A “Cidade Ideal” da metafísica platônica é muito distinta das utopias modernas
1.
Inquieto sobre as obras que derrotavam a perecibilidade do tempo, Italo Calvino chegou a duas definições, para mim, reluzentes: “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” e “clássico (é) aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo” . Desta maneira, uma obra clássica provoca discussões e sentimentos aos leitores, para além do tempo de sua escritura. Mais do que um escrito jogado no tempo, a obra que se torna clássica não pertence a si, e está sempre sendo invocada para iluminar a opacidade do vivido.
Reler uma obra clássica é – de certa maneira – reescrevê-la, atualizá-la; mas a releitura pode locomover-se em graus maiores ou menores de interesse: em busca do sentido do texto ou de apropriação. Quando o filósofo britânico Alfred Whitehead afirmou, de maneira provocativa, que “toda a filosofia ocidental é uma nota de rodapé à obra de Platão”, certamente estava invocando a este autor a alcunha de clássico da literatura filosófica.
Em 2012, apareceu na França (e agora em 2014 no Brasil) um livro que recria provocativamente o mais famoso diálogo platônico, A República, ousando mesmo deslocar algumas de suas bases de sustentação para dar vazão a outro “projeto intelectual”. Após seis anos de estudos, o filósofo francês Alain Badiou, segundo o próprio, movido pela convicção de que um projeto político suporia algum tipo de abertura ao absoluto, resolveu reescrever o diálogo platônico – modificando personagens, utilizando termos contemporâneos (como “fascismo” e “comunismo”), atualizando seu contexto e alterando a estrutura da obra e o seu caráter estilístico. O francês evita repetições diretas do texto platônico, mas afirma que o autor continua ali: onipresente.
Badiou pretende modernizar a obra atualizando seu contexto: somem as guerras e tiranias gregas, e surgem eventos como a Comuna de Paris, personagens como Mao e Stálin, e as grandes guerras mundiais. Eis seu projeto, talvez mais bem sucedido no que diz respeito a suas pretensões políticas e filosóficas (nessa ordem), do que propriamente por nos dizer algo a respeito do projeto socrático-platônico. A ideia de um “Platão modernizado”, de certa forma, já depõe contra este projeto, pois a busca pelas verdades suprassensíveis, que independem de suas circunstâncias materiais (o que, tampouco, significa abrir mão da árdua experiência do parto da verdade), compõe o próprio filosofar, nesta perspectiva.
Através de uma expressão tirada dos marinheiros, Platão nos mostra que a investigação dos naturalistas pré-socráticos é uma espécie de “primeira navegação”, feita com velas ao vento, onde os sentidos e as sensações são guiadas pelos ventos. A “segunda navegação” é efetuada na falta dos ventos, exigindo que seja feito um árduo esforço com os remos, portanto mais cansativa e exigente, representando esse esforço metódico e experiencial que nos leva à esfera do suprassensível, a partir dos raciocínios e postulados.
Esse símbolo de busca pela estrutura da realidade nos mostra que os sentidos não esclarecem o conhecimento, mas que este só se apresenta pela unidade de uma experiência árdua, buscada em raciocínios. “Modernizar” a obra platônica significa, em certo sentido, negá-la em suas bases mais profundas.
2.
A estrutura clássica da República, legada pelos gramáticos de Alexandria, nos apresenta dez livros. Badiou não vê sentido nessa divisão, e pretende recontar tal obra em “seu verdadeiro ritmo”: com um prólogo, dezesseis capítulos e um epílogo. A ordem dos segmentos também é modificada, para que se adeque ao estilo e ao sentido dado ao texto.
Badiou também elabora uma mudança entre os personagens. Assim, Adimanto vira Amanda, irmã de Platão. Os demais permanecem os mesmos da obra clássica: Sócrates; Glauco, irmão de Platão; Céfalo, rico ancião do Pireu; Polemarco, cidadão ateniense; Trasímaco, sofista; e Clitofonte, admirador do sofista.
Porém, a mudança mais profunda se dá quando Badiou substitui o diálogo e a maiêutica socrática, que faz a verdade aparecer a partir dos raciocínios, por um discurso. Para Platão, a escritura não aumenta o saber dos homens, mas sim a aparência do saber (ou seja, a opinião). Ela não tem alma, pois não fala ativamente. Por isto, o filosofar seria o próprio diálogo vivo e animado da oralidade, gravando o essencial na alma. O diálogo escrito seria ma cópia desse real, necessitando do conhecimento anterior da verdade dialeticamente fundada.
Assim, o diálogo constitui-se em parte essencial do projeto socrático-platônico. Filosofar significa examinar, provar e purificar a alma, e isto só pode ser realizado através de uma dialética viva no momento mesmo de sua realização. Ao nos legar textos escritos, Platão procura fazer uma mediação, reproduzindo os diálogos socráticos em escrita e, a partir deste estilo aberto e vivo, fugir da exposição dogmática dos sofistas e retóricos. Sem esse método de exposição não pode haver o autêntico filosofar socrático, que apresenta a verdade que se ilumina na alma.
Badiou abre mão desse gênero literário e desse método filosófico. Ao invés de um Sócrates dialogando vivamente e fazendo parir a verdade, encontramos um Sócrates autor de um discurso. Ou então confia uma participação mais ativa aos outros personagens.
Outras modificações são igualmente feitas para recontar o livro de acordo com os objetivos de Badiou. Ao invés da Ideia de Bem, temos a Ideia de Verdade. No lugar de Alma, Badiou prefere falar em Sujeito. Agora não importa mais a “elevação da alma em direção ao bem”, mas a “incorporação de um sujeito a uma Verdade”. E, no lugar de “cidade ideal”, encontramos “política verdadeira”, “comunismo” e “quinta política”.
3.
Platão, ao vincular Justiça, Razão e Bem, pretende não separar a moral da política. Assim como o belo e o verdadeiro, seria possível conceber a ideia de Justiça. A busca pelo justo do homem na cidade é o problema levantado e respondido por todo esse diálogo – um guia de defesa contra a anarquia dos interesses particulares e do pragmatismo, que mais ilumina a alma do que propriamente elabora um projeto de ação ou poder.
Esta preocupação do filósofo ante a política, sobre a questão da justiça, chama a atenção de Badiou: pode haver o justo? Uma política pode fazer justiça ao pensamento? E, se há injustiça, certamente deverá existir um efeito de sofrimento e rebelião. Este tema lhe é caro, pois, para ele, a Justiça seria uma aposta do imortal contra a finitude.
O que vai ao encontro de uma das intenções de Badiou ao reler essa obra platônica: mostrar que o sensível que nos entremeia participa, para além da materialidade do corpo e da retórica, das verdades atemporais. O filósofo francês aproveita esta concepção para criticar o que chama de “materialismo democrático”: a crença de que só existem no mundo indivíduos e instituições diversas, tendo entre si a negociação, da qual se espera a equânime justiça. Contra isto, Badiou afirma que, para além “dos corpos e das linguagens”, há verdades eternas. Mas, ao mesmo tempo, corpos e linguagens participam da elaboração dessa eternidade. Sem essa percepção da ontologia não pode haver uma base de orientação para a prática política. E isto lhe interessa, sobremodo, para sua “Ideia de Comunismo”.
Entre as diversas releituras de Platão, como a do Mito da Caverna (que se transforma num imenso cinema onde os espectadores estão presos ao espetáculo midiático contemporâneo), vamos destacar uma em especial, que condensa o esforço de Badiou: o filósofo e a política.
4.
No projeto platônico-socrático, a natureza da filosofia não se subordina às fantasias. O filósofo precisa se desprender da materialidade, mirando além do visível, para sondar o eterno. Sócrates mostrou que, a partir da contemplação do belo, poderíamos chegar à beleza como forma inteligível. O filósofo busca o conhecimento verdadeiro, e não a opinião. Ao contrário, a sofística seria uma arte imitativa, que ao fomentar contradições, discursos e relativismos, produz simulações e aparências de verdade. Assim, o filósofo busca o caminho da bem-aventurança.
Por isto, a condição necessária para uma cidade hipoteticamente ideal é que os filósofos se tornem governantes, e os governantes se tornem filósofos. Isto é, colocar no centro, como regente e construtor, uma medida suprema, fundamento deste Estado Ideal, objetivando a entrada do Bem na comunidade dos homens. É importante lembrar que a ideia em Platão aparece como uma forma inteligível.
Na releitura de Badiou, o filósofo aparece mais como um mediador, com o seu trabalho conceitual, que relaciona situações particulares e materiais a reflexões gerais sobre o homem, a liberdade, a política, a cultura etc. A visão intelectual forma-se a partir do conhecimento do que é a coisa (ideia) mais a longa experiência prática, havendo pouca elaboração da distinção entre forma e matéria.
Essa releitura da filosofia e do papel do filósofo, junto à pretensão de rever conceitos esquecidos por certa tradição – como “ser”, “verdade” e “sujeito” em Badiou -, mostra-se a serviço de uma filosofia colocada depois do evento. O papel do filósofo, a política e a tentativa de recuperação de certa ontologia se misturam e, de certa forma, reanimam a espera da fidelidade e disciplina da “Ideia de Comunismo”, como algo posto após o ocorrido.
5.
A República é uma utopia platônica? É uma espécie de Comunismo? Muito diferente das utopias coletivistas modernas, a obra clássica possui base e motivações intelectuais e espirituais muito distintas. Platão não faz um discurso ideológico, mas dialoga uma filosofia, uma metafísica e, mesmo, uma escatologia do Estado. Platão quer raciocinar sobre a cidade ideal, sobre o justo, e sobre a formação do homem ideal – e raciocinar como um modelo de inspiração, não como um plano de ação política. Neste ponto, torna-se clara a diferença de visão entre o papel do filósofo em Sócrates/Platão e seu papel na República recontada por Badiou, mais direcionada aos elementos materiais da ação política. E a Política é vista por Badiou como um campo de realização da verdade de um evento.
Na realidade, A República mostra a insuficiência de Atenas. Parte-se do relativismo de Trasímaco para reiterar o pragmatismo da ideia de justo. O que leva imediatamente à pergunta: o que é justiça, e qual o seu valor para os homens e para o Estado? É importante destacar que o ideal em Platão é uma forma inteligível, que dá sentido à ambiguidade do mundo material, que reside entre o ser e o não-ser. A Ideia, portanto, não é um pensamento, uma representação mental, mas uma forma, a essência da coisa, de natureza puramente inteligível. Não é realizável no mundo material, apenas inspira a conduta.
O “Estado Ideal” é construído com a finalidade de vê-lo reproduzido na alma do homem. A República exprime, assim, um ideal realizável no interior do homem, na sua alma. A essência do ideal encontra-se no seu núcleo metafísico e na realidade suprassensível – não num plano de ação. A diferença na metafísica platônica entre as realidades sensível e suprassensível torna a “Cidade Ideal” muito distinta das utopias modernas. Bem diferente dela, encontramos no marxismo ocidental, por exemplo, uma grande fonte messiânica judaica, aonde o Messias viria à Terra libertar e instaurar o Paraíso.
Aí que entra o projeto intelectual e político de Alain Badiou, do qual essa releitura de uma das mais importantes obras de Platão torna-se mais um elemento. Badiou, ao mesmo tempo em que questiona a metafísica clássica, procura fugir da órbita de certas filosofias – e também de parte da esquerda – que procuram aniquilar o conceito de verdade, de ser, ou sujeito. Não por acaso, Antonio Negri, estranho ao essencialismo, em comentário a respeito deste livro, repele tal Comunismo:
O comunismo (para Badiou), então, é o quê? É uma ontologia ideal. É alguma coisa de ideológico e também de arcaico, uma utopia externa ao agir coletivo, fora da modernidade — radicalmente “de-saturado” (como também anota o organizador do livro) da historicidade do movimento comunista, e de toda reminiscência material e coletivamente revolucionária. (…) Compreende-se, lendo essas páginas, porque hoje a obra de Badiou se presta às vezes a argumentos nostálgicos, daqueles que, não sabendo como sair do fracasso do “socialismo real”, continuam a sonhar-se comunistas, só porque se recusam a recomeçar a luta.
Para Badiou, “num mundo onde toda ruptura propaga o presente”, e onde o que é descontínuo apenas prossegue o contínuo, para distinguir a verdade da opinião seria preciso manter-se fiel a uma Ideia. No entanto, o paradigma da verdade não é “o que é isso”, mas “algo aconteceu e isso não será como antes”. Badiou não está propondo uma metafísica, um conceito de verdade, “as coisas como elas são”, mas um engajamento.
Numa entrevista, Badiou chegou a afirmar:
A verdadeira vida é uma vida que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de outro modo, uma vida que aceita ser outra coisa do que uma vida animal. Alguns dirão que há valores transcendentes, religiosos, e que é preciso submeter o animal; outros dirão, ao contrário, que devemos nos libertar desses valores transcendentes, que Deus está morto, que viva os apetites selvagens. Mas, entre ambas, há uma solução intermediária, dialética, que consiste em dizer que, na vida, através de encontros e metamorfoses, pode haver um trajeto que nos liga à universalidade. Isso é o que eu chamo “uma vida verdadeira”, ou seja, uma vida que encontrou ao menos algumas verdades.
Nesta solução intermediária, reside a “Ideia de Comunismo” defendida por Badiou, ligada à espera e fidelidade à ideia de emancipação de toda a humanidade, do internacionalismo, de uma organização econômica que não separe o fazer do possuir. Aí, Badiou encontra sua inspiração platônica. Acontece que, em Platão, a ideia é uma forma, e a busca maiêutica é guiada pelo Bem e pela iluminação da alma, não uma expectativa de ação política para realização de uma utopia.
Badiou opera uma espécie de secularização do absoluto, já tremendamente debatido e reconhecido nas utopias coletivistas modernas. E esta associação presta-se a todo tipo de confusão. Alguns chegam a colocar na própria ideia de ontologia ou absoluto um ímpeto totalitário, que impediria a “expressão produtiva das singularidades que se organizam no comum” (Negri). Para esta esquerda, talvez Badiou tenha algo a dizer sobre a participação do absoluto em qualquer enunciado político, nem que seja por sua negação.
O que interessa neste livro de Badiou é menos uma contribuição sobre o projeto socrático-platônico e uma de suas obras monumentais, e mais como o francês se apropria de uma tradição e seus pilares para dar vazão à sua experiência simbolizada num projeto político, baseado na ideia de comunismo, e de como esta ideia funciona a partir de uma secularização do absoluto.
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.