O livro O futuro pelo retrovisor brinca, desde o título, com a ideia de que estamos montando nosso futuro literário (mais apropriado seria dizer presente) a partir do passado. O que seria uma condição evidente, pois qualquer arte inevitavelmente olha para seu passado antes de produzir, é na verdade uma ênfase dada ao processo cada […]
O livro O futuro pelo retrovisor brinca, desde o título, com a ideia de que estamos montando nosso futuro literário (mais apropriado seria dizer presente) a partir do passado. O que seria uma condição evidente, pois qualquer arte inevitavelmente olha para seu passado antes de produzir, é na verdade uma ênfase dada ao processo cada vez mais corrente de construir a obra com fragmentos do passado. Embora nem todos os artigos do livro se encaixem nessa perspectiva – muitos tratam das obras em si, alguns sem se preocupar com o que seriam as referências dos autores estudados –, é de se esperar que uma coletânea de crítica literária sobre o presente faça essas reflexões.
O que espanta, entretanto, é a insistência em considerar as “inquietudes da literatura brasileira contemporânea” (subtítulo do livro) algo cada vez mais restrito ao universo da prosa. Não sei quando começou a tendência a chamar de “literatura” apenas a produção ficcional, sem incluir a poesia, o mais das vezes posta de escanteio, mas sei onde pode terminar: na incompreensão, cada vez mais presente em cursos de Letras espalhados pelo país, de como funcionam diferentes poéticas, para além das observações estagnadas sobre enredos, personagens e metaficcionalidades. Ou seja, nesse ritmo cada vez mais a crítica não terá a agudeza formal necessária para identificar, nas obras, suas especificidades e seus valores.
O futuro pelo retrovisor também se ressente muito desse estado. Longe de serem feitos por amadores, afinal a maior parte de seus autores é docente em universidades de prestígio nacional, os artigos do livro coincidem quase todos em tratar as questões formais das obras que leem em segundo plano, isso se ao menos aparecem. Muita crítica feita a partir e apenas com situações de enredo e personagens, quase nunca com perguntas capazes de fazer o texto ficcional revelar algo que não esteja explícito na narrativa. Assim, o motivo de existência da crítica fica comprometido de saída e a reflexão sobre a literatura contemporânea fica inevitavelmente manca.
Talvez falte a alguns autores uma convivência mais apurada com poemas. É impossível fazer uma análise aceitável de um poema sem considerar os parâmetros técnicos pelos quais foi construído, tão impossível quanto analisar uma música sem saber sua tonalidade, seu compasso ou seu andamento. No caso de romances e contos, é viável passar páginas comentando brevemente lances do enredo ou características de personagens – ainda fazendo paralelos pouco frutíferos com outros autores – sem parecer completamente fora do padrão. Confesso que esperava mais do livro nesse quesito, representando mais um retrocesso crítico do que uma análise de olho no retrovisor.
Como última nota antes de comentar brevemente os textos, há análises de vários autores que já estavam na Granta 9, coletânea dos “jovens” narradores brasileiros. Outra coisa que salta aos olhos – e diz muito sobre nossa situação editorial – é a proeminência de autores que publicam pela Companhia das Letras, editora competente em promover seus títulos e em tornar conhecidos seus autores. No entanto, um pouco mais de diversidade em nosso mercado seria interessante. Grandes casas editoriais não investem na literatura nacional, por inúmeros motivos. Um deles talvez seja a supracitada incapacidade de boa parte da crítica em conseguir sublinhar razões pelas quais certos escritores merecem mais atenção – e ignorar aqueles que apenas se promovem. Essa coletânea não faz uma seleção ruim de autores estudados, mas falha em explorar melhor a riqueza de suas obras.
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A primeira parte do livro, intitulada “Experiência, transmissão, alteridade”, traz textos dedicados às obras de Michel Laub, Bernardo Carvalho, Chico Buarque e Carola Saavedra. Apenas a última autora, analisada por Diana Klinger, recebe uma leitura de peso: Klinger dedica-se ao tema da falta de comunicação na obra de Saavedra, pontuada por exemplos de narrativas que problematizam sua própria recepção. A crítica identifica, com acerto, as relações triangulares entre os personagens presentes nos romances e permite discutir, ainda que preliminarmente, a questão da “impossibilidade de alcançar o outro” no que chama de “trilogia da separação” da autora chilena radicada no Brasil.
Os outros três textos da seção pouco ou nada acrescentam às leituras mais evidentes que seus objetos sugerem. O texto de Stefania Chiarelli sobre Diário da queda limita-se a expor como o romance tematiza o Holocausto e o preconceito, sem considerações mais elaboradas sobre a enxuta e interessante escrita de Laub. Já Alexandre Faria tem uma ideia interessante sobre Leite derramado – sua relação com a “cultura marginal” – mas seu desenvolvimento não convence, também por estar pouco colado ao romance de Chico Buarque. Por fim, Claudete Daflon faz observações interessantes sobre Nove noites, de Bernardo Carvalho, mas no fim do texto fica a sensação de que o romance já deixara claro tudo que diz.
A segunda parte tem desenvolvimentos mais interessantes, embora o texto de Ana Cláudia Viegas sobre Adriana Lunardi seja bastante curto e não tenha me animado muito a conhecer a autora, que ainda não li. O longo texto de Luciene Azevedo sobre Ricardo Lísias e suas ficções cada vez mais difíceis de classificar (autoficções? Mero uso da biografia em produtos majoritariamente ficcionais?) mostra o interesse que essa questão desperta, especialmente por se tratar de uma das linhas de força da literatura hispano-americana mais recente, ainda pouco desbravada no Brasil. Chamada “Literatura, vida, cena literária”, a seção se encerra com um ensaio de Gabriel Giorgi sobre a obra de João Gilberto Noll que, apesar de bastante sugestivo e interessante, dificilmente cativará aqueles que desgostam da obra do gaúcho.
Quatro artigos compõem a terceira parte do livro, “Releituras da tradição, reescrituras do moderno”. Os dois últimos comparam romances de Daniel Galera (especialmente Mãos de cavalo) e João Almino (Cidade livre) à tradição do Bildungsroman (romances de formação). Não posso aferir se o romance de Almino de fato apresenta essas características, embora a apresentação feita pelo texto de Graça Ramos aponte para isso. Por outro lado, a associação de Galera ao Bildungsroman é feita de modo apressado e pouco convincente por Leila Lehnen – caberia se aprofundar mais nas especificidades que Mãos de cavalo apresenta, evitando apenas pinçar os parcos elementos que permitem a comparação, que acaba ficando um tanto frouxa.
Jorge Wolff analisa a obra de Valêncio Xavier, que é mais antiga que a dos outros presentes no livro, mostrando sua estrutura feita por bricolagens, mas a relação que estabelece com Agamben parece menos interligada à obra (aliás, Agamben é muito citado em vários dos textos – parece ser a moda da vez). A quarta parte do livro é completada por um texto interessante de Giovanna Dealtry sobre Sérgio Sant’Anna, ainda que pouco aprofundado em seus problemas, e pela leitura de Pascoal Farinaccio de O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli. Nesse caso, a categoria crítica utilizada – ressignificação dos elementos trazidos para o romance – parece dar conta do livro; o que não se explica é porque se concentrar em um livro menos interessante de Mutarelli, em vez de falar de A arte de produzir efeito sem causa, romance muito mais elaborado e rico, até mesmo para a perspectiva crítica de Farinaccio.
Por fim, a quinta parte oferece um texto bem construído de Paulo Roberto do Patrocínio sobre Passageiro do fim do dia, novela premiada de Rubens Figueiredo, analisando sua relação com o paradigma do naturalismo. O que talvez falte nesse caso é uma leitura mais atenta à estilística própria ao naturalismo e sua divergência com a escrita de Figueiredo. Infelizmente, os dois últimos textos não mantém o nível: a leitura de Azul-corvo feita por Paloma Vidal é rasa e não permite visualizar melhor o que o romance de Adriana Lisboa teria de especial; por fim, Susana Scramim pouco acrescenta aos contos de Milton Hatoum em sua perspectiva, apesar de dispor de vinte páginas para tanto.
Ou seja, na fatura do conjunto dos textos temos alguns pontos de interesse, mas a maioria não consegue estabelecer um elemento fundamental da crítica: provocar o pensamento sobre a obra. Sem essa função, passamos de uma crítica literária exigente para uma paráfrase informada da literatura, permitindo aproximar autores das modas críticas vigentes, mas afastando-nos deles como leitores.
::: O futuro pelo retrovisor :::
::: Paloma Vidal, Giovanna Dealtry e Stefania Chiarelli (orgs.) :::
::: Rocco, 2013, 328 páginas :::
Vinícius Justo
Mestre em Teoria Literária pela USP.
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