O futebol e a Jornada do Herói

Dois episódios marcaram minha visão do futebol e da vida, e devem ter contribuído pra que eu fosse seduzido pelo desejo de me tornar roteirista.

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O Brasil estreou contra a Croácia e, pela primeira vez, Felipe, meu filho, com quase dois anos, vestiu a camisa do Brasil. Meio sem entender o que estava acontecendo, divertiu-se quando gritamos “Gol!” e nos imitou, erguendo os braços e gritando: “Gol do Bagil!”

Como bem disse o David Butter nesse belo texto, a Copa é das crianças, pois só elam captam de fato o espírito que move a paixão pelo futebol e pela seleção – nós, adultos, deixamos, ao longo dos anos, que ele se contamine por questões alheias.

E então me lembrei das duas primeiras memórias futebolísticas que tenho. Nelas, a vida, primeiro com generosidade, e depois com implacável dureza, pareceu querer me ensinar do que é feita.

Maracanã, 8 de novembro de 1981. Nove anos antes, quase nessa mesma data, no aniversário do Flamengo, o Botafogo impusera uma humilhante derrota por 6 x 0 ao time do meu coração. Durante nove anos, a torcida rubronegra tivera que suportar, cutucando a ferida, a bandeira alvinegra com a lembrança desse placar pendurada no gradil das arquibancadas do Maraca a cada encontro entre os dois times.

Com sete anos de idade, lembro-me dos três anéis do estádio lotados – arquibancada, cadeiras e geral -, naquela massa humana que o padrão FIFA torna agora apenas lembrança. Recordo-me do placar de lâmpadas amarelas fixado ao peitoril da arquibancada com sua animaçãozinha tosca da bola encobrindo o goleiro e das letras garrafais surgindo: “Gooooooooool!”.

Na arquibancada, a mesma bandeira do Botafogo, lembrando o 6 x 0. Em campo, do lado de lá, o único jogador presente em campo nove anos antes: Jairzinho.

Tita, o ponta-esquerda do Flamengo, então com 13 anos, assistira ao jogo no estádio. Zico, em 72, fora dispensando por Zagalo no vestiário e não entrara em campo. Júnior, agora em 1981, completava 500 jogos com a camisa do Flamengo.

Aos seis minutos, Nunes com sua cabeleira abre o placar, e a torcida explode em coro: “Queremos seis! Queremos seis!”

Num dia mágico, para descrédito e horror dos botafoguenses, seguiram-se Zico, Lico, Adílio, novamente Zico de penâlti e finalmente Andrade, faltando apenas três minutos para o final.

Na saída, nos ombros do meu pai, meu sentimento era um misto de reverência e medo pela massa humana ensandecida nos túneis do Maracanã.

Minha segunda memória de futebol, situa-se pouco menos de oito meses depois: 5 de julho de 1982, Copa da Espanha, Estádio do Sarriá. Assisti ao jogo durante ou depois de um feijoada na casa de meu amigo Carlos Augusto, filho do porteiro do prédio vizinho ao nosso, no Jardim Botânico. Chorei desesperadamente – uma das maiores tragédias de nosso futebol, menor provavelmente apenas que a de 1950. Precisariam passar-se mais duas copas ainda antes que eu pudesse ver o Brasil campeão.

Esses dois episódios marcaram minha visão do futebol e da vida. Ambos contêm tantos elementos épicos, heroicos e trágicos, que devem ter contribuído pra que eu fosse seduzido pelo desejo de me tornar roteirista, obcecado com a ideia de reproduzir muitas e muitas vezes essas mesmas narrativas com outras roupagens.

Como não enxergar nessas duas epopeias os elementos da Jornada do Herói – o monomito revelado por Joseph Campbell e que se esconde atrás de todas as histórias que contamos?

Como seria possível que o acaso e o caos juntassem tantos elementos em uma tarde qualquer de domingo no Maracanã? A bandeira com o 6 x 0, a presença de Jairzinho, de Zico, de Tita, Júnior completando 500 jogos. Como é possível que 90 mil pessoas peçam um placar e uma vingança, e que eles se tornem realidade? Como, aos sete anos, nos ombros de seu pai, não acreditar que o futebol é mágico diante de uma narrativa perfeita assim?

Oito meses depois foi como se a vida quisesse me mostrar sua outra face – primeiro, generosa, depois, crua e triste.

Um mês e pouco antes, eu estivera frente a frente com eles no Hotel das Paineiras, onde se concentrava a seleção. A camisa autografada por Waldir Peres, Leandro, Sócrates, Falcão, Júnior, Zico e Telê, entre outros, resplandece emoldurada hoje no quarto de Felipe.

Nunca mais haverá uma seleção como a de 82. Naquela tarde de 5 de julho, com Paolo Rossi e a Azzurra, foi como se Sauron e sua hostes de orcs tivessem vencido a Guerra do Anel.



  • Rafael Galvão

    Eu, longe do Rio, lembro de 81 apenas como a vitória — na bola e no braço — sobre o Cobreloa, e o passeio sobre o Liverpool. Mas Sarriá ainda é uma memória que dói, Vai doer sempre.

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