Não existem horas em SP

Lucas Verzola compõe boas histórias, com vieses apontados nas relações afetivas, na confusão reinante dentro das big metrópoles.


"São Paulo depois de horas", de Lucas Verzola (Patuá, 2014, 150 páginas)

“São Paulo depois de horas”, de Lucas Verzola (Patuá, 2014, 150 páginas)

Você vê o livro. Ele é bonito, tem acabamento em capa dura, o que lhe confere presença (é quase comum em livros da editora Patuá, de SP, capitaneada pelo Eduardo Lacerda, assim como a ilustração de capa ser do Leonardo Mathias). Pena a fronte e a contracapa usarem cores tão escuras. Quem sabe porque remeta ao título: São Paulo depois de horas. No primeiro plano, um vulto em azul marinho toca saxofone, que você descobrirá ser figuração de Coltrane quando iniciar a leitura. O livro é de contos, tem 14, e foi finalista do Prêmio Sesc 2013/2014, informações contidas no Sumário e na biografia do autor, Lucas Verzola, no início e fim do volume, respectivamente.

A compilação inicia com “Sobre cigarros e John Coltrane” retratando, mais do que o voyeurismo, a solidão imanente do ser humano, ainda que esteja acompanhado ou seja refém do (como na canção do Rappa) mar de gente das grandes cidades. “Tempus fugit” é sonorizado, dessa vez, pelas Quatro Estações de Vivaldi, mostrando o narrador (criatura moderna tão comum em nossa sociedade do capital) sufocado entre a pressão laboral e sua vida particular, não se agradando – e nem poderia, diante da invencibilidade do tempo – ou encontrando espaço vivencial em quaisquer das duas. Em “Acerto de contas”, após certo jogo de futebol entre Corinthians e o Juventus ocorrido nos anos de chumbo, um dos jogadores do segundo time é conduzido ao DOI-CODI, lá permanecendo por dez anos; como o título faz referência, é hora da vingança.

Mudando o foco de narradores para uma narradora, “Amor fiado” trata de um encontro com o ex, marcado num restaurante de apreço por ele, mas que ela passou a desgostar conforme ia se esfarelando o envolvimento dos dois. Quando o ex chega, faz a ela um pedido inusitado; seu atendimento demonstra o que ainda restou daquela relação. “De lágrima” e “São Paulo depois de horas” são histórias descritas em terceira pessoa. Na primeira, tem como foco uma mãe cristã que tenta tirar a filha de uma vida inaceitável a suas convicções; na segunda, que dá título ao volume (em um design diferente com letras em branco sobre páginas em negro, remetendo à madrugada em que se passa o narrado), existe uma fusão de personagens envolvidos numa sequência de ações, demonstrando a perspicácia e rapidez argumentativa/descritiva do autor. Voltando à primeira pessoa e com um homem narrando, “Eu faria tudo para te ter comigo esta noite” usa de uma esquizofrenia senil para destrinchar pesares e metas esperadas(?) que não foram alcançadas ao longo da vida.

O mote homossexual aparece inicialmente no conto seguinte, “Candy”, misturando letras de canções à descrição, o que deixa o tom intimista ainda mais denso, no qual o narrador esmiuça de maneira visceral seu envolvimento amoroso até as últimas consequências, não ficando de fora a descrição do submundo paulistano com seus inferninhos e ruas sujas nos quais os atos são praticados. Em “Libertango”, saindo da esfera urbana paulista retratada até então, você lê os pensamentos de uma personagem feminina em Buenos Aires que intenta um abandono, associando a liberdade que agora procura alcançar do que, até ali, tivera com seu amante argentino, como ela mesma diz, “nossa vida era um tango, ora profundamente alegre, ora terrivelmente angustiante; nunca morna”.

“Ensaio” traz a narração de um cego abandonado que, participando de um coral dominical vem a ser castrado, após aderindo a um espetáculo musical em que se descobre um artista, a ponto de causar invejas em seus pares, e o amor por outro rapaz, acabando seus dias glorificando-se num karaokê na Liberdade, onde canta músicas enquadradas em seu tom agudo de voz. “Exoteromania”, com flertes a Borges e Córtazar, fala de influências do mundo imaginário no mundo dito real, em que a voz masculina relatora, no começo descrente, passa a acreditar, mesmo alegando receber auxílio psicológico em sentido oposto. Ao recapitular a vida de uma mulher mal falada e discriminada na sua comunidade, pela qual já nutriu (e ainda nutre) amor e paixão, o narrador de “A história de Jurema” descreve sua suposta morte e o reencontro de ambos. Com forte carga emotiva, este talvez seja, a seu ver, o melhor conto do livro.

De outro lado, visível é a herança da literatura marginal de Fonseca na história “Cativos”, na qual um grupo de criminosos não se decide sobre o que fazer com sua sequestrada, decidindo, por hora, jogarem, todos, uma partida de truco – passamos pelas declarações dos bandidos e da abduzida num exercício pleno de fluxo de consciência, até a grande reviravolta. “Vésperas”, que encerra o trabalho, apresenta, novamente onisciente, um trio feminino que estaria se aprontando para uma grande festa no anoitecer, em que seus problemas necessariamente financeiros seriam solucionados; no desenrolar da trama, contudo, fica-se sabendo que o delírio sobrepujou os fatos, e a verdade é descortinada ao leitor-público tal qual a uma das mulheres.

Para seu primeiro livro, Verzola compõe boas histórias, com vieses apontados nas relações afetivas, na confusão reinante dentro das big metrópoles (e no mesmo caos que sobeja dentro dos atores que encenam sua vida cotidiana), sendo São Paulo apenas um exemplo. Existe o crime, a loucura e a trilha musical se encaixando em tudo isso, ainda, o que faz lembrar do poema do Criolo: “Não existe amor em SP/Os bares estão cheios de almas tão vazias/A ganância vibra, a vaidade excita/Devolva minha vida e morra/Afogada em seu próprio mar de fel/Aqui ninguém vai pro céu”. Ademais, não é à toa que a epígrafe faz referência ao filme de Martin Scorsese, After hours, em que o protagonista se vê diante de situações bizarras enquanto tenta ir ao encontro de uma bela mulher. Grosso modo, os personagens de Verzola são isto: seres que buscam o que nem eles sabem que lhes satisfará, e, por isso mesmo, ficam sujeitos a todas as intempéries (in)imagináveis. Se formos filosofar, é o que todos fazemos, a diferença é onde isto é realizado, numa pequena, média ou grande cidade. Realizar numa metrópole enseja mais dramaticidade, talvez.

Existem alguns erros de revisão no texto, você nota, mas nada que atrapalhe a satisfação de ter lido a obra – a experiência de Lucas como redator, repórter e editor-assistente no Grupo Folha, além do conhecimento jurídico que aplica numa que outra palavra, dá o aval de que se lê algo de quem sabe o que estava escrevendo, não constituindo momentos vãos. Por serem contos, em tese breves relatos que demandariam finais surpreendentes, dão-se também alguns cortes abruptos na leitura para atingir essa intenção, mas nada que desagrade diante da qualidade e experiência literárias demonstradas no transcurso.

Você por e-mail questiona Verzola se as narrativas tinham intenção de se passar somente durante o cair do dia. Ele responde: “As histórias não precisavam passar necessariamente depois do cair do dia, apesar do anoitecer ser sim um aspecto relevante. O fio que une todas as histórias, ainda que de forma tangencial em alguns casos, é a alteração da percepção da realidade e das regras de um jogo com as quais os personagens estavam acostumados. Por que São Paulo depois de horas? Porque o passar do tempo é um desses elementos que alteram as regras. As coisas funcionam de outro jeito de madrugada, assim como quando estamos bêbados, drogados, apaixonados, fissurados, em transe espiritual, cegos por uma religião, literalmente cegos, com ciúme, recém-saídos de uma briga, com uma doença degenerativa, com a adrenalina a mil, frustrados, em busca de vingança. Enfim, acabei citando o componente-chave de cada um dos contos que, quase sempre somados com o cair do dia (que por si só já traz uma carga pesada de melancolia reflexiva para os personagens, quase todos solitários), alteram a percepção da realidade”. Você sorri. A declaração do autor acaba indo ao encontro do que você divagou durante e após a leitura: numa cidade que nunca dorme, as histórias e personas detalhadas por Lucas poderiam se dar não somente quando vem a noite, mas a qualquer minuto.

Amálgama




Andrei Ribas

Autor, mais recentemente, de Animais loucos, suspeitos ou lascivos e Cada amanhecer me dá um soco. Vive em Santa Rosa-RS.


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