É sem dúvida na atuação de Sandro Aliprandini o maior trunfo com que o diretor José Pedro Goulart conta para narrar uma história de poucos diálogos.
Acostumado a assistir ótimos trailers e filmes correspondentes não tão bons assim, foi uma música que me motivou a assistir Ponto Zero (2015), do diretor gaúcho José Pedro Goulart, o mesmo do antológico e premiado curta O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda (1986) e que foi adaptado de um episódio do livro O Amor de Pedro por João, do também gaúcho Tabajara Ruas. A frase, aparentemente sem sentido, não tem mesmo muito sentido, principalmente porque essa má correspondência, no caso de Ponto Zero, não procede e porque a trilha do filme, assinada por Leo Henkin, é boa a ponto de prescindir de qualquer remissiva, como por exemplo a que fiz entre a notícia do filme e a de que, em sua nova turné, iniciada em Paris em meados de maio, o Radiohead de Thom Yorke e Jonny Greenwood voltou a executar ao vivo Creep, após longos sete anos de ausência nos setlists da banda.
Assim como na Creep do Radiohead, Ponto Zero faz como um desvio narrativo em direção à adolescência, esse momento incômodo do desenvolvimento humano em que as coisas desejadas da vida adulta não começaram ainda a acontecer e tudo o que é indesejado do fim da infância passa a ocupar o universo afetivo e psicológico, mas com uma espécie de vazio inesperado, num hiato que às vezes parece ser infinito e insolúvel. Se percebido através dos olhos de um personagem como Ênio, vivido pelo excepcional ator estreante Sandro Aliprandini, o mundo é tão ou mais nonsense que uma frase desconexa. E é disso, desse lugar de solidão absoluta, que seu personagem deverá emergir, não que isso irá acontecer como em uma fábula, porque para adolescentes como Ênio fábulas também já não fazem mais nenhum sentido.
Quase sempre silenciosamente, Ênio encara uma vida que em muito se parece a um pesadelo desde a primeira cena. Bulimizado e agredido em frente à escola, ele sequer parece estranhar a humilhação, como quem decidisse de antemão que qualquer reação é impossível ou inútil. À noite, a vida familiar é uma sucessão de homilias infindáveis que a mãe, vivida pela atriz Patricia Selonk, de forma desesperada tenta repecutir em vão. Interpretado por Eucir de Souza, o pai é um radialista que trabalha pela noite, mas que nem sempre volta para casa e com quem tem uma relação fria e superficial. A família é completada pela irmã que, na sua ótica, é quase alheia e vive sua rotina de estudante. Para Ênio, é como se ela tivesse apenas a função de trazer para dentro de casa suas colegas também adolescentes, objetos do seu solitário e fantástico interesse sexual.
O aprisionamento daquele modo de vida, entretanto, aos poucos vai se tornando cada vez mais insuportável. Como forma de escapar daquela repetição perpétua, ele vai buscar, um pouco na realidade e um pouco no sonho, um modo de desencapsular-se da vida em que se matinha. E então, em uma noite de chuva torrencial, ele sai de casa sem que ninguém perceba no carro do pai para cumprir sua jornada em direção ao fim definitivo da infância. O mundo precariamente mantido pela insistência de uma mãe obcecada em manter o casamento com um marido ausente dá lugar a uma cidade desvanecida na qual ele se choca com pessoas e situações que o forçam definitivamente contra um limite já insustentável.
É sem dúvida na atuação de Sandro Aliprandini o maior trunfo com que o diretor José Pedro Goulart conta para narrar uma história de poucos diálogos, quase onírica, da qual sobressai-se, mais que o desenlace de um enredo imbricado, a construção de um personagem e seu vertiginoso processo de amadurecimento. Com o cabelo crescido e sem corte, com as roupas sem qualquer estilo, Ênio é um adolescente espinhento e comum quanto qualquer outro tentando safar-se dos destinos que os outros querem lhe imputar e viver por sua própria conta. É um esquisito, como diz a letra de Thom Yorke, bem como os adolescentes costumam ser quando já não lhes servem mais nem a face, nem a mente e nem o corpo infantis e debatem-se sem muita ideia do que desejam e do que estão prestes a se tornar.
Estranho também é que o filme tenha justamente entrado em cartaz quase ao mesmo tempo dessa reaparição de Creep nos palcos do Radiohead. Ao mesmo tempo em que a banda está lançando seu mais novo disco A Moon Shaped Pool (2016), Creep pertence mais àquela sonoridade de Pablo Honey (1993) e The Bends (1995), com guitarras mais evidentes que os sintetizadores e cujas letras remetem bem mais aos adolescentes dos anos 90 e da virada do milênio do que as letras atuais da banda. É claro que a presença de True Love Waits no disco desmente tudo isso, porque também é uma letra de 1995 que se refere ao universo teen e está ali, deslocada como um adolescente entre as músicas do novo disco, que bem poderia ser chamado de a “maturidade” da banda. Não faz muito sentido, mas talvez faça, afinal parece que muita gente faz questão ou tente estar na maturidade preservando pelo menos algo com a autenticidade da adolescência, nem que o pasmo ou o desejo de aventurar-se no novo, nem que seja como no caso do Ênio de Ponto Zero, no novo de si mesmo.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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