Entrevista com Mauricio Lyrio, autor de ‘Memória da Pedra’

"Eu precisava situar a trama num contexto histórico de crise e mobilização política, que realçasse a alienação do protagonista como algo próprio, pessoal, que transcendia seu tempo."

Maurico Lyrio

Mauricio Lyrio acaba de estrear na ficção com a publicação do romance Memória da pedra, livro que recebeu menção honrosa no Prêmio SESC de literatura 2010. O romance é muito bom e em nada se parece com um livro de estreia – questão que o autor ajuda a esclarecer na entrevista concedida por e-mail ao Amálgama, ao afirmar que precisou “ler muito e amadurecer” para escrever ficção.

Valeu a pena: com mais de 300 páginas (longo para os padrões atuais), Memória da pedra apresenta um enredo muito bem construído a partir de várias (e não apenas duas ou três) personagens, desenhadas com rara profundidade, tridimensionais por excelência. E a tridimensionalidade já está presente na expressão inspirada do título, sobre a qual Lyrio também discute a seguir, uma vez que aquilo que dispara a história é a memória cujo lugar “não é acessível aos homens”, a pedra.

Questões existenciais, portanto, atravessam o romance, mas sem transformá-lo – longe disso! – em um compêndio filosófico. A memória que não se acessa mas que, justamente por isso, dá à luz a história; a morte que traz vida (e a vida que traz morte); visível e invisível intrincados na mesma trama, a trama expressiva do sensível: trata-se de boa literatura, cuja leitura prazerosa brindará o leitor com passagens como esta: “Não é pouco ser o escolhido quando não se tem nada; deve ser o oposto de ser abandonado quando se tem tudo. A surpresa é que deve ser a mesma”.

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Amálgama: Memória da pedra, sua estreia na ficção, obteve menção honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2010. Você é diplomata, e trabalhou em importantes cidades do mundo. Em que medida a literatura se transforma em um projeto para você?
Mauricio Lyrio: A literatura tem sido um projeto importante para mim desde antes de me tornar diplomata. Depois de uma experiência frustrada de tentar escrever um romance aos 18 anos, cheguei à conclusão de que precisava ler muito e amadurecer antes de escrever ficção novamente. O escritor é sobretudo um bom leitor. Em parte por esta percepção, em parte pelo tempo dedicado à diplomacia, só consegui estabelecer uma rotina de escrever ficção uma ou duas horas por dia quando já tinha 35, 36 anos. Foi isso que me permitiu escrever o Memória da pedra e começar um segundo romance.

Como foi o processo de edição do romance, da menção honrosa há três anos até a publicação por uma das editoras mais importantes do país?
Foi muito instrutivo. A edição do texto para se chegar à versão aprovada pela Companhia das Letras aconteceu ao longo de 2011, com dois pareceres da editora e duas versões revistas que apresentei. Em dezembro de 2011 o texto foi aprovado e programou-se o lançamento do livro para 2013, pois a programação de 2012 já estava fechada. Ao longo de todo o processo, tive um excelente diálogo com o Luiz Schwarcz e a Vanessa Ferrari, minha editora na Companhia das Letras.

Há, entre escritores e críticos, a proposição de que o romance estaria para o cinema assim como o conto para a fotografia. Memória da pedra impressiona pela tridimensionalidade das personagens e do enredo. Enquanto romancista, você concorda com a analogia?
A analogia me parece válida pela ideia de que o conto e a fotografia constituem recortes mais restritos de uma dada realidade ou objeto do que, respectivamente, o romance e o cinema. Mas entre fotografia e cinema há uma diferença qualitativa, essencial – instantaneidade x fluxo –, que estabelece uma fronteira clara entre uma arte e outra. Entre conto e romance a diferença me parece mais quantitativa do que qualitativa, tanto que há uma área cinzenta entre os dois, que é o conto longo ou novela.

O título do seu romance é sugestivo. A expressão também intitula um dos capítulos do livro e, silenciosa, como uma superfície invisível, habita um dos locais mais importantes da história. Poderia comentar como surgiu a ideia para o título do romance?
A origem mais direta do título é mencionada no capítulo a que você se refere. A pedra como lugar da memória de algo que não é acessível aos homens ou, ao menos, ao protagonista do romance, Eduardo. Mas há outros sentidos, todos referentes à opacidade, à impenetrabilidade da pedra, na montanha, no túnel, no chão das ruas. E a expressão ainda tem certa ressonância da poesia de João Cabral e Drummond, os dois poetas brasileiros que mais admiro.

A questão anterior me remete, em certa medida, ao pensamento do filósofo Maurice Merleau-Ponty. Sugestivamente, Eduardo, o protagonista, é um professor universitário com livros e artigos publicados sobre a obra do fenomenólogo francês. Poderia falar sobre essa escolha?
Na construção do personagem, eu queria que o Eduardo tivesse como especialidade um pensador que, direta ou indiretamente, influenciou o debate filosófico sobre livre-arbítrio x determinismo, questão central na trama do livro. A fenomenologia de Husserl e de Merleau-Ponty teve um papel importante nessas discussões, por questionar o dualismo cartesiano corpo x espírito e estabelecer o primado do corpo e da percepção. Na própria relação entre Eduardo e Laura, o tema da centralidade ou não do corpo (e da percepção de si) é importante, por conta de um trauma familiar vivido pela Laura. Laura nega os sentidos (a recusa do olhar) e reinstaura, sem saber, o dualismo cartesiano ao rejeitar o corpo: “Não o percebia como centro; era a continuação de si, que habitava e conduzia como uma entidade externa”.

Merleau-Ponty era uma escolha interessante também por compor com Sartre e Camus o trio de existencialistas franceses. Eduardo é, para mim, uma espécie de personagem existencialista no tempo e no lugar errados, herdeiro desastrado de Roquentin (A náusea) e Mersault (O estrangeiro). O problema é que a própria inserção do Eduardo em seu contexto familiar e urbano impede seu “estrangeirismo”, sua alienação. Guardadas as proporções, ele vaga de erro em erro, movido pela dúvida, como uma espécie de Hamlet carioca, para usar a expressão dada por um amigo generoso. Mas todas essas questões são subtextos do romance, tratados de maneira muito indireta. À exceção de uma frase ou outra da aula que Eduardo dá sobre livre-arbítrio em Os irmãos Karamazov, eu não quis explicitar nenhuma dessas questões, para não cair em didatismo.

Eduardo, Laura, Romário, Gilberto, Marina, Anita… muitas são as personagens construídas com elevado grau de complexidade. A morte, eu diria, atravessa todas elas, como de resto está presente no romance, na “memória da pedra” mesma, do início ao fim. Você concorda? Diria que a morte é uma das personagens?
A morte é um tema central do livro sim, tratado por dois ângulos. O primeiro e mais evidente é o enfoque social, da banalização da morte num contexto social marcado pela violência. O segundo é o enfoque mais existencial, de possível fuga de uma inadequação, como no caso da Marina ou mesmo do pai de Eduardo. Em ambos os casos, está o tema da responsabilidade individual, da relação entre liberdade de escolha e determinação em cada ato, inclusive naqueles que dizem respeito à vida e à morte.

Você situa a trama no início dos anos 1990 e reconstrói cenas marcantes do período, como o impeachment sofrido por Fernando Collor em 1992 e, em 1993, o jogo entre Brasil e Uruguai pelas Eliminatórias da Copa de 1994, partida que marcou o retorno de Romário à seleção comandada por Parreira. Por que os anos 1990? Ainda, a coincidência do nome – o garoto do livro e o atacante da seleção – procurou atender a algum objetivo específico?
Eu precisava situar a trama num contexto histórico de crise e mobilização política, que realçasse a alienação do protagonista como algo próprio, pessoal, que transcendia seu tempo. O começo dos anos 1990, época de manifestações pelo impeachment, me pareceu o mais adequado. Foram também os últimos anos em que morei no Rio de Janeiro, antes de me tornar diplomata e sair da cidade.

Quanto à escolha do nome Romário, foi mais do que uma coincidência ou uma escolha cifrada minha, como autor. Um dos ídolos cariocas da época e do personagem era o jogador Romário. Como o nome formal, legal, do garoto era incerto (ele mesmo diz não ter certeza se era Luís Alberto), a escolha do nome Romário foi feita por ele ou pelos outros meninos de rua. Nesse caso, é difícil não concluir que o jogador tenha inspirado a escolha.



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