A Justiça goiana proibiu as obras que fundem figuras da cultura pop às representações tradicionais das imagens de santos católicos.
Deve haver alguma razão pela qual a psicanálise só é levada a sério, hoje em dia, em países de cultura católica, como Brasil e França. Esse negócio de um bando de marmanjos celibatários prostrarem-se, em êxtase, diante de uma mãe virgem morta dá a bobagens como o Complexo de Édipo uma inusitada aura de plausibilidade.
Tal foi o primeiro pensamento que me ocorreu quando soube, via redes sociais, da decisão da Justiça goiana de proibir as obras da artista Ana Paula Dornelas Guimarães de Lima, da Santa Blasfêmia, que funde figuras da cultura pop – do Batman ao Chapolim Colorado – às representações tradicionais das imagens de santos católicos, com ênfase especial nas figuras marianas.
Na melhor tradição dos censores de bom coração que grassam no Judiciário tupiniquim, o juiz, que atendeu a pedido da Arquidiocese de Goiânia, decidiu que o princípio constitucional da liberdade de expressão e de criação artística é valioso – mas não absoluto! – e deve sucumbir diante de princípios mais importantes. Quais? O “direito de imagem” da Igreja Católica.
Curioso: eu sabia que a Disney havia conseguido prorrogar o copyright de Mickey Mouse para quase um século, mas desconhecia garantias milenares de propriedade intelectual. Se Sherlock Holmes, publicado pela primeira vez há menos de 200 anos, está em domínio público, é de se esperar que a mitologia romano-bizantina também esteja.
O erotismo enrustido da histeria católica em torno de seus ícones – estão aí os videoclipes de Madonna, a apropriação gay da figura de São Sebastião e, para quem tem gostos mais literários, O Nome da Rosa, que não me deixam mentir – deveria ser só mais uma questiúncula teológica para os cristãos resolverem lá entre eles, junto com a transubstanciação e o anabatismo. Mas quando a coisa acaba envolvendo o Estado e, por tabela, os direitos fundamentais de não-católicos, até quem não tem paciência para essas bobagens acaba sendo forçado a se manifestar, sob pena de, um dia, acordar numa teocracia. As pessoas acham que a ameaça de um “Estado teocrático” hoje reside principalmente nos evangélicos mais vociferantes. A Igreja Católica costuma cultivar um verniz de sofisticada tolerância, mas isso não passa de manobra diversionista: os suspiros de saudade dos tempos em que papas coroavam imperadores e bispos manietavam príncipes estão aí para quem quiser ouvir.
Claro, todo mundo tem direito às próprias aspirações e nostalgias, mas o Estado democrático existe para impedir que os sonhos mais totalitários se tornem realidade. Um autor certa vez escreveu que hereges e bruxas não são mais queimados em praça pública não porque a Santa Madre se convenceu de que isso é errado, mas porque o Estado parou de colaborar. No Brasil, ao que tudo indica, nem tanto.
Reproduzo, aqui, uma humilde lista cronológica de cumplicidades vexatórias entre agentes do Estado brasileiro e figuras da Igreja de Roma, unidos contra direitos legítimos de brasileiros, que é capaz de fazer o Malafaia corar de inveja. Também destaco que a lista não inclui interferências em escala estadual e municipal, como os inúmeros casos de padres e bispos que induzem prefeitos e vereadores a sabotar programas de saúde pública voltados para os direitos reprodutivos da mulher, como a distribuição de pílulas do dia seguinte em postos municipais.
1986: Recém-saído de uma ditadura de duas décadas, o Brasil ressuscita uma das marcas do período autoritário, a censura de artes e espetáculos, para evitar a exibição do filme Ave-Maria, de Jean-Luc Godard, considerado ofensivo aos católicos.
1995: Chute em imagem de gesso de santa católica leva a comoção nacional. Pastor Sérgio von Helde é condenado em público por figuras que vão de Afanásio Jadadzji ao então presidente Fernando Henrique Cardoso. O ato é tratado como um escandaloso caso de “intolerância religiosa”. Von Helde acaba condenado à prisão (o que, curiosamente, não é visto como uma reação intolerante), mas uma série de apelações e a morosidade da justiça brasileira atuam a seu favor.
2005: O então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, católico fervoroso, vai ao STF para tentar invalidar a lei que autoriza pesquisas científicas com células-tronco. A Advocacia-Geral da União contesta a tese de Fonteles, denunciando-a como “embasadas na doutrina católica” e, portanto, sem valor jurídico num Estado laico. O STF acaba concordando com a Advocacia-Geral, mas só em 2008. Os prejuízos para a ciência brasileira, nesse meio-tempo, são imensos.
2006: Protestos de católicos levam o Banco do Brasil (empresa estatal de um Estado laico) a censurar as obras “Desenhando com Terços”, da artista plástica Márcia X, de sua mostra sobre arte erótica.
2008: Decisão judicial, em ação impetrada por padre católico, proíbe a Editora Abril de reutilizar as fotos da atriz Carol Castro segurando um terço, publicadas originalmente na revista Playboy, e impede ainda a realização de futuros ensaios fotográficos para a revista masculina envolvendo objetos de culto religioso.
E agora, 2016, a pedido de arquidiocese, juiz proíbe as imagens da Santa Blasfêmia. E, numa notícia (até o momento) menos divulgada, o Conselho Nacional de Justiça mandou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul recolocar crucifixos em suas salas.
Se a série histórica mostra alguma coisa, é que a interferência tem se acelerado neste século 21. Se a situação política atual dá margem a preocupações legítimas quanto a retrocessos de origem teocrática na questão do aborto, a situação jurídica já me faz temer (sem trocadilho) pela camisinha e pelo divórcio.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.
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