Ele nos fazia retornar à experiência verdadeira da poesia e nos forçava a ver que a arte tinha uma dinâmica particular que não podia ser insultada.
“(…) e o mundo é cada vez mais estrangeiro”
Soneto 99 de “A Imitação da Música” (in: O Mundo como Ideia)
Toda vez que alguém me pergunta sobre a minha convivência com Bruno Tolentino, chego sempre à seguinte conclusão: ele foi o único sujeito de quem posso dizer, com certeza, que era um gênio.
Mas hoje, nove anos após sua morte, não sei se responderia da mesma forma. É claro que Bruno era, de facto e de jure, aquilo que, na falta de expressão melhor, chamaríamos de “gênio” – até porque era realmente capaz de momentos brilhantes e de momentos em que era nada mais nada menos que “genioso”. Entretanto, depois de ter muito meditado sobre o uso e o abuso desta palavra – já que Arnaldo Jabor conseguiu torná-la insuportável quando elogia alguém em suas colunas ou em declarações na televisão – creio que Bruno Tolentino não era apenas um “gênio”. Era, sobretudo, e aqui plagio descaradamente o ensaio de Joseph Brodsky sobre W. H. Auden (por sua vez, um exemplo para Bruno), a pessoa mais inteligente que já conheci – e acho que não conhecerei outra.
Explico-me: como já disse no post Joyce & Freud, creio que o “gênio” é uma espécie de ruptura, não de continuidade, dentro do continuum da tradição de um país ou de vários países – aquilo que denominaremos mais tarde, se tudo der certo, de “civilização”. O próprio Bruno, aliás, baseou a sua argumentação de polêmica cultural neste princípio ao se confrontar com o concretismo em Os Sapos de Ontem; para ele, os irmãos Campos eram uma ruptura para pior, herdeiros da anti-tradição do Modernismo de 1922, enquanto o modernismo europeu (o de Eliot e de Yeats) era um diálogo com a tradição ocidental e também a sua superação. O exemplo mais próximo que tivemos nesta linha foi a chamada Geração de 45, com Cecília Meirelles, João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes, sem contar, claro, com os inclassificáveis Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.
Se esses poetas não eram propriamente “gênios”, eram também pessoas inteligentes que construíram uma obra idem porque preservavam a estrutura da língua e da linguagem – algo que os concretistas sempre quiseram derrubar com a chamada “morte do verso”. Mas este não é o xis da questão: para mim, Bruno Tolentino não pode ser catalogado como um “gênio” porque sua obra – um verdadeiro enigma para as limitações provincianas da nossa intelligenstia, seja da nova direita ou da velha esquerda – cumpre exatamente aquilo que esperamos de pessoas inteligentes. Mas o que seria isso – ser inteligente?
Uma pessoa inteligente caracteriza-se por estar disposta a estar aberta à verdade do real – e esta verdade pode ser expressada por um paradoxo terrível que Bruno sabia muito bem como comunicar com o uso do famoso adágio lux sine umbra non est. (Em tradução livre: “Não há luz sem sombra”.) Ele foi a pessoa mais inteligente que conheci porque era capaz, em uma questão de segundos, de agarrar a essência de uma pessoa ou de um problema intelectual, e defini-la de um modo surpreendente para todos, sem ser abstrato, chegando ao ponto de usar a linguagem chula. Uma tarde, por exemplo, enquanto conversávamos sobre um jovem poeta que era aclamado pela crítica nacional, Bruno definiu a sua poesia da seguinte forma: “Esse sujeito é incapaz de pedir uma pizza pelo telefone” (E era verdade: os versos daquele sujeito pareciam ser de alguém que preferiu a dislexia como modo de vida). Mas é claro que essa atitude – que era honesta e impiedosa, chegando ao limite da insensibilidade com muitas pessoas que realmente o admiravam (inclusive com a minha pessoa) – não era somente uma grife de “gypsy-scholar” metido a besta. Era sobretudo um princípio moral: Bruno Tolentino sabia que a vida era um palco de luz e sombra, ambas misturadas, e que a função do poeta era trazer ao leitor aquela firmeza de alma que só um permanente state of wonder pode provocar nas pessoas, e isso quando elas decidem ver o mundo tal como é – e não como querem que ele seja.
Se Bruno fosse um “gênio”, sua obra teria fracassado – o que não acontece porque ela é um portal para novas descobertas, não o fim de uma era. Cada vez que releio um poema, um ensaio ou estudo um verso tolentiniano, percebo que Bruno não só dialogava com toda a tradição – de Machado de Assis a Yves Bonnefoy, passando por Santa Teresa D´Ávila e Charles Baudelaire – mas também sempre desbravava um novo caminho para os novos poetas. Há, contudo, sempre um pseudo-contraponto. Li recentemente um artigo escrito por um desses “falsos novos poetas” badalados por essas editoras de butique, que, a partir da análise de um único soneto de A Imitação do Amanhecer, já diagnosticava que Bruno Tolentino era um fóssil do passado. Uma verdadeira estultice: como analisar a obra de um sujeito através de um soneto de um livro que é, na verdade, um painel de mais de 537 sonetos? O que falta a este rapaz é a apreensão de que a obra de Bruno exige do leitor a aceitação do mesmo princípio moral que o guiou em sua complicada existência: o de que a vida (e a poesia) tem uma margem de ambiguidade inexplicável – e que as coisas não podem ser definidas tão facilmente.
Desta maneira, creio que Bruno Tolentino não foi um “gênio”, mas sim uma pessoa extremamente inteligente que criou uma obra genial. Este paradoxo – tão comum em seus versos e em sua postura diante das outras pessoas – mostra a dificuldade de entender o que ele queria. Bruno foi um homem muito solitário – e talvez esta tenha sido a sua verdadeira tragédia. Mas, mesmo assim, não desistiu: a sua inteligência o fez ser mais que um professor.
Era também um “educador de sensibilidades”. Ele nos fazia retornar à experiência verdadeira da poesia e nos forçava a ver que a arte tinha uma dinâmica particular que não podia ser insultada. Isto foi, aliás, o meu primeiro insight para sentir sua ausência quando, um dia, ao escutar uma excelente palestra de um amigo meu sobre Hamlet em um ambiente repleto de supostos magistrados, chegou o momento dos debatedores. Era uma mulher e um homem: ela era uma juíza federal, cheia de referências aos Derrida-e-desce e aos Foucaults da vida, e ele era um advogado beletrista, sócio de uma importante casa de cursos. A juíza fez uma palestra de quase uma hora sobre como a peça de Hamlet deveria ser chamada de Ofélia porque Shakespeare era, afinal de contas, um machista misógino, enquanto o tal advogado perguntou ao palestrante se era possível uma interpretação GLS de Hamlet.
Fiquei chocado que alguém se aventurasse a fazer tal pergunta; certamente, se Bruno estivesse vivo e ali presente, se levantaria de imediato e daria um safanão na cara do sujeito. Claro que o motivo não seria apenas a polêmica pela polêmica – acusação injusta que atingiu postumamente a obra de Bruno. A verdadeira razão seria essa “educação de sensibilidade” que Bruno cultivava em cada um que o conhecia e que ele fazia questão de extrair em conjunto sobre os mais variados assuntos: desde como era (supostamente) trabalhar com Auden, passando sobre como seria uma conversa entre Bonnefoy e Geoffrey Hill, até o vislumbre de um detalhe em um quadro de Uccello e, sem dúvida, o respeito que devemos ter com a luz do dia que some em um pôr-do-sol.
Confesso que só fui sentir falta de Bruno muitos meses depois da sua partida porque, de certa forma, a sua obra inteira nos ensinou a ficarmos preparados para a sua morte. Mas não era algo mórbido: quando leio O Mundo como Ideia ou As Horas de Katharina tenho a impressão de que, apesar de seu sentimento trágico da vida, Bruno Tolentino sabia que ela valia muito a pena. Não à toa que resistiu a uma doença cruel até o fim, independentemente do sofrimento – do qual saiu irreconhecível, mesmo para os seus amigos mais próximos. Havia uma perseverança nele que, sem dúvida, deixava todos espantados – e que talvez não fosse deste mundo.
Assim, à guisa de despedida, deixo-lhes com a seguinte citação:
Ele foi um grande poeta (a única coisa que está errada com esta frase é o tempo de seu verbo, já que a natureza da linguagem faz com que o que alguém realiza em seu contexto permaneça invariavelmente no presente), e me considero intensamente afortunado por tê-lo conhecido. Mas mesmo que não o tivesse encontrado de todo, ainda me restaria a realidade de sua obra. Devemos agradecer ao destino por termos sido expostos a esta realidade, pela generosidade dessas dádivas, mais preciosas ainda porque não se destinavam a alguém em particular. Podemos dizer que se tratava de uma generosidade do espírito, só que o espírito sempre precisa de um homem para refratar-se através dele. Não é o homem que se torna sagrado devido a esta refração: é o espírito que, assim, se torna mais humano e compreensível. Isto – e o fato de que o homem é finito – já bastaria para nos fazer venerar este poeta.
Essas palavras são de Joseph Brodsky sobre W.H. Auden. Mas eu não mudaria uma linha, pois dizem a mesma coisa sobre Bruno Tolentino. Independentemente de ser um gênio ou uma pessoa inteligente, o fato é que era um grande poeta – e um dos maiores, em qualquer língua. E quando os grandes poetas se encontram, seja lá onde estiverem, sabemos que são um dos poucos grupos – junto com os santos e os mártires – que podem dizer com certeza que, independentemente das sombras que existem dentro das luzes em nossas vidas, eles realmente venceram o mundo.
Martim Vasques da Cunha
Autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide, 2012) e A poeira da glória (Record, 2015). Pós-doutorando pela FGV-EAESP.