A crítica de Lobão é pobre, de um maniqueísmo brutal
“Ser de la izquierda es, como ser de la derecha, una de las
infinitas maneras que el hombre puede elegir para ser un imbécil.”
José Ortega y Gasset
Quando alguém se desilude crescentemente com o discurso mainstream do lado do espectro político com que costumava ter muita simpatia, com a pobreza intelectual, a desonestidade jornalística, as racionalizações do partidarismo doentio, o espírito de manada que leva plateias a aplaudirem qualquer bobagem apenas porque vinda do “nosso lado”, e, não menos importante, a falta de senso de humor, esse alguém deve ter muito cuidado para não cair nas armadilhas correspondentes que existem do outro lado do campo político. Caso contrário, ele arrisca empobrecer o debate de ideias ainda mais do que aqueles que mantiveram na vida adulta as amarras ideológicas dos verdes anos.
De uns tempos para cá, eu desenvolvi uma técnica caseira, mas eficaz, para detectar se o sujeito não teria ido longe demais no ato de outra forma saudável de rever suas posições passadas. Quando você se depara com um ex-esquerdista falando de complôs satânicos como a “ditadura gay”, pode ir atrás de sua opinião sobre 1964 e, com virtualmente cem por cento de chance, se deparará com um discurso que classifica o golpe civil-militar como, no mínimo, um mal necessário. Fazer esse levantamento é importante porque comprova como o sujeito não apenas perdeu a noção do ridículo, como se mantém apenas na fachada como um defensor da democracia contra os assaltos da turba esquerdista.
Em seu novo livro, que é uma sensação nos meios de direita, João Luiz Woerdenbag Filho, o Lobão, não chega a usar adjetivos como “feminazi”, mas, como veremos, passa muito perto. E, proporcionalmente, sua compreensão de 1964 é cheia de defeitos.
Mas deixa primeiro eu dizer os poucos pontos onde concordo com o Manifesto do nada. A crítica à cena musical brasileira é interessante, notadamente quando Lobão aborda o rap, que virou apologia em rimas do Bolsa Família, “propaganda eleitoral gratuita”, tudo misturado a um saudosismo da pior qualidade, que idolatra figuras como Carlos Marighella – ninguém discorda que a mítica guerrilheira tem mais potencial para despertar os instintos consumistas dos manos do que, digamos, um rap sobre Vlado Herzog.
O conceito mais feliz de Lobão é o de “nacionalismo reativo”, a tendência político-cultural brasileira de incorporar ao discurso oficial e colocar a serviço do poder tendências outrora radicais (genuína ou pretensamente), com a idealização da “perseguição da brasilidade”. “Por que essa monomania em se forjar primitivo?”, pergunta Lobão. Nascido em 1957, ele escreve que, no final dos anos 1960, “a gente aprendia, junto com aquele monte de hino, a cantar o cancioneiro da nossa MPB subversiva nas aulas de moral e cívica”. Assim como a Semana de 1922 ganhou loas do ditador Médici, podemos imaginar, daqui a 50 anos, uma seção especial no site do DEM dedicada a defender as cotas raciais como uma das sete maravilhas nacionais, enquanto as escolas de base continuarão pouco menos ou mais sucateadas do que atualmente. Nossos governantes, desde sempre, adoram “vitórias simbólicas” que não deixam a esperança do brasileiro morrer.
O nacionalismo reativo demanda que mantenhamos a esperança, e de preferência sempre sorrindo. “Talvez esse comportamento seja fruto de um tipo coletivo de bipolaridade em que a alegria é um imperativo maníaco-depressivo”, escreve Lobão. No século 21, quando continuamos como sempre o país do futuro, pelo menos já nos tornamos um país “confiante de si”, que não pede mais licença ao Império para se meter nas querelas do Oriente Médio e onde mais der na telha, e dos cidadãos os “especialistas” e os governistas esperam admiração automática dessa “nova realidade”, independente de quais governos estamos apoiando e com quem estamos fazendo negócios mundo afora. O importante é que o país está “se firmando”, e quem não se vangloria só pode ser portador da “síndrome de vira-lata”.
Entretanto, na maior parte, a crítica sócio-político-intelectual de Lobão é pobre, de um maniqueísmo brutal. Apesar de “jamais [ter conseguido] ser um esquerdista completo”, Lobão já foi sim um esquerdista bastante empolgado, e até bem recentemente. No ano de 2004, ele ainda tocava em eventos do Partido dos Trabalhadores. Compreensivelmente, de lá para cá ele se decepcionou com alguns deslizes e crimes petistas, com a reação da militância, e passou a exercer seu direito de crítico ferrenho do petismo, confessando agora ter se livrado de vez de qualquer resquício do passado.
O problema com a conversão lobaniana não foi sua velocidade, muito menos a conversão em si; mas sua qualidade. Agora na direita, ele se comporta de uma maneira tola como talvez nunca tenha se comportado enquanto esquerdista. Um bocado de gente faz o trajeto da esquerda para a direita (direita liberal ou direita conservadora), ou simplesmente decide não se importar mais com rótulos, e geralmente aprendemos imensidões com sua autocrítica e crítica daquilo em que costumava acreditar e daqueles que compartilhavam da crença. Isso não é menos verdade das críticas e autocríticas daqueles que, não obstante, permaneceram mais ou menos na esquerda. Bastaria eu citar autores de uma pilha de livros aqui bem próxima de mim: Leandro Konder, Marco Antônio Coelho, Flávio Tavares, Alfredo Sirkis, Fernando Gabeira, Hércules Corrêa. Lobão refinaria consideravelmente seu pensamento se dialogasse com pelo menos um pequeno punhado desses escritores, ao invés de colocar em sua bibliografia autores como Leandro Narloch.
Mas autores como os acima citados poderiam perturbar a visão de mundo simplista de Lobão. Para ele, é preciso “ser canalha” para apreciar gente como Chico Buarque. A Universidade, esse monstro dos pesadelos do direitista que se recusa a crescer e disputar espaço de forma adulta e inteligente, também entra no retrato preto-e-branco:
Por ser orientado e concebido pela incompetência histórica da intelectualidade de esquerda em formar coisas possantes, todo estilo que venha a nascer sob a égide do universitário é, invariavelmente, produzido por esses seres de um ineditismo existencial constrangedor, todos eles bem abaixo da mediocridade e muito próximos da demência.
Algumas páginas depois, a coisa chegará a extremos de humor involuntário, quando o autor põe na conta da esquerda a indigência musical do sertanejo universitário – afinal de contas, o troço é universitário.
Pelo meio do livro, em seu capítulo quinto, Lobão ensaia um chamado à razoabilidade, ao diálogo entre as partes não extremadas, à “aproximação de pessoas que podem ter opiniões diferentes a respeito das coisas, mas podem também ser aliadas em outras tantas”. Tais pessoas dispostas ao diálogo felizmente existem, mas eu duvido que existam muitas prontas a perder tempo dialogando com alguém como Lobão, que, exatamente dois parágrafos adiante, já está acusando o governo federal de “pregar o ódio”, entre outros grupos, “ao branco, ao heterossexual, ao religioso em geral”. I beg your pardon?
Quanto às ideias do Manifesto do nada a respeito de Comissão da Verdade e da ditadura militar, há algo mais grave do que o hilário simplismo que vê no sertanejo universitário um gênero musical esquerdista. Se quisermos ser generosos com Lobão, podemos dizer que seu ponto de vista sobre a ditadura é infantil. O autor não é historiador ou jornalista investigativo, e sim um artista opinando sobre questões nacionais sérias em um livro com pretensões limitadas. Ele nem teria que dedicar um capítulo inteiro à Comissão e à ditadura, mas, já que o fez, o mínimo que podemos fazer em contrapartida é analisar brevemente suas conclusões principais. Até porque elas são uma prévia do que leremos ad nauseam no próximo ano, que marcará 50 anos do golpe.
Ainda bem cedo no livro, Lobão conta que, na época da ditadura, ele “não possuía discernimento do que realmente estava acontecendo comigo ou com o mundo”, e, pelo menos em relação ao mundo à sua volta, podemos dizer que que de lá pra cá Lobão não evoluiu muito.
Sua opinião sobre a implantação em 2012 da “tal Comissão da Verdade” já dá uma ideia de para onde a coisa vai. A Comissão, como sabe qualquer um, não foi uma imposição petista. Ela veio a nascer em um governo do PT, mas era defendida há tempos por vários partidos e congressistas, nem todos de esquerda, e sua implementação foi celebrada inclusive por integrantes do governo Fernando Henrique Cardoso (e pelo próprio ex-presidente).
Não é como Lobão vê as coisas. Para ele, é uma questão de interesses petistas levando a cabo revanchismos e punições seletivas. “Nossa governanta”, escreve com desprezo, chegou até mesmo a “se declarar vítima de tortura”. Talvez, em um dos links que acessou após uma busca no Google (ele é fã confesso desse método de pesquisa), Lobão tenha encontrado uma informação expondo a “farsa” da tortura de Dilma. Mas até aí, eu posso passar para vocês links que “informam” que não houve tortura de jeito nenhum durante toda a ditadura, nem mesmo cócegas na sola dos pés.
Lobão está atormentado com a possibilidade da Comissão da Verdade vir a punir apenas os assassinos a serviço do Estado, e não os assassinos que lutaram contra o Estado. Eu confesso que, já que a Comissão se deu a tarefa de investigar um período tão amplo da nossa história, pelo menos podia investigar e divulgar mais amplamente para as novas gerações os ataques de grupos extremistas de esquerda contra o Estado e a sociedade civil durante o governo de João Goulart. Cairia, assim, toda uma pirâmide de mentiras sobre a luta armada ter sido apenas um abnegado empreendimento de heróis democráticos contra uma ditadura militar.
Mas é simplesmente falsa a equivalência que Lobão e outros direitistas fazem dos muitos crimes cometidos por agentes estatais de um regime ilegítimo e os crimes em menor escala cometidos por integrantes de grupos armados opostos à ditadura. É de menor relevância que esses grupos, e seus integrantes que foram torturados e mortos, fossem a favor de implementar algum tipo de “democracia popular” no Brasil. Como ensinaram os alemães ocidentais e os italianos, não é preciso que um Estado mande as leis para o espaço, viole indiscriminadamente a integridade física de cidadãos e golpeie liberdades civis para que consiga eliminar grupos armados antidemocráticos. Pode-se levar para a cadeia os integrantes dessas facções sem ter que se instalar um Estado de cunho fascista. Quando instaura-se um regime antidemocrático, um Estado policial, os crimes de seus agentes serão naturalmente julgados aos olhos do mundo e da posteridade como mais graves do que os que vierem a ser cometidos pelos grupos que se levantarem contra o regime de forma armada – ainda mais se as vítimas destes grupos forem basicamente agentes a serviço do regime de exceção –, para não falar de sequestros sem vítimas e assaltos a propriedades privadas.
Esse é o consenso em vários países que tiveram ditaduras em décadas recentes e implementaram comissões da verdade. Lobão tem consciência de tal consenso, mas argumenta que
Responder que as mais de quarenta comissões da verdade espalhadas pelo mundo foram sempre unilaterais não é, definitivamente, argumentação sustentável para a nossa comissão seguir o mesmo exemplo, pois, uma vez constatado o equívoco e a falta de equanimidade no procedimento das comissões precedentes, todos nós, seres de boa vontade, chegaremos à conclusão de que um erro não justifica o outro.
Difícil imaginar como o autor poderia ter defendido seu ponto com menos sucesso.
E quanto ao golpe de 64 em si, o que Lobão nos conta dele? Ele diz que, às vésperas do assalto ao poder, “existia um clamor popular sem precedentes”, algo maior do que as passeatas das Diretas Já de anos depois. O que nos leva a perguntar: e daí? São pouquíssimos os assaltos ao poder (golpes ou revoluções) que não contam com pelo menos um razoável apoio popular. Permanece o fato de que o governo Jango era legítimo e o “clamor popular” levou à quebra da legitimidade.
Lobão diz, claro, que, às vésperas do assalto ao poder, o país “estava em vias de se tornar uma ditadura do proletariado, de se tornar um Cubão”. Falácia que nenhum historiador com o mínimo de domínio dos fatos leva a sério. O próprio Lobão, em seu parágrafo seguinte, informa corretamente que grupos armados de esquerda atentavam contra a República desde 1961. Pois bem, eles atentaram principalmente contra o governo de João Goulart. Os grupos armados eram principalmente dissidências do PCB, depois que este deixou de atacar veementemente o governo democrático brasileiro – sob ordens de Moscou, em um momento em que o regime soviético buscava uma acomodação maior com os Estados Unidos, o que incluía reconhecer a América Latina como “quintal” do Norte. Os grupos armados viam o PCB como um partido vendido à democracia burguesa de fachada e, sob inspiração, orientação e patrocínio de Cuba e China, começaram a tocar o terror. Mas mesmo o terror destes grupos ainda tinha que evoluir muito, antes de deixar de ser caso de polícia e passar a ser caso de exército. O golpe de 64 apenas desacreditou mais ainda a postura acomodacionista do PCB e deu ímpeto à luta armada – um ímpeto no final das contas suicida.
Quanto a Jango, ele obviamente tinha muitos defeitos (entre os quais, a falta de contato com a realidade que não lhe permitiu tomar medidas que quase certamente teriam abortado o golpe), e estava cercado por vários assessores extremistas, mas ele sempre esclareceu aos pecebistas que o apoiavam que não era um líder socialista, mas um político a favor da “humanização do capitalismo”. Às vésperas de ser apeado de Brasília, é correto dizer que ele estava muito mais preocupado em conter a influência radicalizadora de seu cunhado Brizola no governo do que em implantar comunas Brasil adentro. Dado esse contexto, Lobão apenas mostra ignorância quando diz que a “sanha por implementar uma ditadura do proletariado no Brasil através da luta armada [foi] a principal causa de vivermos numa ditadura militar por mais de duas décadas”. Na verdade, as principais causas foram o delírio reacionário, interesses financeiros, politiqueiros (de Lacerda, mas não somente), a clássica paranoia militar latino-americana e, aí sim, uma ambiguidade do governo Jango, que, meio para fins de propaganda para agitar as bases, às vezes ameaçava publicamente golpes com a mão esquerda sem ter nos bastidores sequer vontade suficiente para dar força ao braço.
O ciclo presente-passado-presente de Lobão se fecha nos momentos em que ele aponta a simpatia que o governo federal petista tem pela ditadura cubana. Como se isso anulasse a importância da Comissão da Verdade. E tome mais equivalência absurda: “se é obsceno se vangloriar por ser nazista, tão grave é se permitir ser solidário à causa cubana” – por mais desprezível que sejam os apologistas de Cuba, convenhamos que Emir Sader tem um pouco mais de chances de ir para o Paraíso do que teve um colunista do Völkischer Beobachter.
Eu comecei a ler o Manifesto do nada com a esperança de poder dizer ao final que se trata, pelo menos, de uma leitura mais proveitosa do que a xaropada militantemente politicamente correta que é jorrada todos os dias. Mas não posso fazer tal afirmação. Lobão é pessimista em relação ao cenário político-cultural brasileiro das próximas décadas. Mas se a direita brasileira quer concorrer para valer com a esquerda no campo das ideias, vai precisar mudar muito comportamento, entre os quais a racionalização de 1964, a mania de rotular as pessoas e o maniqueísmo que daí segue. E vai precisar de livros melhores, inclusive manifestos e panfletos melhores.
::: Manifesto do nada na terra do nunca :::
::: Lobão :::
::: Nova Fronteira, 2013, 248 páginas :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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