História

Por que não somos liberais

por Elton Flaubert (16/06/2015)

O olhar do presente, agindo como juiz da história, nem sempre capta as contradições e vicissitudes dos movimentos do homem no tempo

"Pare de acreditar no governo: Por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado", de Bruno Garschagen (Record, 2015, 322 páginas)

“Pare de acreditar no governo: Por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado”, de Bruno Garschagen (Record, 2015, 322 páginas)

O aumento da participação do Estado na economia e na vida das pessoas durante a era petista, consagrando pelo financiamento do BNDES aquilo que podemos chamar de “capitalismo de compadres”, realçou também a reação ao intervencionismo. Nos últimos anos, foram lançados vários livros ocupando quase um vácuo na esfera pública do país: o da direita liberal.

Em Pare de acreditar no governo, Bruno Garschagen procura fazer uma síntese histórica da visão positiva que os brasileiros possuem da ação do Estado em suas vidas. Diante de certa mentalidade comum no país, o autor se pergunta: por que os brasileiros desconfiam dos políticos, mas sempre apelam para intervenção estatal (administrada justamente por políticos) para resolver seus problemas? A resposta dessa pergunta é o mote do seu trabalho. Na exposição dos argumentos, ele demonstra a influência do pensamento “liberal-conservador” inglês.

Garschagen dispensa excesso de observações sociológicas, ou mesmo reflexões mais filosóficas sobre a identidade de uma nação moderna, ou ainda um estudo mais detalhado das possibilidades e debilidades da sociedade civil no Brasil a partir do processo de consolidação da cidadania. Para ele, os nossos males (ou seja, a “estatolatria”) “são a realização de ideologias tortas por governos oblíquos” (p.35).

Assim, nosso problema não é culpa lusitana ou da influência católica, mas de “escolhas erradas” que foram feitas. Por exemplo, ele lamenta que os membros da Inquisição portuguesa não tenham sido influenciados decisivamente pelos escolásticos da Escola de Salamanca, favoráveis à economia de mercado. Ao contrário, por não terem optado pelo caminho correto, influenciaram o país decisivamente na formação de uma “mentalidade contrária à prosperidade e ao lucro” (p.49). Para Garschagen, o Tribunal do Santo Ofício, com sua estrutura eficiente, foi decisiva para arruinar o setor açucareiro (p.50), gravando na cultura brasileira “valores contrários ao empreendimento privado” (p.50). A tese é controversa, mas esse é um dos exemplos que Bruno utiliza para ilustrar seu argumento sobre as escolhas erradas que tomamos e continuaríamos a tomar.

Neste sentido, o autor vai colecionando fatos sintomáticos desde a fundação do país com as apostas equivocadas no Estado. Ele identifica um ambiente cultural em que prosperam ideias favoráveis ao intervencionismo, gerando uma mentalidade estatista, apesar do descrédito sempre crescente da ordem política no país. Como o problema são as escolhas equivocadas de até então, ele realça que o predomínio do estatismo é obra de séculos e ocupação de espaços:

É o resultado de um longo exercício de um tipo de política e de difusão e ocupação ideológica dos intervencionistas do passado e do presente na literatura, na dramaturgia, nas artes plásticas, na música, no cinema, no mercado editorial, no jornalismo, no ensino, na política, na universidade. (p. 263/264)

Desta feita, se faz mais evidente as escolhas de Garschagen e do lugar de onde parte sua reflexão. Não cabe esquecer que o autor parte de uma pergunta que pressupõe uma contradição aparente e uma crítica liberal à intervenção econômica.

Na historiografia, a mentalidade de um povo é a maneira como a maioria das pessoas sente e pensa o mundo à sua volta em sua época. Ou seja, a maneira como um camponês medieval concebe seu ser na cultura difere da maneira como nos enxergamos hoje. O problema de tratar as mentalidades – e consequentemente estamos falando também da história cultural – a partir de escolhas equivocadas por ideologias tortas é portar-se como juiz que busca no passado as origens dos nossos males e se autodeclara portador de sua resolução. Se há ideologias tortas, há ideologias não-tortas. Se os nossos males são frutos de ideologias tortas, serão solucionados na derrota destas.

Entretanto, um dos problemas da política secular é a tentação de acreditar numa adequação da realidade que, no fim, não passa de uma ilusão de liberdade, ao tentar eliminar as tensões da existência. Não à toa vemos direita e esquerda falando em nome da liberdade como sentido último de suas ações. Ao contrário, creio, como René Girard expôs em Rematar Clausewitz, que na história nada se começa, tudo se responde.

Por isto, ao ler nossos problemas (nunca vistos com o necessário outro: os ganhos) como escolhas equivocadas por ideologias tortas, faz-se nossa história girar em torno da experiência externa (e Garschagen demonstra admiração pela inglesa), onde o papel do Estado não foi decisivo na regulação da vida em sociedade. Há certa sensação de inadequação dos problemas.

O Brasil é uma nação moderna, marcada pelo de fora. É utópico (e mais uma ilusão de quem fala em nome da liberdade) imaginar que o transcorrer histórico é guiado por escolhas tão livres quanto a de quem vai num supermercado para escolher a melhor marca de feijão. E isto obriga a lidar com condições objetivas e não apenas com escolhas subjetivas. Um livro que trata de uma mentalidade desde a “descoberta” do país aos dias de hoje trata (mesmo que não queira) essencialmente da fundação do país. Neste sentido, falta mais diálogo com a experiência de nossos vizinhos de experiência e mais reflexão sobre as razões que levaram atores políticos do passado a escolherem pelos caminhos que podem não parecer mais adequados hoje.

O autor descarta a tese de que o Estado aqui se formou antes do povo (p. 33), mas não a apresenta de maneira generosa. Ele desmente o que chama de “consolo dos tolos” por em 1534 terem sido instituídas as capitanias hereditárias, o que seria uma concessão para agentes privados e não a instalação de um Estado com instituições e burocracia (p. 34). No entanto, o âmago da tese que se pretendeu refutar não é este. O que se costuma afirmar é que a sociedade civil não possuía elementos de organização nacional (o que depois fomentaria uma moral laica civil) antes do processo de emancipação que marca a racionalização do mundo moderno.

Depois das inúmeras revoltas no período regencial, o debate político que marca o início do Segundo Reinado é sobre dar mais ou menos liberdade às províncias: centralizar administrativamente o país e garantir a unidade nacional na figura da Monarquia ou dar mais liberdade para as províncias, correndo o risco de desintegração? Com o predomínio saquarema (conservadores), princípios e instituições imperiais foram articulados visando manter a unidade nacional e regrar os conflitos entre as elites políticas. A representação funcionava como uma intermediária, impedindo tanto uma degeneração legal da monarquia, pelo excesso de poder nas mãos do imperador, como a anarquia. A monarquia, constitucional e moderada, funcionava a partir de preceitos legais, limitando as prerrogativas do príncipe e garantindo que o poder moderador fosse uma arbitragem para impedir degeneração e desordem. A monarquia deveria manter a estabilidade e unidade do país, harmonizando as regionalidades.

Depois da independência, era preciso construir as instituições nacionais. Para formar o Estado nacional, até os anos cinquenta, houve uma “acumulação primitiva do poder” (expressão de José Murilo de Carvalho), onde os gastos públicos tinham por objetivo a organização do aparelho de Estado, centralizando poder e garantindo o controle sobre o território. O Estado construía sua burocracia e, como aponta corretamente Garschagen, a elite política aqui é treinada para agir nele. No entanto, isto suscita algumas questões. O sociólogo Alberto Guerreiro Ramos irá chamar esta peculiaridade de “dialética da ambiguidade”: ao mesmo tempo em que o governo era sustentado por uma elite que vinha das estruturas escravocratas do império, ele era a única força capaz e interdependente dela para destruir a escravidão.

A necessidade de centralizar o poder e equalizar as diferenças e diversidades regionais levou ao espírito de conciliar e harmonizar contradições. Ao contrário da experiência inglesa, onde o pensamento conservador era uma defesa da sociedade civil e do acordo entre as gerações (passado, presente e futuro), aqui se levou à defesa de um Estado centralizador que garantisse a soberania nacional e possibilitasse o ser brasileiro. Nosso olhar do presente, agindo como juiz da história, nem sempre capta as contradições e vicissitudes dos movimentos do homem no tempo e de decisões que precisavam ser tomadas de acordo com tal contexto.

Por estarem pensando na garantia da unidade, os conservadores brasileiros sempre estiveram interessados numa conciliação, fazendo um trabalho de adaptação para incorporar o ideário progressista de maneira gradual. Ao contrário do que se pensa, foram os conservadores (estatistas) e seus principais líderes (formuladores da centralização saquarema) que fizeram as reformas contra a escravidão, demonstrando na prática a “dialética da ambiguidade”.

A votação da Lei do Ventre Livre desmonta a tese que atribui ao Norte agrário (mais estatista), região economicamente estagnada, comportamento político contrário às reformas, contratando-a com Minas Gerais e São Paulo, regiões de economia moderna e comportamento descentralizador. Rio Branco obteve entre os políticos conservadores nordestinos seu principal ponto de apoio para a aprovação da Lei. Na Câmara dos Deputados, o projeto de lei obteve 65 votos favoráveis e 45 contrários; destes, 30 eram de deputados das três províncias cafeeiras: Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. No Senado do Império, foram 33 votos a favor e 7 contra. Entre os votos contrários, 5 foram de senadores das províncias cafeeiras. Coube ao Barão de Cotegipe e ao Visconde de Camaragibe, membros ilustres da aristocracia açucareira, a liderança da bancada pela aprovação da Lei do Ventre Livre. Anos depois, na aprovação da Lei dos Sexagenários, o liberal Saraiva, um ex-integrante do partido conservador, só conseguiu aprová-la, novamente, com apoio dos conservadores do Norte.

Assim, verifica-se que numa nação com as características formadoras do Brasil é difícil importar o mesmo contexto da sociedade inglesa, por exemplo. Por aqui, os formuladores da centralização saquarema foram os que procuraram garantir o acordo entre as gerações. A viagem rápida e sintética do autor por mais de 500 anos de história, a fim de expor os males das escolhas intervencionistas, deixa de lado uma reflexão mais profunda sobre a identidade do país e de sua história intelectual. Fica a impressão de que agrada um público ávido pela leitura histórica através de certo ângulo, mas deve noutros aspectos.

Por exemplo, Garschagen atribui a Manoel Bonfim a tese de que a origem dos nossos males encontra-se no período colonial (p.35). Entretanto, o debate a respeito da influência positiva ou negativa da tradição colonial remonta à independência do país, sendo mais destacado no período romântico nas discordâncias entre Gonçalves de Magalhães (pessimista) e Varnhagen (otimista), quando Bonfim ainda nem havia nascido.

É interessante notar que a educação clássica oferecida pelos jesuítas foi identificada pelos jovens moços da elite letrada como um “atraso colonial”, muito devido à influência do iluminismo francês. O atraso brasileiro era identificado com a sua situação de colônia. E, por sua vez, as “ideias da Metrópole”, representadas pelos jesuítas, significava o atraso intelectual da nação. Essa transição de saberes e o ódio às nossas origens que perpassa nossa mentalidade de conciliar para depois “quebrar” a ordem (sempre começando do novo) poderia ter sido mais abordada no livro, o que daria um fôlego maior à apresentação dos problemas do estatismo fundador.

Não se pode negar que o autor parte de uma pergunta interessante. Os brasileiros parecem estar sempre insatisfeitos com sua classe política, mas depositam esperança na ação do Estado para resolver seus problemas. No entanto, algumas objeções podem ser levantadas a respeito desta contradição aparente que moldura o argumento.

Revoltar-se contra este mundo já é escolhê-lo. A desilusão é fruto dos falsos deuses. Só reclama e está sempre insatisfeito com algo quem muito dele espera. Só se critica algo ao ponto da desconfiança quem deposita muita fé nisto. Os brasileiros se desiludem facilmente com sua classe política justamente por depositar muita expectativa na ação dos governantes e da política secular (com ou sem “estatolatria”). O estado de Pernambuco, que assistiu a melhorias econômicas e sociais durante o governo de Eduardo Campos, comoveu-se como nunca antes diante da trágica morte do antigo governador. A confiança no político varia de acordo com seus resultados e da maneira como ele aparece como “patriarca” no imaginário popular. Neste caso, o Estado aparece como a “unidade espiritual” de um povo ao estilo romântico. As razões para isto – com suas perdas e ganhos – precisam ser procuradas na experiência em comum de ser brasileiro, e não apenas em escolhas equivocadas.

Outro elemento é que a democracia liberal e a crítica moderna não podem sobreviver sem uma crise em estado de suspensão. Para a construção do mundo liberal, a convicção precisava-se transformar em crítica política, onde se averiguaria o desejo dos cidadãos, cumprindo-se os das maiorias desde que se respeitassem os direitos das minorias. Mas antes de se tornar lei, esta moral laica precisou ser construída e vivenciada no secreto, e isto possibilitou a organização da sociedade civil em torno de clubes, sociedades secretas, etc. As pessoas não se juntam apenas na tradicional ordem religiosa, mas criam coletividades terrenas que imanentizam a ideia de absoluto através de uma moral sem o transcendente. Como lembra o historiador Koselleck, Leibniz já advertia de que a função das sociedades secretas era a imitação do cosmos divino. E nos seus planos reside a bondade, justiça e sabedoria de um projeto na terra. O processo crítico moderno, que imanentiza o absoluto, se autojustifica. Cada um se torna soberano em relação a todos e sujeito ao juízo de todos. O antigo sermão particular do padre se transforma em crítica que todos exercem e se sujeitam.

Quando identificamos todo infortúnio com a ordem política, depositamos também toda nossa esperança nela. E este processo crítico, este elemento fomentador de repúdios, conciliações e rupturas, é o elemento fundador de nossa “unidade espiritual”, do ser brasileiro, que parece não poder abdicar para existir. Porque, se o brasileiro vê o Estado como auxiliador e patriarca, e não de maneira contratual (formado pela sociedade civil), é também um povo avesso às ilusões da liberdade, do chamado processo de emancipação, sendo majoritariamente contrário ao aborto e que tais.

O livro de Garschagen – e outros que vão neste sentido – possui o mérito de chamar atenção para os problemas (não só econômicos) do intervencionismo e dos excessos do “Estado-babá”, ainda mais diante da hegemonia das teses econômicas da esquerda no Brasil. Lembro aqui do estudo de Paulo Mercadante, A coerência das incertezas, que, para mim, é o mais refinado trabalho de história das mentalidades no país.

É importante refletir, principalmente em tempos de crony capitalism, a respeito dos nossos problemas em torno da visão romântica do Estado. No entanto, é preciso pensar sobre nossa formação, nossa experiência em comum, menos com o olhar de juiz das ideologias, e mais com o ímpeto intelectual de pensar a si mesmo. E, neste sentido, a abordagem que enfoca na “estatolatria” (na verdade, costumamos ver o Estado como uma “unidade espiritual”) como uma ideologia errada de consequências funestas parece-me problemática, para não dizer um pouco arbitrária com a experiência brasileira.

Elton Flaubert

Doutor em História pela UnB.