O livro pode ser lido como um dos momentos em que o Modernismo começou a ser estruturado em palavras
A ideia era genial: um único lugar em que todos os amigos escrevessem aquilo que quisessem. Poderiam juntar desenhos, reportagens, comentários. Talvez compartilhar bobagens, como listas de compras no supermercado, ou deixar recados. Poemas, pensamentos melosos, frases repletas de trocadilhos, valia qualquer coisa. Poderiam fazer declarações de amor. Poderiam, inclusive, assinar seus escritos com pseudônimos. Não existiriam julgamentos ou censuras: quem desejasse replicar, poderia responder (ou não). Seria uma construção coletiva, um sonho compartilhado, algumas vozes unidas no mesmo local. Um coral não cantado, mas escrito.
Não, não é o Facebook ou qualquer outra rede social. É um equívoco achar que as redes sociais foram estabelecidas nos últimos anos, disseminando-se graças à evolução tecnológica. Todo momento em que um grupo de amigos se reúne para escrever, brincar e trocar ideias por escrito também é uma rede social, mesmo que o depositório destas palavras seja um simples caderno. Com algumas vantagens, pois, ao contrário dos bytes e das telas de computador, cadernos sobrevivem aos tempos, e podem acabar virando um livro, como é o caso de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (Biblioteca Azul/Globo), de Oswald de Andrade.
Em 1918, Oswald de Andrade alugou uma garçonnière na rua Líbero Badaró, em Sâo Paulo. Na entrada, colocou um caderno de amplas dimensões, para que os visitantes pudessem deixar mensagens ou qualquer tipo de escrito. Oswald conhecia os seus amigos, sabia que deixar tantas páginas em branco à disposição era como oferecer doces para um diabético, carniça para um urubu. Quem possui amigos como Monteiro Lobato, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Vicente Rao, Ignácio da Costa Ferreira e Sarti Prado, entre outros, sabe que o caderno não escapará ileso da sua sina e, no espaço de quatro meses, as folhas seriam implacavelmente atacadas pela horda de artistas que as cercavam. Um tentando ser melhor que o outro, em um desfile de habilidades e estilos.
Enganam-se aqueles que pensam que o Modernismo nasceu na Semana de Arte Moderna de 1922. Todo movimento artístico começa a ter erupções muito antes da sua gênese. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo pode ser lido como um dos momentos em que o Modernismo começou a ser estruturado em palavras. É visível o confronto entre os estilos literários vigentes até então e uma nova ideia de literatura. Os escritos deixam entrever o conflito interno entre frases formais e experimentalismos, entre ideias ultrapassadas e a antropofagia. Irresistível, o Modernismo espreitava atrás das frases, às vezes vindo à tona, em outras submergindo.
Os autores do diário coletivo fazem uma brincadeira com o Arcadismo, identificando-se somente através de pseudônimos, o que gera uma nova possibilidade de leitura à medida que tenta se identificar cada artista através do pseudônimo utilizado. É neste caderno que surge, pela primeira vez, Miramar, pseudônimo de Oswald de Andrade, que logo ganharia um livro somente seu, Memórias sentimentais de João Miramar. Em vários parágrafos do caderno só é possível adivinhar quem é o autor das palavras através do estilo, assim como os experimentalismos com a linguagem chegam às raias da incompreensão, em especial quando os autores do caderno dialogam por escrito:
“- Julho 06 –
11 horas. Ninguem. Miramar com certeza ás voltas com a ‘cóva’, tritura palitos com algodão embebido em creosoto. Ventania x está um furacão, de pyjama verde gesticula aos berros com a Pina de chambre sobre a capacidade artistica dos nossos fazendeiros e o seu gosto pela Lisboa em camisa. Eu só no divam largo de ramagens deixo escapar pensamentos ligeiros como bocados de fumaça. O ultimo capitulo d’Os maMaias, o cruzamento de minha cadellinha, a roupa do alfaiate, a demanda da Senhora dos colletes… Depois tudo se confunde e é apenas…
– … Apenas o quê? Vae ao Diogo. A amnésia progride.
Vent.”
O livro pode ser lido como um retrato desordenado das inquietações criativas de um grupo de jovens. A sua estrutura confusa, com sucessivas frases e relatos diferentes sobrepostos, confundem o leitor que espera algum tipo de nexo. Não se pode esquecer que O perfeito cozinheiro das almas deste mundo foi criado para ser um diário, não um livro. Ainda que tenha quase 100 anos, é uma obra contemporânea em muitos aspectos, em especial por não ter uma autoria definida e por ser constituído de inúmeros recortes, assemelhando-se a um quebra cabeças com peças faltantes. O melhor tipo de leitura é aquela que esta obra acaba propondo: uma leitura que não busque sentido, e sim mergulhe nas sensações, nos encadeamentos das palavras e na força das imagens evocadas.
Contudo, aos poucos uma história de amor se insinua no meio das páginas do diário, assim como uma fascinante figura feminina: Miss Cyclone, Cíclone, Ventania ou outros apelidos adotados por Deisi, a mulher por quem Oswald se apaixonou e cuja presença se tornou tão forte e decisiva para os seus amigos que ela acabou virando a “musa involuntária” do grupo. Miss Cyclone é a principal voz do caderno, participando em condições iguais com os frequentadores do apartamento, brincando e ralhando com todos. Mais do que tudo, se percebe a completa e irrestrita paixão de Oswald de Andrade por Deisi, manifestada tanto em declarações de amor quanto em crises de ciúme. Uma pessoa esfíngica, e agindo de forma apropriada com o seu apelido, Deisi tinha outros amores ao mesmo tempo, assim como possuía mistérios que eram exaustivamente sondados pelo escritor apaixonado.
Como toda boa história de amor, esta não acabará bem: enfraquecida por um aborto, Deisi morre no hospital, casando in extremis com Oswald de Souza. A última página do diário contém a reportagem em que é informada a morte de Deisi. Sem querer, o caderno acabou percorrendo o sentimento que uniu duas pessoas: do início da relação, com as narrativas e trocadilhos brincalhões, até o seu final, em que o diário vai ganhando páginas soturnas graças aos ciúmes de Oswald de Andrade, encerrando com a morte daquela que dava sentido e alma para o apartamento.
Além de ser uma transcrição fiel do caderno, inclusive mantendo as palavras rasuradas, O perfeito cozinheiro das almas deste mundo traz ainda algumas cópias dos desenhos e das folhas manuscritas, demonstrando que, mais do que um simples registro, pretendia-se também se dar uma expressão artística para o diário. Três ensaios acompanham o livro, de lavra de Mário da Silva Brito, Haroldo de Campos e Jorge Schwartz, demonstrando toda a dimensão crítica assumida por esta obra que começou como uma brincadeira e acabou virando pura literatura. Nenhum dos artistas imaginava que aquele inocente caderno colocado na entrada do apartamento de Oswald de Andrade marcaria não só os primeiros passos do Modernismo, mas também o momento em que eles se depararam com o amor e com a morte, componentes sem os quais nenhuma boa arte – ou rede social – pode sobreviver.
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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