Quem diz que não se deve rir de determinado humor não pode defender a liberdade artística
O politicamente correto há algum tempo se faz presente no debate público brasileiro. Assim como no contexto em que surgiu, nos EUA dos anos 1990, ele é objeto de disputas calorosas entre diferentes visões da vida política. Atualmente, os maiores usuários do conceito são autores de cariz conservador, responsáveis em grande parte por sua difusão no Brasil, como uma forma de crítica ao impacto de certa militância culturalista na universidade, na política e na cultura.
Antes de tratar dos embates ideológicos, contudo, podemos encontrar a origem remota do politicamente correto na linguistic turn das ciências humanas no século XX. “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”, afirmava Wittgenstein no começo dos anos 1920. A força paradigmática aberta por essa filosofia da linguagem foi a base séria para que o politicamente correto viesse a se constituir na versão conhecida mais ao final daquele século, servindo-se de uma grande quantidade de discursos menos rigorosos sobre o caráter discriminatório da linguagem coloquial.
Para além de uma concepção de linguagem, o politicamente correto afirma uma ética, ou, nas palavras de Mario Perniola em seu livro Desgostos: Novas tendências estéticas, um estilo de vida baseado na “reivindicação da condição de vítima”. Na political correctness, “a fraqueza não é pensada como algo que deve ser transformada em força, porque aquilo que importa, aquilo que faz a força é justamente a ostentação da fraqueza”.
O estilo de vida politicamente correto luta pela difusão de uma sensibilidade que elimine da linguagem corrente aqueles termos e aquelas expressões que ofendem e ferem inteiras categorias de pessoas tradicionalmente caracterizadas como inferiores ou como incapazes: este, por isso, propõe substituir “cego” por “deficiente visual”, “surdo” por “deficiente auditivo”, “deficiente” por “diferentemente hábil” e assim por diante (Desgostos, p. 36).
Ao contrário do que intelectuais culturalistas se esforçam para divulgar, repelindo o conceito a fim de torná-lo inoperante, a percepção do politicamente correto não está baseada em “premissas jamais verificadas”. No ótimo e divertido The rape of the masters: How polical correctness sabotages art, por exemplo, o crítico de arte Roger Kimball comenta uma série de exemplos da produção acadêmica nos EUA em que tais premissas estão mais que escancaradas. São registros da vida acadêmica que complementam as anedotas de professores universitários que, embora ainda zelosos de seu bom humor, nem sempre podem abrir o jogo sobre os efeitos que o politicamente correto produzem no dia a dia.
O fenômeno sempre envolve algum tipo de policiamento da linguagem, e, por isso, do próprio pensamento. Essa é uma característica de sociedades totalitárias como as que o romance político de George Orwell alegorizou com muito talento, mas hoje nem sempre é considerada por aqueles que se prestam a policiar filmes de Quentin Tarantino.
Criticar o politicamente correto não significa defender o direito de alguns a atacarem minorias. A crítica opera negativamente. Nega-se que o esforço de limpeza da linguagem possua um sentido político relevante (ideia com a qual uma esquerda não culturalista poderia até concordar), já que a política é um domínio da realidade que implica situações bem mais complexas e nuançadas. Nega-se que essa limpeza seja capaz de lidar com os diversos usos da linguagem e atos de fala, uma vez que a tendência à correção tende a eliminar a espontaneidade que recria os sentidos. Nega-se, no nosso caso, que o politicamente correto fundamente uma boa crítica de arte, pois ele tende a enxergar nas obras apenas os reflexos das supostas ideologias que as conduzem. O politicamente correto normatiza as obras que pretende criticar, não permitindo ao crítico uma verdadeira abertura a elas.
Um melodrama de poucas virtudes
A despeito de ter conseguido um milhão e meio de espectadores na Argentina, Coração de Leão (Corazón de León), de Marcos Carnevale, é um melodrama de pouca criatividade, a começar pelo trocadilho de seu título. O roteiro conta o envolvimento de Ivana (Julieta Díaz), uma linda advogada divorciada aos 30 e poucos anos, e León (Guillermo Francella), um homem de meia idade muito bem sucedido na carreira de arquiteto. León é hábil ao seduzir Ivana, fazendo com que ela se apaixone rapidamente por ele. Todavia, há um empecilho que impede o casal de vivenciar o romance: ele tem apenas 1,36m de altura.
A partir desse mote, o conflito central da narrativa pode ser resumido no seguinte esquema: se a apaixonada Ivana rejeita León, ela é vencida pelo preconceito. Se Ivana fica com León, o preconceito é que é vencido pela personagem.
O desenvolvimento da trama de Coração de Leão é o mais óbvio que se poderia imaginar. Ivana tem dificuldades para assumir o namoro com o anão, pequenino, nanico León (termos que aparecem no filme), e finalmente entra em crise. Não há conflitos paralelos que concorram com o seu dilema. Sequer a onipresença inoportuna do ex-marido de Ivana, seu sócio, consegue adquirir consistência e densidade próprias. A solução do filme de Carnevale também é miseravelmente convencional. As relações familiares de cada protagonista (León com seu filho jovem, e Ivana com a sua mãe) se confirmam como fontes de lealdade e segurança, e o principal núcleo do melodrama – a família – entra em cena para assegurar a moralidade, preparando o terreno para a celebração do amor romântico.
Carnevale não mexe em nada da estrutura melodramática que, como aponta Heitor Capuzzo em seu Lágrimas de luz, constitui desde os anos 1930 um filão certeiro do filme clássico de grande retorno comercial – regra que o blockbuster A Culpa é das Estrelas tem confirmado nas bilheterias. Coração de Leão é um filme de reiterações, no sentido dos dramas românticos que Capuzzo estuda em seu livro. O amor deve importar acima de tudo. O amor supera todas as dificuldades. Uma visão açucarada da vida afetiva e das relações sociais domina a experiência do espectador, apresentando-se como a resposta do filme ao dilema de Ivana com o preconceito. Nada que o melodrama já não tivesse feito incontáveis vezes, com maior brilho e melhores resultados.
O politicamente correto que desvia do melodrama
A recepção de Coração de Leão no Brasil, contudo, é marcada por críticas negativas que demonstram mais “criatividade” que o filme de Marcos Carnevale. Elas desviam da discussão sobre o drama romântico e o melodrama, e consideram que o filme, por mais que pretenda criticar o preconceito em uma história de amor, é ele próprio preconceituoso.
Para Sylvia Colombo, na Folha de São Paulo, o filme argentino “não é refinado como a elogiada produção recente do país”. A falta de refinamento, contudo, nada tem nada a ver com a má condução de algumas viradas de roteiro (o clímax da crise de Ivana, por exemplo), ou o gosto duvidoso de algumas escolhas de planos (vários). A obra teria falhado, na verdade, porque “é cruel concluir que toda a trama se mantém apenas porque a hesitação de Ivana se deve ao fato de que León tenha dinheiro”.
Sim, o homem é baixo, porém é dono de uma bela casa com piscina e tem como hobby saltar de parapente no Rio de Janeiro. Se, por um lado, o filme quis chamar a atenção sobre como a burguesia portenha trata mal quem é diferente, por outro, conclui que a única possibilidade de um homem tão baixo ser amado é se ele for rico.
A conclusão de Colombo pretende ser demolidora: “as situações cômicas, se fazem rir ao desmontar um preconceito, deixam um gosto amargo ao expor outro”. Mas talvez a crítica quisesse ir ainda mais fundo. Há algo implícito no texto, desde o início, sem ser verbalizado. Ora, que um homem tão baixo fosse aceitável como amante apenas porque tem dinheiro não desmontaria preconceito algum. Isso apenas camuflaria o preconceito que seguiria intocável, independente do sucesso da relação amorosa.
Se a possibilidade do amor de Ivana por León fosse condicionada pela quantidade de dinheiro que o amante leva nos bolsos, estaríamos diante de uma celebração do dinheiro, e não do amor romântico (o que até pode ocorrer, mas em outro filão do cinema narrativo). Buscando a máxima coerência no texto da Folha, portanto, a baixa estatura de León continuaria sendo um problema, ou melhor, um defeito. O filme seria tão politicamente incorreto quanto os personagens que zombam e maltratam León.
Mas se essa é a conclusão natural da crítica de Sylvia Colombo, por que não é declarada? Quem viu o filme pode responder: a conclusão fica implícita porque a sua premissa é completamente falsa. Trata-se de uma interpretação pouco honesta com a obra de Carnevale.
Para Colombo, a má qualidade de Coração de Leão não estaria ligada ao que a obra é enquanto narrativa melodramática mal sucedida, e sim à incorreção política da sua mensagem sobre o nanismo. O filme não seria ruim por fracassar como cinema, e sim por dizer a coisa errada, da maneira errada. Assim, a representação politicamente incorreta de León se torna o assunto principal da crítica, deixando em último plano o conhecimento e a avaliação das regras do melodrama que, na verdade, são os componentes essenciais do discurso cinematográfico do filme.
As soluções do melodrama familiar de Carnevale giram em torno da virtude dos personagens. E se estamos falando da resolução do problema condutor da narrativa, estudado tão bem por David Bordwell na ação no filme clássico, o dinheiro não é decisivo para nada em Coração de Leão. Ter dinheiro ou ser muito baixo são características indispensáveis do personagem, mas são também variáveis secundárias. León deve amar Ivana. E se Ivana também o ama, o certo é que fiquem juntos. O problema se resolve no universo dos valores, destacando a coragem da advogada que supera a maldade do julgamento de terceiros.
Não por acaso, a ideia de medo é destacada no salto de paraquedas com que León surpreende Ivana, fazendo-a se sentir segura na companhia dele, e depois volta na discussão de rompimento do casal, quando a personagem demonstra fraqueza e se rende ao preconceito.
A crítica de Sylvia Colombo seria menos questionável se ela não negligenciasse a intenção do filme de criticar o preconceito das personagens antagônicas a León. Coração de Leão rejeita em mais de um momento a ideia de que León só pode ser amado porque é rico. Ou seja: é exatamente o contrário do que diz Colombo. Isso fica mais evidente na transformação/redenção de Adriana, mãe de Ivana, interpretada por Nora Cárpena, atriz portenha muito conhecida por desempanhar o papel de vilã em telenovelas.
Ao saber do namoro da filha, numa conversa dentro de um automóvel, ela reage com histeria. Sua posição é enfática ao afirmar que o nanismo é um defeito impossível de ser compensado por qualquer qualidade de León, inclusive por sua conta bancária. Se é baixinho, tanto faz se é rico, e ponto final. A mãe de Ivana muda de opinião e acaba dando o aval para o namoro da filha, mas o filme não oferece nenhuma informação que justifique a leitura de que o dinheiro do arquiteto é o elemento deflagrador dessa transformação. Longe disso, é outra vez a virtude que determina o melhor destino.
Questionada pelo companheiro portador de deficiência oral e auditiva, Adriana se dá conta de sua complicada contradição ética. A redenção da mãe é a libertação da filha, e tudo termina bem, se a família está bem. Narrada de modo muito abrupto, essa é uma das partes menos satisfatórias da trama de Coração de Leão. Mas de modo algum os problemas de construção dramática estão ligados aos motivos que levam Colombo a desqualificar o filme. A crítica os ignora para se contentar com uma análise politicamente correta da obra.
Como fazer um melodrama… sem melodrama?
A crítica publicada por Bruno Carmelo no site Adoro Cinema demonstra ainda melhor o apelo do politicamente correto na interpretação do filme de Marcos Carnevale:
O fato é que este filme baseia a sua única originalidade no pressuposto (ele próprio já um pouco preconceituoso) de que uma mulher bela e de estatura comum dificilmente se apaixonaria por um anão. O nanismo não é tratado de maneira natural, muito pelo contrário. Toda a direção é pensada de maneira a ressaltar a diferença de tamanho entre os dois, como na cena em que almoçam juntos, e o enquadramento compara-os lado a lado, sentados em cadeiras iguais – os pés dela firmes no chão, os dele balançando no ar.
Talvez o leitor que se depare com esse texto depois da sessão de Coração de Leão se pergunte imediatamente: como seria possível um filme cujo conflito central está na aceitação da diferença não ser dirigido de modo que essa diferença seja ressaltada? Como essa comédia poderia ter me divertido minimamente (a cena do almoço é engraçada) sem que o conflito central fosse tratado com humor? E ainda mais importante: como eu, espectador, poderia me interessar pelo dilema de Ivana sem que o filme me mostrasse o seu constrangimento e oscilação diante das ridicularizações de León?
Não é preciso responder que há muitas maneiras de mostrar um conflito no cinema. Naturalmente, a crítica de Bruno Carmelo poderia ser resumida na simples ideia de que, para ser contundente e até engraçado, um filme não precisa reproduzir, na experiência do espectador, o mesmo preconceito de seus personagens. Não precisaríamos rir de León para compreender a dificuldade de Ivana. Não precisaríamos rir da dificuldade de León ao se sentar em cadeiras e sofás, nem precisaríamos rir do esbarrão (“atropelamento”?) que ele sofreu em uma calçada de Buenos Aires, por um homem alto que, distraído ao celular, não o viu no meio do caminho (outra cena engraçada).
Podemos até concordar que não precisaríamos rir de todas essas situações cômicas provocadas pelo filme. Mas restaria a dúvida sobre outra pergunta: por que não deveríamos rir delas?
A resposta-padrão do pensamento politicamente correto, como o que se expressa na crítica de Bruno Carmelo, diria que esse riso é uma forma de opressão, camuflando uma realidade preconceituosa que, em nome de uma determinada ordem de normalidade, exclui os anormais do convívio em condição de igualdade. Mas sequer precisamos contradizer essa concepção de sociedade normalizada para perceber que, no fundo, este é um falso problema para a crítica. Quando uma questão como essa orienta a avaliação de filmes por críticos de cinema, o resultado possível é a substituição do debate sobre aquilo que é intrínseco ao filme por discursos militantes que chegam de fora, como se atropelassem as especificidade do cinema com a mesma altivez com que León é atropelado na cena politicamente incorreta que nos leva ao riso.
A verdadeira objeção a Coração de Leão deveria se prender ao compromisso cego do filme com a visão melodramática de mundo. Isso é específico nele. O cuidado da obra com a edificação de uma lição melodramática é tão grande que cenas como a do esbarrão de León demonstram uma incômoda empáfia moralista. Nela, León caminha ao lado de sua ex-esposa, com quem tem uma ótima relação (o bom e velho lar incorruptível dos virtuosos, mesmo depois de desfeito). O transeunte distraído que o atropela é encarado por ambos, aos gritos de “falta de respeito” e “será que não está vendo?”. A decupagem reitera a reação educativa de León e sua ex-mulher. O transeunte cai fora, porque ninguém é idiota de comprar briga quando sabe que está errado.
Fechar a discussão de Coração de Leão com a ideia de que o seu humor politicamente incorreto chancela o preconceito é fechar os olhos para o fato de que cenas como essa são a resposta que o melodrama tem a oferecer sobre o preconceito. Para dizer com exatidão, o melodrama enfrenta o problema do preconceito ao seu próprio modo, endossando a virtude e a educação moral. Afirmar que um filme melodramático é preconceituoso, sem legitimar o seu enfático discurso contra o preconceito, é uma estratégia por si só preconceituosa.
Respondendo à questão levantada há pouco, poderíamos concluir que não há fundamentos razoáveis para sustentar que não se deve rir das situações cômicas envolvendo o nanismo de León, do mesmo modo que não existem boas razões para acreditar que a normatização da expressão artística (“isso pode”, “aquilo não pode”) contribui para a crítica de cinema. Até poderíamos não ter um filme que provoca risos, do modo como Coração de Leão o faz, mas isso é como dizer que o filme poderia não ser um melodrama, o que tampouco diz qualquer coisa sobre o que ele é.
Ainda mais importante: este poderia ser outra coisa é sempre condicionado pela liberdade dos artistas, e é justamente essa liberdade que sai perdendo quando os críticos optam pela normatização. Quem sustenta que não se deve rir de determinado tipo de humor não pode defender a liberdade de que os artistas façam o que bem entendam – inclusive filmes melodramáticos ruins, como Coração de Leão.
Rodrigo Cássio
Professor e pesquisador. Autor de Filmes do Brasil Secreto (Ed. UFG).
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