azul-vermelho, um vermelho-celeste, que seja o diabo, que seja (…)
A página que antecede a primeira parte de Os suicidas é irradiada pela citação “Todos os homens sãos pensaram em suicídio alguma vez”, de Albert Camus, que se emparelharia bem à deformação psicológica de Felipe Werle, no que tange sua elástica obsessão pelo espreitamento da morte em contrapartida à compulsória fragilidade em admiti-la contra o tempo. O fim autoinfligido, como sugere o protagonista do romance argentino, seria um ato natural, pois “todos nascemos com a morte dentro de nós”. No caso de As pequenas mortes, uma certeza lamentável que anularia a potência de uma voz que, embora tortuosa, é responsável pela ressonância de um romance ao mesmo tempo intrigante e instigante.
::: As pequenas mortes :::
::: Wesley Peres :::
::: Rocco, 2013, 120 páginas :::
Sérgio Tavares
Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.
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