Em defesa da política
Ao falar do Ocidente, mais especificamente sobre a Europa, Francis Fukuyama destaca a importância da lei para a legitimação do Estado.
Funciona assim: se, num debate sobre conceitos em política, um dos interlocutores ousar mencionar o nome do cientista político norte-americano Francis Fukuyama, estará automaticamente desautorizado a argumentar. Para certos comentaristas e soi-disant analistas, o nome de Fukuyama não apenas está ultrapassado (posto que é considerado apenas um ideólogo do final da década 1980), como também é um dos falcões do temido pensamento conservador da direita norte-americana, um grupo que deve ser estigmatizado, solapado e, se possível, esquecido. Numa variação desse raciocínio tacanho, há quem diga que as ideias de Fukuyama podem ser sintetizadas a partir de seu ensaio mais célebre, “O fim da história?”, publicado em 1989 e que seria, anos depois, um livro de sucesso. Para quem não leu, o texto de Fukuyama decretava a vitória da democracia liberal perante o fracasso do socialismo real – e, com efeito, o autor jamais seria perdoado pela provocação do título de seu ensaio.
Pois então, anos depois, Fukuyama está de volta com outro livro de sucesso na praça, desta vez As origens da ordem política, editado no Brasil pela Rocco. Ao longo de quase 600 páginas, o pensador liberal estabelece uma reflexão sobre a política, tomando como referência as ideias de outro pensador odiado pelas esquerdas mundo afora: Samuel Huntington, que, em 1968, assinou o artigo “Political order in changing societies”. Fukuyama acreditou que era possível rever as ideias de seu mentor e se propôs a estabelecer uma longa e caudalosa análise sobre como a política ainda importa. Para desespero dos detratores que sequer leem seus livros, a obra, se não é incontestável, desafia o senso comum ao avaliar a influência da política desde sempre na vida em sociedade.
Para tanto, o autor divide sua análise em dois tomos. E, com efeito, o que temos em mãos é a primeira parte de sua análise, que vai dos tempos pré-humanos à Revolução Francesa. Amparado em vasta bibliografia, o autor é hábil ao pincelar os momentos decisivos que lhe servem de base para investigar e comentar como se organizava a política em outros tempos, que nos parecem ao mesmo tempo distantes e desconectados para com a nossa realidade. Com isso, nas palavras de Fukuyama: “O objetivo deste livro é preencher alguns hiatos desta amnésia histórica com um relato de onde vieram as instituições políticas fundamentais das sociedades que hoje as dão como certas. As três categorias de instituições em questão são as que acabamos de descrever: O Estado; O Estado de Direito; Governo responsável”.
Nota-se, desde o início, que o autor é um defensor entusiasmado daquilo que ele classifica, desde há muito em sua obra, da ideia de uma democracia liberal. O leitor menos afeito aos conceitos de ciência política pode vislumbrar o seguinte paralelo: é o tipo de democracia achincalhada por determinados governantes da América Latina, posto que tal modelo político-econômico geraria lucro, riqueza e benefícios apenas à elite. No Brasil, quem sustenta esse tipo de modelo está condenado a ser visto como direitista e reacionário alinhado ao sistema. Não espanta que o Brasil tenha despencado em recente avaliação do índice de competitividade.
De volta ao livro, se nas primeiras páginas Fukuyama dedica um espaço considerável para elaborar uma análise do sistema internacional contemporâneo, logo adiante o autor propõe uma espécie de revisão da ordem política mundial antes mesmo da ideia de Estado-Nação ser a pedra de toque da política internacional. Com isso, é eficaz ao explicar de que maneira os principais atores do sistema mundial se desenvolveram, observando, de quebra, a sua constituição do ponto de vista histórico. É assim que se compreende, por exemplo, os meandros do Império Chines à época da dinastia Han, conforme se observa nas palavras do autor: “Qin Shi Huangdi estendeu as instituições de seu Estado natal para toda a China, criando assim não apenas um Estado, mas aquela que viria a se tornar, sob seus sucessores da dinastia Han, uma cultura de elite chinesa unificada”.
De igual modo, Fukuyama apresenta as características elementares do complexo sistema de castas indiano. Nesse capítulo, o autor dialoga com Durkheim e Max Weber, ao destacar a influência da religião para a compreensão da vida econômica. É singular, nesse sentido, a explicação concedida sobre os meandros políticos daquela localidade:
(…)na Índia não foram as elites que detinham o poder coercivo e econômico que acabaram no topo, e sim aquelas que detinham poder ritual. Mesmo se uma pessoa acreditasse que as causas materiais tinham prioridade, ainda precisaria responder à pergunta de por que os xátrias e os vaisas – os guerreiros e mercadores – concordavam em se subordinar aos brâmanes, dando-lhes não apenas terras e recursos econômicos, mas também o controle de aspectos íntimos de sua vida pessoal.
Ao falar do Ocidente, mais especificamente sobre a Europa, o cientista político destaca a importância da lei para a legitimação do Estado – a princípio, baseado numa autoridade religiosa; e depois como um conjunto de regras fundamentadas num amplo consenso social a respeito de valores básicos. Fukuyama, então, chega ao que pode ser considerado o postulado elementar da legitimidade do Estado no Ocidente, a saber: “O primado da lei é um componente distinto da ordem política que impõe limitações ao poder de um Estado”. Em linhas gerais, é essa característica que transforma determinadas experiências políticas – como a Bolívia de Evo Morales ou a Venezuela chavista – em regimes que destoam desse projeto que busca a legitimidade respeitando as regras do jogo, uma vez que é sabido que as lideranças destes países alteraram as respectivas cartas constitucionais para se perpetuarem no poder de forma indefinida. Em outras palavras, se é verdade que não podem ser chamadas diretamente de ditaduras, é possível situá-las conforme a afirmação de Fukuyama ainda no início do livro: “A incapacidade de cumprir as promessas de democracia representa aquele que talvez seja o maior desafio à legitimidade desses sistemas políticos”.
Ainda observando o processo político no Ocidente, Francis Fukuyama analisa, para desespero de Marilena Chauí, a influência da burguesia (ou, nos termos de hoje, classe média) para o estabelecimento da emancipação política na Inglaterra, anotando precisamente o período anterior à Revolução Gloriosa: “A classe média teve papel fundamental no parlamento e ganhou um substancial poder econômico e político antes da Guerra Civil e da Revolução Gloriosa. Representou um forte contrapeso aos grandes lordes e ao rei em suas lutas pelo poder”. Eis aí, talvez, uma pista de por que seus anseios e expectativas assustem tanto os que desejam se perpetuar nos cargos, ontem e hoje…
No entanto, ao tratar da Revolução Gloriosa, Fukuyama reavalia também a alteração do ideário político no tocante à já mencionada questão da legitimidade. O pensador norte-americano comenta que John Locke, em contraponto a Thomas Hobbes, reavaliou o papel do Estado em relação ao indivíduo, uma vez que o autor de Dois tratados sobre o governo civil asseverou que os súditos poderiam, sim, substituir um monarca que se tornasse tirano por violar os direitos naturais. Em síntese, Fukuyama assinala que “a Revolução Gloriosa não foi feita para que um governante ou conjunto de elites tomasse o controle do Estado e suas rendas de outro, mas para definir o princípio sobre o qual seriam escolhidos todos os governantes subsequentes”.
Entre as muitas coisas que se aprende a partir da leitura de As origens da ordem política, é correto destacar que o autor não mudou de ideia sobre o que disse no final dos anos 80, exatamente porque ainda segue como um notável defensor e entusiasta do modelo da democracia liberal. Assim, embora fustigado por seus detratores, Fukuyama se mostra um pensador atento e bastante eficaz na elaboração e na exposição de seus argumentos. Este livro, por isso, é obra que serve de referência e também de guia de leitura (e entendimento) do contexto político contemporâneo. Aguardemos a segunda parte.
::: As origens da ordem política :::
::: Francis Fukuyama (trad. Nivaldo Montingelli Jr.) :::
::: Rocco, 2013, 592 páginas :::