Ler Saul Bellow é antes de tudo um exercício de humildade e questionamento, uma experiência de fascinação pela linguagem e de reencontro com a vida.
Deixar-se deslumbrar com a vida é missão daqueles que acreditam no potencial humano. Para além das ideologias existe o homem, a sua narrativa individual e o seu relacionamento íntimo com o mundo. Talvez seja por isso que muita gente não consiga ler e compreender a obra de Saul Bellow (1915-2005) – cujo centenário está sendo celebrado pelo mundo da literatura.
Afinal, o homem contemporâneo resiste a qualquer tentativa de mergulhar em si mesmo. Ao invés de tornar-se a si próprio, exalta-se cada vez mais em pura histeria ideológica e intelectual: torna-se irremediavelmente pretencioso e intolerante.
Ler Saul Bellow é antes de tudo um exercício de humildade e questionamento, uma experiência de fascinação pela linguagem e de reencontro com a vida. Muito pouco disto é valorizado por gente cuja imaginação, oprimida por valores absolutos, ostenta uma compreensão da condição humana repleta de clichês.
Essas pessoas formam uma horda hipersensibilizada por dramas coletivos, porém alheia ao teatro da vida individual. Para gente assim — não familiarizada com a ambivalência dos desejos humanos e com a pluralidade de causas que atuam sobre o desenrolar do nosso destino — o deslumbrar-se com a vida se transforma em indolência e qualquer literatura passa a consubstanciar delito contra a lucidez.
Mas se existem crimes de desobediência que elevam e restauram a fé no homem, talvez Saul Bellow seja um dos últimos marginais da literatura que representa a luta do indivíduo por autodeterminação.
Irônico chamar Saul Bellow de marginal, afinal, nos últimos sessenta anos, ele tornou-se um dos autores norte-americanos de maior prestígio. No entanto, a sua vida foi marcada pela ameaça de marginalização. Judeu, nascido numa família de imigrantes, ele conheceu desde cedo as dificuldades de adaptação em uma sociedade que parecia condenar a diversidade étnica e literária das suas origens.
Afinal, seriam os judeus brancos o suficiente para participar do panteão da literatura norte-americana? É claro que não. Até meados da década de 1950, os autores norte-americanos mais celebrados pela crítica não eram judeus.
Naquela época, nomes como o de Ernst Hemingway ditavam o estilo e as temáticas dominantes, além de preservar uma aura de antissemitismo remanescente da autoridade literária jamesiana. Quem não se lembra do personagem Robert Cohn em The sun also rises, idealizado para ressaltar as virtudes de Jake Barnes? O que, também, reflete e questiona os preconceitos de uma época sobre cultura e identidade judaica.
Assim como em Hemingway, Cohn é acusado de não pertencer ao seu grupo de amigos, foi o antissemitismo da comunidade literária norte-americana que marcou os primeiros passos da carreira de Saul Bellow e agravou a sua sensação de isolamento.
Como bem nos explica James Atlas, biografo de Bellow, a certeza de que os judeus formam parte da cultura norte-americana é recente. Ela chegou com o pós-guerra, no momento que o holocausto tornou qualquer manifestação de antissemitismo inaceitável. Mesmo assim, pesava oposição ao romance dos novos autores judeus, na suposição de sequestrarem a literatura norte-americana.
Segundo Atlas, “uma estirpe de antissemitismo foi preservada na literatura norte-americana e entre os seus porta-vozes. Naquela época, entre os bastiões da crítica literária, os novelistas judeus eram encarados com a mesma suspeita que, uma geração mais tarde, os escritores negros enfrentariam.”
Decorrente deste fato, pode-se entender o motivo de tantos entes marginais na obra de Saul Bellow. Augie March, Artur Sammler e Moses Herzog: todos eles são personagens que não se enquadram em papeis sociais específicos e cujas peculiaridades são reveladas pela linguagem. Assim, a genialidade e o autodidatismo de Augie March tornam-se evidentes através do esforço de Saul Bellow em adaptar a língua ao seu próprio sotaque.
Através de uma reviravolta sintática da qual ele muito se orgulhava, Bellow foi capaz de emprestar novas possibilidades ao romance de língua inglesa. Se, por um aspecto, em Augie March, ele tornou-se capaz de descrever o seu personagem através do ritmo da linguagem, por outro lado, em Herzog, a reviravolta sintática do autor elevou o pensamento ao nível da ação e liberou a linguagem para expressar a unidade entre as ideias e a nossa experiência de mundo.
É justamente essa quebra do dualismo entre teoria e prática que coloca Moses Herzog, uma dos mais célebres personagens de Saul Bellow, cara a cara com a loucura. O drama de Herzog começa em tom de meditação. Após um segundo casamento fracassado, Moses entra em desespero. Ele busca amparo na razão, nos livros e em metáforas do universo intelectual que interrompem e mascaram a expressão do seu sentimento de perda.
Incapaz de conviver com o vazio da perda, Herzog expõe uma sensação de isolamento e impotência causada pela hipertrofia de falsas presunções intelectuais. Ele é um homem cuja visão de mundo, excessivamente acadêmica e ilustrada, está em pleno descompasso com o seu desenvolvimento emocional. E que, por fim, descobre que o seu privilégio intelectual trata-se apenas de mais uma forma de dependência. Do que adianta o excesso de ideias e de sistemas, quando nós não podemos sentir o seu efeito positivo em nossas vidas?
Assim, o emaranhado de ideias e a descoberta de sensações que marcam a trajetória do seu personagem principal faz de Herzog um romance de formação às avessas. Ou seja, ao invés de propor uma fórmula para educar e moldar o caráter e as reações do personagem; Bellow deixa Moses Herzog livre para reavaliar a sua relação com o mundo e, finalmente, enxergar a beleza inesperada da vida.
Ainda muito garota, me deparei pela primeira vez com um retrato de Saul Bellow. O retrato, retirado de alguma publicação internacional (daquelas que apenas tínhamos acesso nas livrarias dos aeroportos), repousava sobre as anotações do meu pai. De olhar firme e inquisitivo, o modelo na foto parecia desvendar e provocar a realidade para além da imagem.
Anos mais tarde, reencontrei essa mesma sensação nos seus textos. Seja na sua obra de ficção, ou nos seus ensaios, Bellow sempre consegue se desvencilhar do senso comum e nos presentear com o inusitado. Com uma fé inabalável na capacidade regenerativa do homem, a sua obra universaliza dramas individuais e nos presenteia com a possibilidade de nos tornarmos senhores dos nossos próprios destinos.