Divergências ideológicas de dois gigantes brasileiros na Primeira Guerra Mundial
“Os professores, os jornalistas, os tribunos são, hoje, os que semeiam a paz ou a guerra. As bocas de fogo sucedem às bocas da palavra. A pena desbrava o campo à espada. Voltaire, repartindo o mundo entre as três mais cultas nações de sua época, distribuía a uma o domínio da terra, a outra o dos mares, à terceira o das nuvens. Mas, se é nas nuvens que habitam os metafísicos, os ideólogos, os utopistas, também dessas alturas, onde se condensam emanações de ideias, pode chover sangue.” (RUI BARBOSA, Deveres dos Neutros, p. 53-54)
Introdução
É notória a contribuição de pensadores das mais diferentes espécies na construção das realidades geopolíticas a que acabam submetidas as nações. Filósofos, prosadores, poetas, jornalistas, entre outros, nunca deixaram de se fazer presentes em cenários de conflito e convulsão social – se não pegando em armas ou tomando parte direta nas decisões políticas, ao menos exercendo o do poder da palavra e, mais fundamentalmente, das ideias que as palavras cristalizam. Assim, para que dois ou mais países se vejam mobilizados para uma guerra, é necessário que haja a prévia propagação do ideário que vai inflamar e manter aceso o espírito combativo entre aqueles que dela tomarão parte. Ou seja: antecedendo e correndo paralelamente às batalhas de tiros e espadas, de submarinos e tanques, de torpedos e morteiros, de trincheiras cavadas a fundo e protegidas por arame farpado, existe uma batalha de teses e antíteses, de poemas e crônicas, de discursos e tribunas, de ideologias que se entrincheiram e tentam se proteger do contraditório.
No contexto da Primeira Guerra Mundial (28 de julho de 1914 – 11 de novembro de 1918), Rui Barbosa, o renomado polímata brasileiro, chamou a atenção para esse fato em seu discurso Deveres dos Neutros, também conhecido como Os Conceitos Modernos de Direito Internacional, pronunciado em julho de 1916, na Faculdade de Direito de Buenos Aires, durante as comemorações do centenário da independência argentina:
Primeiro que saísse das fábricas de armamentos, das casernas e dos estados-maiores, esta guerra tinha acumulado os fluidos, que a viriam a animar, nos livros, nas escolas, nas academias, nos laboratórios de pensamento humano. Para entrar em luta com a civilização, a força compreendera que era necessário constituir-se em filosofia adequada, corrompendo as inteligências, antes de subjugar as vontades. (RUI BARBOSA, Deveres dos Neutros, p. 51)
Todavia, o caminho inverso também é possível, isto é: se a guerra alimenta-se das ideias, da produção de intelectuais e artistas, o cenário bélico também é capaz de insuflar a verve daqueles que cultivam as artes. Essa relação de dupla troca evidencia o grau de conexão que há entre essas duas esferas da atividade humana, esferas que, ironicamente, simbolizam as noções antagônicas de criação e destruição. O escritor paulista Monteiro Lobato, no início do seu conto “O Espião Alemão”, escrito em 1916, enfatiza essa ambígua relação da arte com a guerra:
É a guerra uma permanente. O homem tem a vocação do morticínio. A arte apoteosa a carniça. Os poetas só ascendem ao épico se o bafio de sangue lhes fumega a inspiração. A beleza suprema é Aquiles fendendo crânios do frontal à nuca, e a história da humanidade não passa dum sistema potamográfico de enxurros vermelhos, musicado pelos gemidos de dor dos vencidos. (LOBATO, “O Espião Alemão”. Cidades Mortas, p. 158)
Não chega a surpreender esse casamento da força criadora da arte com a força destruidora da guerra, pois, com efeito, desde o advento da psicanálise e da publicação de Além do Princípio do Prazer por Sigmund Freud, em 1920, é teoria vigente que a natureza humana, dual em sua essência, constitui-se a partir de dois instintos básicos: Eros (que leva o nome da divindade grega que personifica o amor) e Thanatos (que tem seu nome tomado do deus grego da morte), instintos que são, respectivamente, o instinto de vida, amor e sexualidade e o instinto de morte, agressão e destruição. Essa dupla vertente do psiquismo, de tão inframental, transparece nas seguintes palavras de Rui Barbosa, em discurso proferido no Senado, em 1914, ao comentar a questão da sucessão presidencial brasileira na conjuntura internacional, estremecida pela eclosão da Primeira Guerra:
Paz e guerra, senhores, são duas ideias que se contrapõem naturalmente em nosso espírito, como as expressões antagônicas uma à outra do bem e do mal. A guerra nos faz pensar na destruição violenta. A paz, na criação progressiva.
De 1914 até junho de 1917, quando foi revogado o decreto de neutralidade do Brasil no conflito, o espírito do país oscilou entre inclinações bélicas e inclinações pacíficas. Por um lado, sob a liderança de políticos como Rui Barbosa, ganhavam vulto manifestações de caráter nacionalista, com pronunciamentos exigindo apoio aos Aliados para por fim ao conflito. Por outro lado, intelectuais como Monteiro Lobato criticavam essa postura e a possibilidade de convocação militar, pois segundo eles, entre outros efeitos negativos, isso desviaria a atenção do país em relação a seus problemas internos.
No presente artigo, analisaremos os discursos de Rui Barbosa e Monteiro Lobato como exemplares desses dois distintos posicionamentos assumidos pelos pensadores brasileiros durante a Primeira Guerra Mundial. O objetivo do ensaio é, essencialmente, verificar pontos de divergência e de convergência na visão desses dois autores sobre a Primeira Grande Guerra (em particular) e sobre a questão dos conflitos bélicos (em sentido amplo). A pesquisa aqui apresentada ampara-se, fundamentalmente, nos textos “O Pai da Guerra” e “O Espião Alemão”, de Monteiro Lobato, nas cartas que ele remeteu ao escritor e amigo Godofredo Rangel entre 1903 e 1943, reunidas e publicadas em 1944 nos dois tomos intitulados A Barca de Gleyre e reeditadas em 2010, em diversas entrevistas concedidas por Lobato e congregadas no tomo Prefácios e Entrevistas, de 1947 (reedição 2009), e também na oratória Deveres dos Neutros, de Rui Barbosa.
Lobato versus Rui: o germanófilo contra o aliadófilo
Em carta que escreveu a Godofredo Rangel em 11 de outubro de 1916, em pleno calor da Primeira Guerra, Monteiro Lobato sintetiza suas opiniões sobre Rui Barbosa:
Ruy Barbosa me dá a impressão, na ciência, duma superposição de autores; no estilo, duma superposição de clássicos. (…) Ruy é uma grande central telefônica a que vão ter todos os fios; e do conglomerado ressoa uma voz eólea, de qualquer lado que bata o vento. (…)
Ruy tem o gênio dos cadinhos: funde. Falta-lhe o gênio das retortas: que cria. Ruy dá misturas geniais; não dá combinações novas. (…) Impossível talento maior que o de Ruy. Chega até as raias da genialidade – mas fica-se na categoria do gênio sem medida criadora.
Eu já tive o meu período febril de ruismo, igual ao teu hoje: foi em fins de Afonso Pena e Nilo e todo o Hermes. (…) Hoje dá-se o contrário. Eu é que estou divorciado de Ruy… por motivos bélicos. E não o leio. Como torço pela vitória da Alemanha e Ruy é o paladino da derrota alemã, resumo minha opinião sobre ele com a imbecilidade de um calouro: “É uma besta!” Mas sei ou sinto que isso é pura imbecilidade minha diante de imbecis ainda maiores que eu. E se não o leio é na certeza de que se o ler, a “besta” me converte com a sua lógica de aço e cá me põe o germanismo de cuecas, de pernas para o ar. Porque o meu germanismo tem fundamentos grotescos: a causa número um é ser aliadófilo o meu barbeiro; a número 2 é serem aliados o Estado de S. Paulo, todos os meus amigos e toda gente. Germanizando, eu me isolo do barbeiro, do jornal e duma súcia de amigos. Pura questão de higiene mental.
Primeiramente, essa missiva expressa uma maior contenção de Lobato em seus elogios a Rui, comparando-se com as manifestações hiperbólicas de apreço feitas seis ou sete anos antes. Destaca-se que as qualidades de Rui antes vistas por Lobato como magníficas (a saber: sua imensa cultura e sua facilidade para sintetizar o estilo e as ideias dos grandes pensadores e escritores do passado) parecem-lhe, agora, evidência de certa falta de originalidade, insuficiência que, com certeza, jamais passaria despercebida e imune à crítica de uma mente tão inventiva quanto a de Lobato. Ao tratar do segundo motivo para estar “divorciado” de Rui, Lobato assume um tom jocoso, que, no entanto, não obscurece o posicionamento favorável de Lobato em relação à Alemanha no contexto da Primeira Guerra. O escritor, dizendo possuir a “imbecilidade de um calouro”, demonstra ter noção da superficialidade dos seus argumentos, os quais, ele próprio afirma, têm “fundamentos grotescos”; no entanto, em seu cerne, o argumento de que adota uma postura “germanófila” para se distanciar do seu barbeiro, dos seus amigos e dos jornalistas que trabalham no periódico O Estado de São Paulo apoia-se em uma censura de Lobato à ausência de senso crítico que então grassava na sociedade brasileira, na qual a maioria das pessoas manifestava-se a favor dos Aliados por inércia e sem elementos de reflexão própria.
De fato, grande parte dos nossos intelectuais passaram a advogar que o Brasil tomasse partido dos Aliados, a fim de deter a “barbárie” alemã. Essa tendência consolidou-se em 1915, com a fundação da Liga Brasileira pelos Aliados, entidade cuja organização foi orquestrada por José Veríssimo, Graça Aranha e Eliseu Montarroyos e à qual vieram juntar-se políticos, escritores, diplomatas, profissionais liberais e militares que compunham a elite cultural do Rio de Janeiro e do Brasil: nomes como Olavo Bilac, Nestor Victor, Paulo de Frontin, Afrânio Peixoto e Osório Duque Estrada, além do próprio Rui Barbosa, que assumiu o posto de presidente de honra. A Liga tinha, entre outros, o objetivo de chamar a atenção do povo brasileiro para “uma ameaça real de germanização e posterior subtração de parte do território brasileiro pelo Segundo Reich, através das colônias alemãs, no que ficou conhecido como ‘perigo alemão’”. Os jornais e revistas mais populares seguiam, predominantemente, a mesma linha de pensamento encampada pela maioria da intelectualidade, muito influenciada pela visão francesa dos fatos. Com efeito, “a elite brasileira estava empapada da cultura francesa” e dela extraía muito de sua weltanschauung, sobretudo considerando-se o destacado papel da França na Tríplice Entente.
Incomodava principalmente a Monteiro Lobato a atmosfera de “caça às bruxas” que imperava no Brasil à época e que tinha por alvo os imigrantes alemães, conforme manifesta no excerto a seguir:
Nesses dias em que nosso nacionalismo vermelho estruge e muge, corcoveia e rabeia, e percorre a cidade em busca de inofensivas placas de firmas alemãs, só um Mark Twain, e com a mesma pena com que escreveu aquela história da caça ao elefante branco, poderia fixar o grotesco dos paspalhões que sem nada para ocultarem viviam à caça de espiões que nada tinham a espiar. (LOBATO apud CAVALHEIRO, 1962, p. 224)
O desagrado que a perseguição aos membros da comunidade teuto-brasileira provocava no escritor era tão acentuado, que ele precisou purgá-lo através da via literária, transformado a pulsão em matéria ficcional e trazendo a lume o conto “O Espião Alemão”. A trama se passa na pequena cidade de Itaoca, que finalmente se vê arrancada de sua habitual pasmaceira pelos rumores da Primeira Guerra, os quais, embora difusos e distantes, são mais do que o suficiente para que as pessoas que ali vivem comecem a experimentar uma excitação sem precedentes. As autoridades locais, ansiosas por se engajarem nas lutas contra o “inimigo alemão”, cogitam a instituição de um Comitê de Salvação Pública e formam uma guarnição de vinte rapazolas que, para fins de treinamento, põem-se a praticar tiro ao alvo em latas de banha e em passarinhos. Tudo segue mornamente, até que, certa noite, é percebida a presença de um estrangeiro de cabelos ruivos na cidadezinha – em espião, com certeza! O estranho é preso, e o padre local, tido como homem muito letrado e poliglota, é chamado para fazer as vezes de tradutor durante o interrogatório; porém, o diálogo com o prisioneiro não é possível, pois, assim afirma o padre, o alemão daquele homem “é o alemão turíngio da baixa germanidade valona da Silésia hanoveriana”, ininteligível, portanto, para quem, como ele, só conhecia “o alemão gramatical da alta germanidade, dos Goethes, dos Lessings”. Assim, as autoridades de Itaoca decidem entregar o prisioneiro à polícia da capital federal e designam a guarnição de rapazolas para essa missão considerada perigosíssima, tão perigosa que chegava a ser heroica e, portanto, digna de honras e homenagens. Enquanto isso, um surto de antigermanismo assola a cidade, e a população depreda a farmácia local, propriedade de um velho boticário alemão. Então, um telegrama chega, direto do Rio de Janeiro, informando sobre o terrível mal-entendido: o suposto espião, na verdade, era um cidadão inglês. Por receio de complicações diplomáticas, o incidente é mantido em segredo. Na volta da guarnição, no retorno dos bravos rapazes de Itaoca, é cunhada uma medalha comemorativa à participação da cidade na guerra e antigas ruas recebem novos nomes, os nomes dos heroicos expedicionários que conduziram o “espião alemão” até as autoridades federais.
O conto é uma caricatura do nacionalismo exacerbado e do irrefletido engajamento à causa aliada manifestados pelos mais diversos setores da sociedade brasileira. Com esse texto, por meio de um humor tão refinado quanto corrosivo, Monteiro Lobato consegue “fixar o grotesco dos paspalhões” que, no Brasil, durante a Primeira Guerra, punham-se a agir (ou a propor ações) de modo automático e passional, sem lastro de pensamento crítico.
Logicamente, o escritor sabia não ser esse o caso de Rui Barbosa: o “Águia de Haia” certamente tinha argumentos; tanto é assim que, na já citada carta de 11/10/1916, Lobato afirma não ler os pronunciamentos de Rui acerca da questão por medo de ser convertido à causa aliada pela “lógica de aço” do baiano.
Além de perceber a predominância de uma postura acrítica na disseminação da “aliadofilia” no Brasil, Lobato temia que o engajamento do país no confronto trouxesse consequências negativas para a economia. Foi grande o impacto que a Primeira Guerra Mundial causou na economia do Brasil, mesmo antes de o país romper sua posição de neutralidade, e o próprio escritor sentiu esses efeitos, conforme relatou a Godofredo Rangel em carta de 17 de maio de 1915:
Após um interregno de negócios, de americanos que chegam, correm à fazenda e não resolvem, volto à vida antiga. Diz o agente do Rio, tramador de tudo, que seguiram informações para os USA e que em junho virá o comprador. Quarenta mil dólares. De posse dos dólares: negócios, tacadas, coisa de enriquecer duma vez e sossegar com o dinheiro. Em matéria de vida moderna acho que há dois termos: ou nada ou bastante. Ou montar numa boa cobreira ou falir – as duas coisas sossegam. (…) Se não fosse a estúpida crise de 1914 e a guerra, eu estava neste momento rico; a ventania europeia mudou o rumo do meu barco.
Seja como for, o Brasil acabaria por revogar sua neutralidade em 1917, como exortara Rui Barbosa em 1916, no discurso Deveres dos Neutros.
Esse discurso foi proferido por Rui Barbosa em 14 de julho de 1916, na cerimônia em que Rui recebeu o título de professor honoris causa da Faculdade de Direito de Buenos Aires. Após o banquete que lhe foi oferecido pelo presidente Victorino de La Plaza, sentado entre o chanceler José Luis Murature e o vice-presidente do senado argentino, Benito Villanueva, Rui Barbosa recebeu o título das mãos do decano Adolfo Osma, ouviu dele palavras de elogio e, então, iniciou sua fala. Nela, após os agradecimentos e seguindo a um amplo retrospecto da história da Argentina e de seus vizinhos da América Latina, Rui inicia sua análise das questões de moral e de direito que subjazem à guerra com um panorama quase poético e apocalíptico da Grande Guerra, trecho que constitui belo exemplar do seu estilo:
Uma dessas metades do globo, o nosso hemisfério, continua (…) a sustentar-se tranquila na divina estrutura do planeta. Mas a outra, sacudida nos eixos por catástrofes de grandeza desmarcada, estala e vacila sobre si mesma, sacudida por um ciclone de calamidades. Os grandes Estados chofram uns contra os outros, em prodigiosa colisão, ao impulso de suas massas, como pedaços de corpos celestes que se encontrassem e se entrebatessem, apagados os luzeiros do Senhor, nos espaços da noite infinita. (…) Mãos poderosas, desencadeando a procela, quebraram as amarras eternas do futuro das nações, ameaçadas agora pelas incertezas de uma situação, que aboliu todas as garantias da confiança dos homens nos homens, dos povos nos povos.
As “garantias” a que se refere o autor são, em grande parte, aquelas dadas pela Convenção de Haia, de 1907, encontro internacional em que foram estabelecidos alguns dos primeiros tratados multilaterais sobre leis e crimes de guerra e no qual Rui Barbosa teve destacada participação como representante brasileiro.
Rui Barbosa busca despertar em cada país neutro um senso de responsabilidade e irmandade para com as demais nações neutras e também para com aquelas envolvidas no conflito, e o faz invocando um bem comum a todas – justamente os acordos firmados em Haia – e aludindo às violações destes no decurso da guerra:
(…) suponhamos que nada tenham as nações não-beligerantes com o acerto de contas entre os beligerantes, em relação às transgressões, reais ou imaginárias, das leis da guerra. Ainda assim há um ponto em que a indiferença dos neutros não poderá deixar de cessar: é, pelos menos, o que diz respeito às violações do direito dos neutros, cometidas pelos beligerantes. Todo e qualquer ato dessa natureza constitui uma negação geral dos direitos da neutralidade, e interessa, por conseguinte, a todos os neutros. (…) É mister, pois, que a neutralidade receba uma expressão, uma natureza, um papel diverso dos de outrora. Sua noção moderna já não pode ser a antiga.
A problemática que Rui coloca é, essencialmente, a expressão de um impasse: como conciliar as convenções de Haia com a violação do território de nações neutras, invadido, ocupado, anexado? Qual deve ser a atitude das nações autoproclamadas neutras se a impassibilidade já não é uma saída possível frente aos abusos praticados na guerra?
Com seu discurso, Rui tinha por objetivo fazer com que o Brasil, a Argentina e os Estados Unidos entrassem na guerra ao lado de Inglaterra, França, Rússia e Itália, contra os impérios otomano, alemão e austro-húngaro. A visão geopolítica de Rui Barbosa era bem conhecida: para ele, os impérios representavam o atraso e a barbárie e deviam ser combatidos em prol da liberdade. “Rui defendia a tese de que era impossível pensar em neutralidade brasileira, uma vez que o conflito mundial era a expressão da luta entre justiça e a democracia, por um lado, e a força e o despotismo, por outro”, escreveu o professor Leandro de Almeida Silva. Todavia, no discurso proferido em Buenos Aires, Rui não chega a ser explícito, jamais exorta claramente as nações neutras para que peguem em armas; ao contrário, ele concita os neutros à ação de forma tangencial, envolvendo sua mensagem nas diversas figuras de linguagem que tão habilmente sabia manejar e protegendo-a sob um discurso que, e ao menos em sua primeira camada, mostra-se pacifista, violentado pelos horrores da guerra.
Assim, ao sabor dos recursos retóricos mais variados, a oratória de Rui oscila entre passagens nas quais é evidente o chamamento para a luta e outras de teor oposto, em que a atitude de pegar em armas é aparentemente negada como solução do impasse, conforme ilustram os dois trechos a seguir:
Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade: quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. Quando entre ela e ele existem normas escritas, que os definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade: é praticá-la. Desde que a violência calca aos pés, arrogantemente, o código escrito, cruzar os braços é servi-la.
A neutralidade recebeu uma nova missão e tem, agora, uma definição nova. Não é a expressão glacial do egoísmo. É a reivindicação moral da lei escrita. Será, pois, a neutralidade armada? Não: deve ser a neutralidade organizada. Organizada, não com a espada, para usar da força, mas com a lei, para impor o direito. O direito não se impõe somente com o peso dos exércitos. Também se impõe, e melhor, com a pressão dos povos.
De fato, Rui não especifica, neste discurso, quais seriam, além da força das armas, os possíveis mecanismos de pressão que os povos poderiam utilizar a fim de impor as restrições do direito sobre aqueles outros que passam por cima da lei.
Próximo à conclusão de sua peça oratória, Rui Barbosa apresenta mais uma reflexão de fundo abstrato e teórico, uma aspiração quase utópica que retoma o ideário pacifista que corre paralelamente às suas críticas aos países neutros: ele afirma que sujeitar a guerra à disciplina do direito e da humanidade significaria “criar, em última análise, uma situação fatal para a guerra; porque a guerra é, por natureza, inumana, rebelde, indisciplinável”.
Seja como for, o intuito que Rui Barbosa tinha de pedir apoio à causa aliada foi bem compreendido, e seu discurso teve repercussão internacional. Na França, por exemplo, o estadista Georges Clemenceau, ao comentar o discurso, cunhou a frase que, daí em diante, definiria a nova neutralidade: “não pode haver neutralidade entre o direito e o crime”. Da Europa, cidadãos norte-americanos escreviam ao presidente Woodrow Wilson, pedindo-lhe que ouvisse as palavras do brasileiro e colocasse ao lado dos Aliados o poderio militar dos Estados Unidos.
O discurso também provocou mudanças drásticas na política externa do Brasil. Durante todo o ano de 1917, Rui participou de comícios e manifestações contra a agressão aos navios da marinha mercante brasileira. Por fim, convocado por Venceslau Brás, Presidente da República, participou da reunião em que foi revogado o decreto de neutralidade do Brasil no conflito, em 10 de junho de 1917.
Monteiro Lobato torcia pela vitória da Alemanha, Rui Barbosa ansiava pelo triunfo dos Aliados; Lobato não desejava que o Brasil entrasse na guerra, Rui discursou com o intuito de mobilizar o Brasil e os demais países até então neutros para que tomassem partido no conflito.
Pontos de convergência
A despeito das dissonâncias que surgem no confronto entre os discursos de Monteiro Lobato e de Rui Barbosa acerca do tema da Primeira Guerra Mundial, serão destacados, aqui, brevemente, três pontos de concordância.
Primeiramente, ambos expressam a clara noção de que a guerra é prodigiosa fonte de barbárie e horrores, a concretização do mal e do absurdo entre os homens. Assim escreve Lobato na crônica “O Pai da Guerra”, publicada no livro A Onda Verde:
Assim, a guerra é o Mal, porque é o desequilíbrio de funções num corpo cuja harmonia fisiológica depende do perfeito equilíbrio dos órgãos.
Imagine-se a guerra transportada para o corpo humano. Os pulmões invadindo o cérebro e destroçando-lhe as células cinzentas. O estômago ocupando militarmente o fígado e impondo-lhe a tarefa de fabricar suco gástrico em vez da odiosa bílis. Os rins, vencedores do pâncreas, forçando-o a pagar como indenização de guerra dez litros de pancreatina, e a passar o canal de Wirsung para a jurisdição do baço.
Pois absurdos assim acontecem no corpo da humanidade em consequência da coisa monstruosa que é o direito do vencedor.
Rui Barbosa, no Deveres dos Neutros, faz eco a essa crítica, apontando, em outros termos, o mesmo fato: que o absurdo e a violência são possíveis porque a guerra, ao passar por cima das barreiras civilizatórias, provoca um desarranjo na ordem natural do mundo, que é a ordem ditada pela moral:
(…) como a moral é a barreira das barreiras entre as sociedades civilizadas e as sociedades bárbaras, abolindo a moral, proclamaram implicitamente a barbaria como último destino do gênero humano. Barbaria servida pela física e pela química, barbaria adulada pelos sábios e pelos doutos, barbaria dourada pelas artes e pelas letras, barbaria disciplinada nos ministérios e nos quartéis, barbaria com a presunção da ciência e o gênio da organização, mas nem por isso menos barbaria, antes barbaria pior, por isso mesmo. Maldita seja a guerra que, reduzindo a moral a lacaia da força, embotou o senso íntimo dos povos e envolveu em trevas a consciência de uma parte da humanidade.
Em segundo lugar, está presente em ambos os autores a percepção de que as guerras não são fruto da vontade ou das necessidades das populações que se veem nelas envolvidas; as guerras eclodem, na realidade, orquestradas pelos governantes, que são, em última instância, a representação do Estado. É o Estado que faz a guerra, muitas vezes contrariando os anseios do seu povo – e essa tese é sustentada tanto por Monteiro Lobato quanto por Rui Barbosa. Escreveu Lobato em “O Pai da Guerra”:
Há, entretanto, um erro monstruoso de visão, tanto no vencedor como no vencido. Erro de pessoa.
Esse erro é o de atribuir ao povo contrário todas as calamidades sofridas durante a guerra.
Não é o povo que faz a guerra, é o Estado. O povo limita-se ao papel de máquina, de carne sofredora e bode expiatório.
(…) os povos se acham empolgados por um monstro parasitário de estupidez infinita aliada a um infinito maquiavelismo.
Esse monstro é o Estado.
Aquela visão de lince feita homem que foi Frederico Nietzsche já o denunciou pela boca sibilina de Zaratustra.
“Não há mais povos entre nós, diz ele, há Estados. O Estado é o mais frio dos monstros frios; ele mente com frieza e a mentira que escorre perene de sua boca é esta: Eu, o Estado, sou o povo.”
Pois a mesma dicotomia povo versus Estado (ou vontades individuais versus políticas de governo) aparece na oratória de Rui Barbosa:
Mas, nas doutrinas que hoje empesteiam e desonram a inteligência humana, a religião do poder sublima-o ainda mais alto: segundo elas, planando numa região de arbítrio sem fronteiras, o Estado, alfa e ômega de si mesmo, existente por si próprio e a si próprio suficiente, é “superior a todas as regras morais”. (…) E, entendido assim, vem o Estado a ser uma entidade “independente do espírito e da consciência dos cidadãos”. É “um organismo amoral e depredatório, empenhado em sobrepor-se aos outros estados por meio da força”. Não tem, para reger-se, senão sua vontade e soberania.
Os povos sabem que as guerras, em nossos dias, nem sempre são resultados espontâneos de causas sociais. Ordinariamente são atos de vontade, resoluções individuais, maduradas no arbítrio dos potentados, encaminhadas pela diplomacia secreta e rebuçadas pela mentira política com a linguagem dos grandes sentimentos de honra, direito, salvação nacional.
Por fim, Lobato e Rui compartilham da visão de que a guerra se alimenta da guerra, isto é, que as feridas mal cicatrizadas de um conflito acabarão por se abrir novamente logo adiante, provocando um novo confronto. Trata-se da bem verificada tese histórica de que as medidas que põem fim a uma guerra são, muitas vezes, o embrião de uma próxima; há um ciclo de exercício de poder, uma ciranda de vencedores e vencidos que sempre retorna ao mesmo ponto: o fragor dos campos de batalha.
Em entrevista à Folha da Noite, Monteiro Lobato afirmava:
Da violência só sai violência. Contra uma grande nação dementada pelo “delírio do poder”, o mundo se juntou de 1914 a 1918 e dominou a Alemanha depois de horrorosa hecatombe. Mas, inebriados pelo “delírio da vitória”, os vencedores lançaram mão do único remédio que jamais curou coisa alguma: violência…
O resultado só podia ser o que foi. A Alemanha, violentada no Tratado de Versalhes, reagiu vinte anos depois com o maior acesso de violência e crueldade que a história registra, forçando o mundo a se coligar de novo.
Rui, por sua vez, atribui o fato de as guerras seguirem-se consecutivamente à ausência de uma legítima preocupação com a justiça; enquanto não houver justiça na resolução dos conflitos, argumenta Rui, o antídoto para um conflito será o veneno que corromperá o espírito das nações e as levará a novo embate:
A própria vitória das armas, quando não corresponde à justiça, não os dirime solidamente [os conflitos]: apenas se abafam e procrastinam para, ulteriormente, renascerem em novas guerras. Se a de 1870 não tivesse tomado à França a Alsácia e a Lorena, não teria perpetuado entre os vencidos o sentimento da desforra, entre os vencedores, o da conquista. Somente a moral, portanto, é prática. Somente a justiça é eficaz.
Tendo por base esse conjunto de excertos, é possível dizer que, embora tenham se colocado em posições diametralmente opostas no que diz respeito ao caso específico do engajamento brasileiro na Primeira Guerra Mundial, Monteiro Lobato e Rui Barbosa tinham opiniões bastante consonantes sobre as guerras de modo geral.
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Uma versão deste ensaio apareceu inicialmente na coletânea Iª Guerra Mundial: Reflexos no Brasil (2014), do Círculo de Pesquisas Literárias de Porto Alegre.
Rafael Bán Jacobsen
Físico da UFRGS e escritor. Seu romance Uma leve simetria (2009) foi finalista do Prêmio Açorianos.
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