Literatura política

"O Brasil é bom", de André Sant’anna. (Companhia das Letras, 2014, 192 páginas)

“O Brasil é bom”, de André Sant’anna. (Companhia das Letras, 2014, 192 páginas)

“Jesus Cristo é nosso”

Novo livro de André Sant’anna, O Brasil é bom é, com o perdão da redundância, bom. Ou melhor, é ótimo.

Em um Brasil de insatisfação generalizada que, no mais das vezes, ganha corpo por meio de uma crítica sem cara ou de um ufanismo anacrônico, os primeiros textos da coletânea de contos fazem um resgate – necessário – de contradições (cômicas não fossem trágicas) que fingimos desconhecer e que, justamente por isso, são extremamente atuais.

Nesse sentido, “Deus é bom nº. 8”, texto de abertura, situa a atual conjuntura sociopolítica do país a partir de uma metáfora bíblica muito bem construída. Tome-se a passagem:

Jesus lá, armando as parada, mantendo os vendilhões calmos, garantindo aos vendilhões que, há há hú hú, o Jesus Cristo é nosso e que a classe baixa-alta está sob controle comprando iogurte e batata chips, e se Jesus por acaso vier de novo com esse papo de amor ao próximo, a própria classe baixa-alta vai botar Jesus na cruz. A classe baixa-alta adora crucificar os outros.

Há algo de Glauber Rocha nessa união reveladora entre tradição e novidade – aliás, o cineasta aparecerá literalmente mais para o fim do livro –, contudo, sem a esperança glauberiana de transformações pela via da revolução.

O segundo conto, “O Brasil não é ruim”, é repleto de (falsas) negações (a começar pelo título), isto é, negações das negações, e possui um desfecho que, de tão óbvio (a falsa verdade do título do livro), causa impacto: “Por isso é que o Brasil é bom”.

E assim caminham os contos subsequentes, ora mais narrativos, ora próximos da crônica, mas sempre curtos, implacáveis, corajosos quanto às feridas do país (não evitam temas polêmicos ou delicados) e muito bem escritos. A linguagem mescla oralidade e acabamento e faz de André Sant’anna, como sabemos, um dos principais autores da literatura brasileira contemporânea.

Lodaçal sem escapatória

Mais ou menos no primeiro terço do livro, o país composto por indivíduos tão iguais na desigualdade é retratado em “Só”, conto que termina da seguinte forma:

Você está só porque tem dinheiro.
Você está só porque não tem dinheiro.
Você está só por causa do dinheiro.
Só dinheiro.
Só.

Esses cinco parágrafos, compostos por apenas uma linha cada, sintetizam o tema do livro até o momento. Só por (tudo) isso, não há escapatória, ou seja, como escrito na primeira frase do conto: “É, você está muito só”.

Que mais poderia ser dito?

O leitor que não se ateve no sumário ao número de páginas dos contos pode pensar: ainda tenho mais da metade do livro pela frente, até agora a obra é excelente, mas o autor não vai começar a se repetir? É então que, após três contos nesse mesmo formato, um deles escrito em “portunhol”, chega “Lodaçal”. A leitura é mais “amarrada” – e a escrita ainda mais lapidada – do que antes, passam as 3 páginas e o texto não acaba, e o leitor pode querer conferir quantas páginas tem o conto: 51.

Conquanto não haja indicação de que o livro se divide em seções (apenas há sobre os títulos dos contos a indicação “Histórias do Brasil”), com “Lodaçal” abre-se uma nova seção. O texto já havia sido publicado na coletânea, organizada por Ronaldo Bressane, de contos inspirados em canções de Chico Buarque. A narrativa de fôlego, circular e inventiva apresenta uma ambiência ficcional (baseada na canção “Brejo da Cruz”) assentada na mesma realidade sobre a qual se fala nos contos anteriores. Os futuros imaginados pelos personagens, os meninos Chiquinho e Toninho, são traumaticamente interrompidos nesse lodaçal em que as crianças “comiam luz”.

Autoficção

Após “Lodaçal”, seguem-se contos mais curtos, embora mais longos que os da primeira parte, com os seguintes títulos: “A dificuldade da poesia”, “A história da revolução”, “A história do rock”, “A história do futebol” e “A história da Alemanha”. Essas narrativas compõem o que podemos considerar a terceira parte do livro.

“A dificuldade da poesia” é um texto metalinguístico, em prosa, em que as frases são separadas por travessões. O lirismo, que em “Lodaçal” já dera as caras, passa a ser parte importante das narrativas, que não obstante mantêm a perspectiva crítica. Este será o tom dos últimos quatro contos.

As narrativas finais pertencem ao gênero da autoficção, isto é, gênero em que o ponto de partida do autor para escrever a sua ficção é explicitamente autobiográfico. Percorrendo temas como música, futebol, viagens, literatura e família, o narrador-protagonista apropria-se dos personagens de sua história – sobretudo George Harrison, mas também Tostão, Glauber Rocha, Robinson Crusoé, entre outros – história que, nessa medida, se confunde com a do próprio autor, André Sant’anna. É digna de destaque a habilidade do escritor ao transitar entre realidade e ficção, primeira e terceira pessoas, música e literatura, invenção e memória.

Considerados em perspectiva, esses “devaneios autobiográficos”, conforme expressão do narrador – e nem por isso menos fictícios, poderíamos acrescentar –, conferem ainda mais força ao aspecto político do livro, visto que se explicita de onde parte a crítica, para onde ela viaja, com quem ela dialoga, bem como seus limites e suas próprias contradições. Dessa forma, evita-se que a obra soe panfletária ou pouco literária. Pelo contrário, trata-se de um livro excelente, imprescindível para pensar e, quem sabe, ressignificar o Brasil de hoje:

Vou dizer uma coisa pra você, uma coisa que, no país da Copa do Mundo, dos Jogos Olímpicos e das instituições de espancar crianças seria considerado uma blasfêmia: a Alemanha é muito melhor do que o Brasil. Pode crer.

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Renato Tardivo

Psicanalista e escritor. Publicou os livros de contos Do avesso (2010) e Silente (2012), além de Porvir que vem antes de tudo: Literatura e cinema em Lavoura Arcaica (2012).


  • Sílvia

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