O Brexit foi sobre a soberania de um povo contra uma civilização biônica.
Após a Segunda Guerra Mundial, a Europa encontrava-se arruinada. A ideia de cooperação mútua e a criação de mercados comuns (união aduaneira) parecia fazer todo sentido diante do protagonismo americano e soviético. Todavia, a ideia-mestra por trás da unificação europeia sempre foi outra (e só poderia ser outra).
O Tratado de Roma (1957) estabelecia não só a criação de um “mercado em comum” para tratar do carvão, do aço ou da energia atômica, mas também a criação de políticas públicas integradas entre seus signatários. Políticas públicas integradas entre países sugerem evidentemente a criação de mecanismos e entidades supranacionais. Por trás da grana, o que realmente guiava os europeístas (de direita e esquerda) era a ideia de uma união política. Por isto, o tratado determinava a criação de uma Comissão Europeia, um Conselho Europeu, um Parlamento Europeu e um Tribunal de Justiça Europeu.
É o preâmbulo de um “superestado” europeu. Pretensão antiga e sempre desastrada, mas que desta vez varreria para o lixo a possibilidade trans-epocal de guerra. Era a consolidação de um sonho grandiloquente dos humanistas: a integração que homogeneíza – por cima – os valores.
Com o tempo, essas ideias foram ganhando corpo. Moeda única, uma constituição europeia, decisões juridicamente vinculantes que erodiam a soberania nacional.
Na prática, a UE representou a instituição de um poder integrado, onde os burocratas de Bruxelas, a partir de comissões, cortes, tribunais etc., se tornaram uma elite progressista intocável, ditando os rumos da Europa a partir de cima, descolados do amparo popular. Um poder político que determina a vida das pessoas em todas as suas esferas (desde bules elétricos a saquinhos sustentáveis de chá) e que almeja um único fim: transformar a sociedade de todos os países para adaptá-los a uma civilização biônica.
Em 2013, o Tribunal de Justiça Europeu determinou leis e jurisprudência a sete países a respeito da igualdade entre as relações sexuais. Em 2015, o Parlamento Europeu aprovou a transformação do “casamento gay” num direito humano, o que implicava em sanções para os membros que não o adotassem, a despeito da vontade popular nesses países. O próximo passo dos burocratas de Bruxelas é transformar o aborto e a poligamia em direitos humanos.
A ingerência desses burocratas não avança só sobre as partes mais substanciais da realidade (como a unidade familiar, a proteção da vida e a ideia de generatividade), mas também sobre aspectos mais banais, tal como a voltagem do aspirador de pó e o consumo de chá. Como afirmou Boris Johnson: “We are seeing a slow and invisible process of legal colonisation, as the EU infiltrates just about every area of public policy“.
Por isto, o Brexit não foi sobre dinheiro e imigração, mas sobre o poder integrado e seus mecanismos de controle. O Brexit foi sobre a soberania de um povo contra uma civilização biônica, foi sobre o direito do Reino Unido ser o Reino Unido e não um puxadinho dirigido por burocratas estrangeiros.
O Brexit foi sobre aceitar as ambiguidades e as incertezas da vida contra a tentativa vã de encerrar os dramas humanos num humanismo secular desconectado da realidade. Humanismo secular que avança sua agenda – com seus aparentes bons sentimentos – numa única direção: uma crise mimética universal que dissolverá o continente.
A vitória do LEAVE foi um suspiro contra a pior das tiranias: a que sonha implementar um mundo monocromático, encerrando as ambiguidades, e que nos obriga, a partir da rebelião das suas elites (Lasch), a negar a realidade ou nossas convicções. O LEAVE venceu no interior da Inglaterra; entre os mais pobres; na antiga base trabalhista que se vira para direita por motivos sociais, morais e religiosos; entre os mais velhos; e no País de Gales.
Ao contrário da ideia originária de prevenir guerras, os mecanismos de controle da UE só têm alimentado a má reciprocidade e o ressentimento. Se o nacionalismo pagão e xenófobo cresce no continente é justamente pelo sentimento de impotência experimentado pelos populares diante dos burocratas de Bruxelas, entidades etéreas, ao contrário de um palpável deputado distrital.
Para compreender os atuais conflitos políticos, não faz mais sentido falar num par direita/esquerda (que pressupõe um poder difuso que não mais existe), mas num par poder integrado/poderes locais. Ou numa definição de Nassim Taleb em que Martim Vasques da Cunha sempre insiste: Extremistão/Mediocristão.
Apesar do seu efeito simbólico, o Brexit também não é uma epopeia de salvação do mundo. As incertezas aguardam na esquina. E com elas não podemos descartar um nacionalismo pagão turbinado, um crescimento destrutivo da xenofobia, uma intensificação da crise de indiferenciação, ou mesmo um poder integrado ainda mais agressivo.
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.
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