A sete chaves

Em novo romance, Marcelo Ferroni se lança no gênero policial, para explorar temas como ganância e ciúme.

"Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam", de Marcelo Ferroni

“Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam”, de Marcelo Ferroni

Depois da estreia premiada com o romance Método prático de guerrilha (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante em 2011), Marcelo Ferroni apresenta um novo trabalho: Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam. Neste segundo livro, o autor se lança ao gênero policial para explorar a ganância, o ciúme e a vingança que permeiam a relação de uma família rica em iminente derrocada.

O ponto de partida é o escritor Humberto Mariconda, que, num jantar em restaurante japonês do momento, conhece Júlia Damasceno. Filha de família endinheirada, Júlia é blasé e completamente desinteressada por Humberto e o livro dele recém-lançado. No entanto, eles se envolvem. Ou algo próximo a isso, pois os poucos encontros acontecem devido à persistência de Humberto, sempre no encalço dos porres de Júlia.

Portanto, é surpreendente (também aos leitores) o convide que ela faz a Humberto: passar um fim de semana com a família dela na centenária fazenda Santo Antônio, orgulho do patriarca Dr. Ricardo Damasceno. Sem titubear, o escritor embarca na viagem e se encontra no seio de uma família disfuncional que, em meio à pompa e à luta contra a decadência, tenta esconder disputas e interesses. Entretanto, é no decorrer de uma noite tempestuosa, marcada por álcool, jogos de cartas e histórias macabras do passado escravagista da fazenda, que as trocas de farpas e brigas culminam em um crime.

Tal como esperado, o enredo é cheio de suspeitos e reviravoltas, principalmente devido ao fato de ter ocorrido num quarto fechado. Quem cometeu o assassinato? Como o fez? Por que razões? Essas são as perguntas que pairam entre os personagens que estão absolutamente ilhados na fazenda, sem possibilidade de contato com o mundo exterior. E é justamente nas tentativas de responder a essas questões que rancores, ressentimentos e medos afloram, expondo a constante disputa por poder que marca a história dos Damasceno.

Por se tratar de romance policial, sobretudo um que tem como base a estrutura de crime de quarto fechado, o autor corresponde à necessidade de criar inúmeros personagens, todos potencialmente suspeitos. No entanto, talvez por serem apresentados quase todos de uma só vez (e são muitos), ao longo da leitura sente-se alguma dificuldade em identificá-los. Na movimentação soturna de inúmeros suspeitos, a identificação de personagens e suas motivações é algo que demanda dupla atenção. Seja como for, é admirável a construção de tantos personagens e tantas motivações distintas e críveis para um único crime.

Todavia, é preciso anotar que algumas situações soam artificiais. Ainda que em recente reportagem o autor esclareça que nesse trabalho “as situações não são muito levadas a sério” e que, afinal, em momento algum ele se compromete com a verossimilhança, algumas cenas são pouco convincentes e, acima de tudo, acrescentam muito pouco ao enredo. Em meio a toda tensão que envolve um assassinato, por mais ilhados e incomunicáveis que estejam, dificilmente os envolvidos se dedicariam a uma sessão de mesa branca a fim de pedir ajuda aos espíritos ou jogariam cartas com altas apostas em dinheiro madrugada adentro. É verdade que essas situações fazem referência ao enredo (a questão dos escravos que sumiram na fazenda e estão enterrados nas paredes, as disputas por poder etc.), mas soam distantes do clima imposto pelo desenrolar da história.

Apesar de um estilo direto, a mudança de voz narrativa sem prenúncios ou justificativas, que oscila entre a primeira e a terceira pessoa, e a estruturação de diálogos, que lança mão de travessões e maiúsculas no meio da frase, por vezes dificultam a leitura. Muito embora seja possível compreender a intensão de ruptura e desnorteamento de Humberto por meio desses artifícios, o efeito perde força talvez por Humberto não emplacar como foco narrativo, uma vez que está quase sempre à margem das ações. Nesse sentido, a sensação é que falta uniformidade estética ou justificativa marcante às mudanças pelas quais passam o texto.

De forma alguma estas observações implicam em um livro mal executado. Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam provoca o leitor e é um teste à perspicácia, afinal, lançando mão de vários elementos típicos da literatura policial, o segredo é guardado a sete chaves até as páginas finais. E, ao término da leitura, impossível não recuperar a abertura de Allan Poe ao seu O gato preto, citação que não só permeia esse novo livro de Ferroni, mas que diz muito sobre o personagem Humberto Mariconda:

Meu imediato propósito é apresentar ao mundo, plena, sucintamente e sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Pelas suas consequências, estes acontecimentos, me aterrorizam, me torturaram e me aniquilaram. Entretanto, não tentarei explicá-los. Para mim, apenas se apresentam cheios de horror.



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