Quando cientistas brigam

Qualquer teoria alternativa que busque explicar os fenômenos do universo precisa, no mínimo, abarcar tudo o que já se conhece e, idealmente, oferecer previsões verificáveis de fenômenos novos ainda por observar.

universe

Recentemente o colega de Amálgama (e parceiro co-autor de Pura Picaretagem, ahem) Carlos Orsi publicou aqui mesmo uma resenha sobre o livro 17 Equações que Mudaram o Mundo, do matemático britânico Ian Stewart. Ali pelo meio da resenha, Orsi provocou minha curiosidade ao dizer que o autor, além de expor o consenso científico sobre determinadas ideias, não se furta em apresentar algumas teorias concorrentes, até mesmo algumas radicalmente diferentes do que se considera como “apostas seguras” em projetos de pesquisa. Stewart então diz que desconfia de três pilares da cosmologia moderna, a saber: a expansão inflacionária após o Big Bang, a existência da matéria escura e da energia escura. Em seguida, ele diz que aposta num “Novo Paradigma do Universo”, proposto pelo topólogo Colin Rourke e pelo cosmólogo R.S. Mackay.

Bem, fui atrás do pdf que Carlos Orsi citou em sua resenha e, depois de sua leitura e digestão, procurei saber mais sobre seus autores. O que vi não me espantou. Mas primeiras coisas em primeiro lugar: falemos um pouco sobre as três ideias que incomodam Ian Stewart.

Lá pela década de 20, o astrônomo americano Edwin Hubble percebeu que praticamente todas as galáxias do universo estavam se afastando de nós. Mais do que isso, quanto maior a distância que nos separa de uma dessas galáxias, tanto mais rápida parece ser a chamada velocidade de recesso. A escalada da velocidade de recesso das galáxias parecia obedecer a uma simples função linear. Hubble então propôs uma constante, que levou seu nome, para medir essa taxa de afastamento. Não tardou para que os físicos fizessem a conexão entre o fenômeno observado por Hubble e as consequências previstas pela Teoria da Relatividade Geral de Einstein, cujas equações de campo mostram como a presença de matéria e energia deforma o espaço-tempo ao seu redor e como as deformações locais do espaço-tempo afetam a distribuição de matéria e energia. Em particular, as equações de campo da Relatividade sugeriam que o universo não poderia ser estático, tendendo, ao contrário, a se expandir ou a se contrair em uma dada época de sua evolução, dependendo de suas condições iniciais e de sua densidade, o que era exatamente o que Hubble observou.

Uma vez que a Lei de Hubble é linear, é possível imaginar que, se hoje as galáxias estão se afastando de nós, um dia já estiveram mais próximas. Talvez até tudo o que vemos tenha estado em contato próximo há muitos bilhões de anos atrás. Talvez tudo estivesse concentrado num único ponto de densidade e temperatura infinitas. De fato, invertendo-se a reta que Hubble obteve em seu observatório, foi possível fazer uma primeira estimativa grosseira para a idade do universo – hoje esse tempo foi refinado para algo em torno de 13,8 bilhões de anos de idade.

Essa é, basicamente, a ideia por trás do Big Bang. Cerca de 14 bilhões de anos atrás o universo, que estava totalmente concentrado numa singularidade, sofreu alguma espécie de desequilíbrio (não sabemos como, nem por que) e passou a se expandir e a se resfriar rapidamente. Nos anos 40, o russo George Gamow estimou que, se isso fosse verdade, deveríamos ser capazes de detectar os “ecos” do Big Bang, ou seja, os fótons primordiais produzidos pela explosão “esticados” nos últimos bilhões de anos. Gamow calculou que esses fótons altamente energéticos em seu princípio deveriam estar na faixa de micro-ondas atualmente. Tal fato foi realmente observado nos anos 60 por Penzias e Wilson, que ganharam o Prêmio Nobel pela confirmação do que hoje chamamos de radiação cósmica de fundo de micro-onda. Existem muitas outras evidências em favor do Big Bang, mas por ora basta saber que, mesmo que não se saiba nada sobre o que o teria ocasionado, e sobre como eram as condições do universo no momento da explosão, o modelo permanece o melhor que temos para explicar tudo o que vemos lá fora. Voltarei a esse ponto mais tarde.

A matéria escura é uma substância fantasmagórica, de composição desconhecida (desconfia-se que não seja feita de elétrons, prótons e nêutrons, como tudo o que podemos tocar e sentir aqui na Terra) e que, entretanto, interage gravitacionalmente consigo mesma e com a matéria normal. Os primeiros indícios fortes que algo assim existe foram detectados nos anos 70, quando a americana Vera Rubin preparava sua tese de Doutorado em Astrofísica medindo a velocidade tangencial de deslocamento de estrelas de galáxias vizinhas. O que Rubin percebeu foi que, em galáxias espirais parecidas com a nossa Via-Láctea, as estrelas fora do bojo central não pareciam obedecer a órbitas previstas pelas Leis de Kepler – suas órbitas não eram newtonianas. Isso era totalmente inesperado e não haveria socorro possível pela Relatividade, pois as velocidades e forças gravitacionais em questão eram baixas demais para necessitarem de uma correção relativística. Só havia duas formas de resolver a questão: ou a dinâmica newtoniana teria que ser substituída por alguma outra formulação que fosse diferente do que conhecemos em escalas galácticas de distância (o que se chama comumente de MOND, ou dinâmica newtoniana modificada na sigla em inglês), ou havia uma distribuição de matéria invisível e opaca, porém muito uniforme, envolvendo cada galáxia como uma bolha. Rubin chamou essa matéria faltante de matéria escura, e o nome ficou. Observações de outros fenômenos emprestaram força à hipótese da matéria escura, mas o fato permanece que não temos evidência direta dela até agora.

A energia escura é um conceito um pouco mais complicado de explicar num só artigo, que já está ficando longo. Para resumir, direi apenas que, para dar conta de explicar o fato de que a taxa de expansão do universo parece estar acelerando com o passar do tempo, os cosmólogos propuseram que a constante cosmológica, presente nas equações de campo da Relatividade e inicialmente rejeitada por Einstein como “o maior erro” de sua carreira, poderia ser interpretada como um termo de pressão negativa, que força a expansão do próprio tecido do espaço. De novo, embora nunca tenhamos observado diretamente a energia escura, há várias evidências indiretas que apontam para sua existência.

Todas essas evidências indiretas sobre a taxa de expansão explosiva do Universo e sobre a existência das elusivas matéria e energia escuras se complementam. Conjuntamente, formam o que os cosmólogos chamam de Modelo Padrão da Cosmologia, ou, quando estão querendo impressionar pessoas numa festa, de Modelo Lambda-Matéria Escura Fria. Podemos não ter o mesmo grau de certeza quanto a esse modelo cosmológico quanto temos, digamos, sobre a Teoria da Evolução de Darwin, ou a Teoria da Relatividade, mas ele é o mais aceito pela comunidade científica porque explica mais fenômenos que realmente observamos lá fora com a menor quantidade de hipóteses que se conhece.

Qualquer teoria alternativa que busque explicar os mesmos fenômenos precisa, no mínimo, abarcar tudo o que já se conhece e, idealmente, oferecer previsões verificáveis de fenômenos novos ainda por observar. Os propositores da MOND fizeram isso, assim como os famosos (famigerados?) criadores da Teoria de Cordas. A MOND nunca conseguiu alcançar popularidade, porque propõe uma tremenda modificação ad hoc a um hit de sucesso de quase 400 anos. A Teoria das Cordas, por outro lado, fala muito pouco sobre o que já existe e busca lançar luz principalmente sobre fenômenos difíceis de observar. As duas são conjecturas bastante ousadas, mas a primeira é marginalizada e outra é um tópico popular de projetos de pesquisa. Por quê? A resposta não é simples, pois envolve desde o cacife político dos “pais” das teorias na comunidade científica até o imponderável e inquantificável apelo estético de cada uma delas. A MOND não tem uma estética muito agradável – os físicos detestam mexer naquilo que já funciona, na ausência de excelentes motivos para tanto. Já a Teoria das Cordas possui um apelo estético bem mais elegante, por tudo o que dizem (quando eu finalmente terminar de absorver o be-a-bá desse monstrinho eu volto aqui e ofereço meu pitaco para vocês).

O tal Novo Paradigma do Universo de Rourke e Mackay tenta se encaixar na categoria de apelo estético. Eu gostaria de comentar mais sobre isso, mas o fato é que a teoria deles ainda está num estágio muito embrionário. O pdf oferecido dá poucos detalhes sobre a forma final do Novo Paradigma e expõe apenas a ideia geral – a de que não existiu um Big Bang e que o Universo é muito, muito mais antigo do que se pensa. O único comentário qualitativo que posso fazer sobre a proposta dos dois é que, bem, cosmologias alternativas que prescindem do Big Bang existem aos montes. Cada uma delas aborda algum problema cosmológico ainda não resolvido (por exemplo, a questão de como as galáxias adquiriram o tanto de momento angular que exibem) e apregoam (em geral de forma estridente) que o Modelo Cosmológico Padrão não pode explicar adequadamente tal coisa. Ora essa, num campo tão complexo quanto a Cosmologia, é possível afirmar (e zombar de) quase qualquer teoria; o difícil é ir lá e provar o que se diz, ou ao menos apontar o caminho. Correndo o risco de parecer conservador, prefiro apostar minhas fichas no Modelo Padrão. E digo isso como alguém que se sente mais filosoficamente confortável com cosmologias cíclicas de criação e destruição do Universo…

E aqui chegamos no ponto central da birra de Rourke e Mackay. Ambos reclamam muito que já não há espaço para teorias concorrentes no mundo da física. Sustentam (não sem certa razão) que qualquer cientista que queira pesquisar modelos alternativos à coqueluche do momento são ostracizados pelos colegas e esquecidos pelas agências de fomento. Seus projetos jamais conseguem reunir financiamento adequado, nem tampouco atraem alunos de pós-graduação interessados naquela linha de trabalho. A crítica de Rourke e Mackay, portanto, me parece muito mais uma briga política por recursos no melhor estilo Big Science do que propriamente a oferta de uma teoria alternativa viável ao Modelo Padrão da Cosmologia.

Quando e se eles desenvolverem uma forma final ao seu Novo Paradigma, com cálculos e tudo, eu vou parar de novo e reavaliar suas alegações. E se o Novo Paradigma puder prever coisas novas, em vez de apenas reclamar das descrições do Modelo Padrão eu vou levá-lo um pouco mais a sério.

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  • Gerson B

    Também fui ler o pdf depois de ler o texto do Orsi. Não entendi muita coisa. Procurei mais referências na rêde sobre a nova teoria e quase não achei nada. Parece que tá bem no começo.

    Acho que não sou tão burro quanto pensei. Continuarei esperando uma tradução em leiguês.

    Também gosto de cosmologias cíclicas.

  • Rodrigo

    Uau, belíssimo texto. Nunca tinha entendido bem o cálculo da idade do universo e aqui foi tão simples. A matéria escura também, muito bem colocado.

    Agora aguardo (cobro) a mesma competência e elegância para Energia escura e a Teoria das Cordas! hahaha

  • http://otelhado.wordpress.com Daniel Bezerra

    Eles até apontam um material básico de referência no final do pdf, mas nada do que vi me impressionou. Que o Modelo Padrão da Cosmologia tem buracos e problemas não-resolvidos todo mundo sabe. Propor soluções fora do MP para esses problemas é relativamente fácil. O difícil é a mesma solução explicar o resto…

    Rodrigo, qualquer hora eu dou um pouco mais de atenção à matéria escura e à energia escura. Fique ligado!

  • gladston

    Exelente texto. Bem explicativo e direto.

  • Leonardo Busato Lorenzon

    Texto muito bom, mas faltou uma boa explicação sobre a interação entre a matéria comum e a matéria escura em relação as forças gravitacionais que podem ser a resposta chave para a expansão do universo como previsto por uma constante cosmológica.

  • http://otelhado.wordpress.com/ Daniel Bezerra

    Oi, Leonardo

    Eu provavelmente vou voltar à matéria escura e à energia escura em colunas futuras. Fique atento!

  • http://caducando.com Otávio

    Acho que essa discussão política, queira ou não, precisa acontecer. Se tantas outras teorias científicas – como o caso de cordas – se mantém em voga por causa de cacife e alegações estéticas filosóficas (ou seja, não cientificas, independente de quantas pessoas concordem com elas) não faz sentido negar fundos para um estudo que, claro, ainda não está pronto e que precisaria, sim, de gente trabalhando. A discussão é saldável e é o que faz da ciência a ciência.

    Enfim, aqui mesmo no Amalgama tem uma pequena resenha de um livro do Novello, que estuda uma alternativa ao modelo inflacionário Big Bang.