A literatura não é uma arte para as massas – e também para uma elite fascinada por elas.
Neste final do mês de junho, voltamos à tradição da festa literária da FLIP em Paraty, uma cidade fluminense de casas antigas, ruas cruéis para qualquer um que ama os seus pés e uma vida cultural tão ativa que dura somente cinco dias – por coincidência, o período exato do evento.
Contudo, seria mais adequado que acontecesse em abril, o mais cruel dos meses, como dizia T. S. Eliot. E por que isso? Esta é uma pergunta que o leitor deve fazer para si mesmo ao desconhecer o uso de tal vocábulo para designar um evento que sempre trouxe sorrisos aos seus realizadores. A crueldade está em dois fatores: primeiro, vendem gato por lebre, e segundo, criam no público sério e ávido por uma literatura decente o que alguns chamam de “dissonância cognitiva”.
Segundo a própria FLIP, o seu objetivo é proporcionar discussões de alto nível com convidados nacionais e internacionais. Já estiveram aqui ninguém menos que Paul Auster, Ian McEwan, Salman Rushdie e Tom Stoppard; da parte que nos cabe neste latifúndio, tivemos Chico Buarque (o ídolo dos organizadores, pois já foi chamado duas vezes), Roberto Schwartz (com seu Machado de Assis marxista avant la lettre) e Davi Arrigucci, Jr. (que falou sobre Manuel Bandeira como se fosse o arauto do nacionalismo tupiniquim); além de homenagens a Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues – e agora, Ana Cristina César, nossa tentativa mal sucedida de termos uma Sylvia Plath (mas sem um Ted Hughes para chamá-lo de seu).
Sempre houve, sem dúvida, um belo ideal: o de colocar o Brasil na rota dos eventos cosmopolitas, transformando-o em uma nação que, segundo ouvi uma vez de um estrangeiro, não fosse apenas um território de canibais. Contudo, como dizia Herman Melville, é melhor dormir ao lado de um canibal lúcido do que de um cristão bêbado. E, neste caso, o que é uma tentativa de querer se mostrar “sofisticado” torna-se uma armadilha: sermos vistos como os “mestres à margem da civilização”.
Eis o nó górdio: a verdadeira literatura, que vai de Shakespeare a Pynchon, passando por Guimarães Rosa e Osman Lins, preocupa-se com aquilo que a filosofia chama de “comunicação substancial”. Ela lida com dois temas: a vida e a morte – e a única coisa que o escritor sério sabe sobre elas é que a última sempre ganha a partida. Portanto, a verdadeira literatura é uma obsessiva reflexão sobre a perda, o sofrimento, a dor – e sobre o fracasso. Quando um romance, um conto ou um poema mexe com as entranhas e a mente de um leitor, é porque o tema do fracasso foi abordado e superado com elegância estética, algo que só o grande artista consegue realizar.
Agora imaginem a cena: um “público-alvo” composto por aquilo que supõe ser a elite do país. Eles estão em Paraty em busca de um sonho: ter em cinco dias o melhor da literatura contemporânea. O sucesso exala da epiderme de cada um deles – ou, pelo menos, da maioria que está à procura desta aura que transforma alguém em algo que não é. Eis a pergunta: estas pessoas estão preocupadas em fracassar?
É claro que não – e aí está a crueldade do evento. Neste ano, por exemplo, a FLIP chamou três nomes que namoram há tempos com o tema do fracasso: Svetlana Akeksiévich (Prêmio Nobel do ano passado e autora de dilacerantes livros-reportagem que tocam em temas nem um pouco agradáveis como Tchernobyl e o governo opressor de Vladimir Putin), Karl Ove Knausgaard (eficiente narrador que transformou a sua vida em “autoficção”, principalmente ao contar as suas derrotas morais) e Irving Welsh (romancista inventivo, sem dúvida, capaz de transformar a morbidez de se viver no submundo da Inglaterra em algo extremamente divertido, graças ao poder da sua linguagem).
Temos aí uma nova forma de canibalismo para os nouveaux riches. Não há nada a fazer para que se saia dessa dissonância cognitiva, em que o público espera uma coisa, o escritor dá outra, e ambos saem com a sensação de terem comprado o gato por lebre. Entra-se numa espiral de ouvidos moucos, sem saber quem fala com quem e – o mais importante – o que realmente foi dito.
Apesar da boa vontade, a FLIP é um sintoma da esquizofrenia literária e cultural que atingiu o Brasil. Os escritores ruminam sobre o fracasso e o seu público deseja somente o sucesso; e, neste panorama, o que sobra para os que desejam a verdadeira literatura é o glaucoma do intelecto.
Há uma recusa em aceitar o fato de que a literatura não é uma arte para as massas – e também para uma elite fascinada por elas que, mesmo assim, prova que sequer se importa com a relevância das letras em suas vidas. A prova disso é que, na programação da palestra de abertura, não termos mais a literatura como objeto – e sim um documentário sobre a poeta Ana Cristina César, apresentado pelo seu diretor, Walter Carvalho, e o soi disant poeta Armando Freitas Filho, amigo da falecida. A substituição da palavra escrita pela imagem mostra esta ânsia pelo sucesso a curto prazo que corrói a cultura nacional, sem se preocupar com o fato de que um artista só evolui através dos seus erros e derrotas – e os triunfos devem ser vistos como marcas passageiras de um trabalho do qual ele não será o último a se ocupar.
Em resumo: sucesso e literatura não combinam. A última palavra sobre a FLIP fica com W. H. Auden que, ao ver pessoas parecidas com as que vão à Paraty, tinha certeza de que todas eram boníssimas, o que não o impediu de fazer a seguinte pergunta: Será que elas não têm vontade de torturar o gato e fazer um striptease?
___
Publiquei este mesmo artigo há alguns anos na Gazeta do Povo, de Curitiba. Apenas troquei alguns nomes e alguns detalhes, com a intenção de mostrar que nada, absolutamente nada, mudou. Isso só prova que, tanto no aspecto da Velha Esquerda como da Nova Direta, ainda somos dominados pelos Intelectuais Porém Idiotas (Intellectuals Yet Idiots – by Taleb)
Martim Vasques da Cunha
Autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide, 2012) e A poeira da glória (Record, 2015). Pós-doutorando pela FGV-EAESP.