Reduzir a maioridade é fazer uma opção por um sistema que gera uma reincidência recorde, que falha em reduzir a violência, e que já está completamente lotado.
1.
Após ter seu nome colocado entre os investigados na “Lava Jato” (sic), tendo sido aberto inquérito para investigá-lo no STF, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, iniciou uma agenda de votação de projetos considerados populares e/ou polêmicos, como a “PEC da Bengala” e a “reforma política”. Tais projetos parecem atender a dois propósitos: modificar o foco da opinião pública das investigações, e garantir apoios no judiciário (especificamente com a mudança da regra para a aposentadoria compulsória). Assim, apesar da formação da pauta não estar se guiando necessariamente pela urgência e maturidade dos temas, isto é, pela sua relevância para o país e pelo estado avançado das discussões democráticas sobre essas matérias, o debate delas – ainda que apressado – se impõe.
Neste sentido, escrevemos para argumentar sobre o “próximo alvo” de Cunha: as propostas de redução da maioridade penal. Na primeira parte deste texto, defenderemos que a previsão da imputabilidade penal somente a partir dos 18 anos na Constituição da República (CR, daqui em diante) constitui-se em cláusula pétrea. Na segunda parte, proporemos uma mudança na questão que é normalmente colocada quando se fala em maioridade penal no debate público, apresentando argumentos filosóficos, jurídicos e de política criminal.
Simplificando bastante, cláusulas pétreas são certas normas que não podem ser modificadas pelo poder legislativo, nem quando do exercício do poder constituinte derivado, isto é, do poder de estabelecer a norma fundamental de um determinado país. Diz-se derivado porque esse poder encontra fundamento e legitimidade no poder constituinte que o povo exerceu quando elegeu uma Assembléia Constituinte para escrever sua Constituição (dito, por isso, originário). Na nossa Constituição essas normas são definidas pelo art. 60, § 4º:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais. (grifo nosso)”
Essas normas, portanto, são aquelas que definem o núcleo básico do que são o Estado e o povo brasileiros, ou seja, a configuração mínima e essencial do que é o nosso Estado Democrático. Neste sentido, defendemos que o artigo 228 da CR estabelece uma garantia mínima aos adolescentes e crianças brasileiros: não ser penalmente imputáveis como adultos, estando sujeitos à legislação especial, isto é, a uma justiça juvenil, em conformidade com a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1990.
Duas opiniões que buscam negar a condição de cláusula pétrea ao artigo 228 merecem ser problematizadas. A primeira, mais sutil, busca negar a idade de 18 anos como cláusula pétrea. Para aqueles que esposam essa opinião, a existência de um limite para a imputabilidade penal é cláusula pétrea, mas não a sua definição em 18 anos. Perguntamos, então: poderia existir emenda que, ao invés de eliminar um direito fundamental, criasse exceções ou reduzisse a sua abrangência? A resposta a essa pergunta deve ser, desenganadamente, negativa. Os direitos fundamentais podem ser limitados em seu exercício por outros direitos fundamentais, mas não podemos reduzi-los por razões políticas devido ao princípio da vedação de retrocesso social: os direitos podem ser ampliados, nunca reduzidos.
A segunda é defendida por aqueles que demonstram uma “anemia de saber jurídico” e tem na sua simplicidade seu principal defeito. Eles defendem uma definição topológica dos direitos e garantias individuais, dizendo que se encontram todos definidos no artigo 5º da CR. Não são necessários muitos argumentos para mostrar a inexatidão dessa opinião; basta citar o próprio artigo 5º, § 2º da Constituição: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Ou seja, o próprio texto constitucional avisa que existem direitos e garantias implícitos na constituição e, ainda, que mesmo os tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte podem definir outros. Não bastasse isto, o STF já reconheceu quando do julgamento da ADIn 939-7/DF (relator Ministro Sydney Sanches, em 15.09.1993) que o princípio da anterioridade tributária (CR, art. 150, III, “b” e “c”) é uma cláusula pétrea da Constituição.
2.
As propostas de redução da maioridade penal em debate no Congresso partem, de forma geral, de um mesmo lugar comum: adolescentes de determinadas idades (14, 15, 16 ou 17 anos) já são capazes de entender o caráter ilícito de várias condutas e de determinar suas ações de acordo com esse entendimento (também parte desse raciocínio, de certo modo, a proposta do senador Aloysio Nunes). A partir dessa constatação, constroem um discurso no qual a inimputabilidade penal aparece como impunidade. Inicialmente, dois comentários precisam ser feitos: em primeiro lugar, é necessário esclarecer como se dá a responsabilização no Direito brasileiro; em segundo lugar, cumpre realizar breve explicação sobre os sistemas de imputabilidade penal.
No Direito brasileiro, a responsabilização das pessoas pelos seus atos se dá de modo difuso: uma mesma pessoa e um mesmo ato podem ser responsabilizados de diversas formas, isto é, em diversos “micro-sistemas”. Por exemplo, o mesmo acidente de trânsito pode levar a responsabilização civil (danos materiais), responsabilização penal (lesão corporal) e responsabilização administrativa (servidor público que conduzia veículo de forma temerária pode responder por falta disciplinar). Algumas funções públicas podem levar a que as pessoas que as ocupam não sejam responsabilizadas de certa forma, mas sim de outra maneira em substituição (agentes políticos não respondem administrativamente, mas sim político-administrativamente – não respondem a processo administrativo disciplinar, mas são processados por crimes de responsabilidade, por exemplo). Assim também ocorre com os adolescentes que não são responsabilizados penalmente, mas pelo sistema estatutário que, embora não se utilize de denominações típicas do Direito penal e seja ideologicamente informado por um princípio pedagógico, poderia ser chamado sem prejuízos de “sistema penal juvenil”.
A imputabilidade penal, por sua vez, é requisito para a culpabilidade do agente que realizou conduta típica e antijurídica e a verificação da sua presença dá-se através de três espécies de teorias: aquelas que utilizam somente características biológicas para essa verificação; aquelas que utilizam somente características psicológicas; e aquelas que mesclam características biológicas e psicológicas. O uso de características biológicas resulta, normalmente, em sistemas de fácil aplicação, mas de grande contestação, já que se fiam em características simples (mas indemonstráveis como marcos da “maturidade”) como, por exemplo, ter mais de 18 anos. Os sistemas psicológicos são mais complexos ao tentar utilizar-se de conhecimentos supostamente científicos para auferir a capacidade ou não de alguém entender e agir conforme esse entendimento. Entretanto, todos esses sistemas sofrem com uma crítica irrecusável: busca-se saber se o agente era imputável à época do fato realizando-se perícias durante o julgamento (muito tempo após o fato). Assim, ainda que acreditemos que a ciência consiga dizer se alguém é capaz de entender e determinar sua vontade no presente, parece muito difícil que possa dizer se essa mesma pessoa era capaz disso em um determinado momento no passado.
A neurociência estuda há anos os mecanismos de resposta do cérebro a estímulos e, embora já tenha sido utilizada como fundamentação para propostas de revisão de leis para aumentar a maioridade e penal em outros países, esta ciência não consegue determinar com qual idade os jovens passam a possuir uma capacidade de entendimento e de determinar sua vontade segundo esse entendimento. As respostas são muito vagas e variam dos 20 aos 30 anos. É muito provável que ela não possa chegar a uma conclusão sobre esse assunto por uma razão básica: a pergunta é falsa, já que o amadurecimento é um processo que, além de não ser igual para todas as pessoas, não se encerra em um momento pontual específico da vida de uma pessoa. Melhor do que eu, inclusive, o excelente Carlos Orsi já escreveu sobre este tema aqui mesmo na Amálgama.
Acreditamos que essas dificuldades devem levar-nos a re-equacionar o problema. O principal não é em qual idade a pessoa tem capacidade de entender o caráter ilícito e as conseqüências de seus atos e consegue determinar a sua ação de acordo com esse entendimento – questão psicológica –, mas sim qual a melhor maneira de lidar com esse problema de um modo que possibilite a redução da violência entendida de modo geral? Não se fala em não responsabilizar os adolescentes pelos seus atos, mas sim em qual a melhor maneira de responsabilizá-los, de modo a diminuir a ocorrência dos atos violentos não apenas dos adolescentes em conflito com a lei, mas também da sociedade de um modo geral.
Neste sentido, acreditamos que o melhor é comparar as estatísticas relativas ao sistema (penal) juvenil e ao sistema penal (adulto). Aqui se encontra o primeiro problema do sistema brasileiro: ele é opaco, no sentido de que os governos (estaduais e federal) não possuem estatísticas completas e confiáveis sobre o sistema. Reportagem recente da Folha de São Paulo mostra um pouco desse problema. Além das estatísticas serem poucas, a discrepância dos números entre os estados reflete não só a diferença de metodologia, mas a pouca confiabilidade dos números. Além do mais, como a polícia só esclarece 8% dos homicídios (embora essa estatística seja pouco clara: esses são os homicídios que tiveram seu autor condenado ou apenas aqueles nos quais o inquérito policial apontou um autor, embora ele possa ter sido inocentado?), qualquer estatística do cometimento dos crimes é irreal e mera estimativa. Poderíamos também questionar a metodologia: de que adianta o número de boletins de ocorrência ou de inquéritos que atribuem a autoria a um adolescente se esse adolescente é, posteriormente, inocentado no processo? Essa estatística se mostraria falsa porque nada garante que o autor seja realmente um adolescente.
Para minimizar um pouco esse problema, utilizaremos dados sobre os processos penais e seu equivalente para adolescentes. Assim, ficamos sabendo que, segundo o Levantamento do Sistema Penitenciário feito pelo Instituo Avante Brasil, em 2012, 17,7% dos presos do sistema carcerário cometeram crimes graves (homicídio, latrocínio e estupro). Por outro lado, segundo o Mapa do Encarceramento, do mesmo ano, os adolescentes que cumpriam medida socioeducativa pela prática de homicídio eram 9%. Na cidade de Curitiba, 3% dos adolescentes que cumpriam medida socioeducativa], em 2012, haviam cometido homicídio, latrocínio ou estupro.
Como se vê, os adolescentes cometem menos crimes graves do que os adultos. Entretanto, mesmo se chegássemos à conclusão de que as estatísticas são parecidas, os números da reincidência por si só deveriam tirar qualquer dúvida. A reincidência no sistema carcerário é estimada entre 47,4 e 70% (dependendo do crime). Já no sistema juvenil, ela varia de 13 a 54% (média de 43,3% no Brasil todo), segundo dados do CNJ.
Assim, estamos diante de duas alternativas: um sistema falido que possui alta taxa de reincidência; e um sistema que apresenta carências, mas que, mesmo em seus piores exemplos, funciona, no mínimo, com taxa de reintegração social um pouco melhor do que o outro sistema. Reduzir a maioridade é fazer uma opção por um sistema que gera uma reincidência recorde, que falha em reduzir a violência, e que já está completamente lotado. Acreditamos que os eventuais problemas do sistema juvenil são pontuais. Não é uma questão de mudar o sistema todo, mas de ajustá-lo, utilizando-se, para isso, da comparação com as experiências de outros países da nossa tradição ou família (a continental européia) e de estatísticas aprimoradas.
As experiências de outros países nos revelam que a maioridade penal (idade na qual as pessoas são tratadas como adultas) é comumente estabelecida aos 18 anos – um reflexo do Seminário Europeu de Assistência Social das Nações Unidas, de 1949, em Paris, que indicou esse limite como “razoável” –, com uma justiça juvenil julgando as infrações cometidas pelos adolescentes a partir dos 12, 13 ou 14 anos (nosso país adota a idade de 12 anos). Deveríamos aumentar o intercâmbio de informações de modo a aproveitar outras experiências, como o sistema de jovens adultos alemães. O grande problema não parece ser os adolescentes, mas sim os adultos que estão entre 18 e 25 anos. Talvez um sistema de acompanhamento mais de perto, penas mitigadas e de separação dessa faixa etária do restante dos presos possa trazer melhores resultados.
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João Paulo Rodrigues
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Hugo Silva
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