Augusto dos Anjos tem um aproveitamento quase obsceno das palavras, utilizando-as com a máxima intensidade.
O valor de uma obra literária é determinado pela sua capacidade de dobrar as noções de Tempo. Quanto mais um livro parece recente, mais percebemos que as obras realmente memoráveis são aquelas que criam o seu próprio Tempo. Neste contexto, elas aparentam estar sempre imbuídas do frescor da atualidade. Não só sobrevivem aos seus autores, como acabam se fortalecendo com a passagem dos anos, ganhando força e vitalidade.
É o caso de Augusto dos Anjos (1884-1914), cuja obra completa acaba de ser relançada. Ao final da leitura de Toda poesia de Augusto dos Anjos, impossível não se impressionar com a força poética desse homem mirrado e fraco, que escreveu somente um livro, Eu, mas fez com tanta energia e vontade que conseguiu marcar a própria história da Literatura Brasileira. Não é à toa que, na sua obra máxima, Formação da Literatura Brasileira, Antonio Candido se refere ao advento da poesia de Augusto dos Anjos como uma “explosão” no cenário literário nacional. Depois dele, nada mais foi igual.
Conta Suetônio, em Vidas dos Doze Césares, que Júlio César chorou quando esteve diante do túmulo de Alexandre o Grande, pois já passara da idade da morte do macedônio e não conquistara ainda o mundo. Augusto dos Anjos não necessitou de 33 anos para conquistar o seu lugar na história literária do Brasil. Depois de publicar vários poemas em jornais, o escritor paraibano reuniu-os em um volume único. Após a sua morte, o amigo Órris Soares reuniu os poemas ainda não publicados pelo autor, e essa é a base de Toda poesia, que pretende condensar a integralidade da obra de um poeta que viveu pouquíssimo tempo, mas passou por emoções intensas e abrasadoras, além de possuir um domínio único da língua portuguesa e da métrica do soneto.
Todo estudante brasileiro sabe a famosa estrofe inicial do poema “Psicologia de um vencido”, mas não nos cansamos de repetir, tamanha a sua beleza funesta:
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Em geral, o conhecimento de toda a obra de Augusto dos Anjos se dá por intermédio desse poema, pois nele estão condensados seus temas principais (a doença, o espectro da morte, a noção de decadência) e a visão pessimista sobre si e sobre o mundo, bem como o faminto verme do tempo e da finitude que começa a corroer os seres humanos tão logo eles nascem.
É uma pena que seja assim: é injusto sintetizar um poeta tão repleto de dimensões e sutilezas como Augusto dos Anjos a somente um poema. Ao agir assim, o leitor acaba deixando de lado outras maravilhas, entre as quais “Monólogo de uma sombra”, “Gemidos de arte” e “Vozes de um túmulo”. Assim como “Vandalismo”, um poema poderoso, com imagens poéticas difíceis de esquecer na sua comparação do amor a uma catedral – e o que acontece quando o apaixonado se desilude:
Vandalismo
Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos…E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
Augusto dos Anjos tem um aproveitamento quase obsceno das palavras, utilizando-as com a máxima intensidade. Seus poemas são carregados de voltagem erótica, e ele consegue tal feito não através do tema, mas da articulação incandescente das sílabas poéticas dentro dos versos. Ao melhor estilo dos verdadeiros poetas, é possível perceber que o autor se entrega de forma completa a cada estrofe e, mais do que meramente articular a sua subjetividade para ganhar a simpatia do leitor por meio de uma eventual identificação, ele pretende tocar nas grandes variáveis da existência humana.
Ler os poemas de Augusto dos Anjos é sentir o mundo com todas as sensações, cores, gostos, medos e pequenas alegrias do poeta. Ler a sua obra em voz alta é descobrir um universo de excitantes possibilidades que somente a riqueza da língua portuguesa – tão vilipendiada, tão maltratada – pode oferecer. Por exemplo, o homem de “Apóstrofe à carne” é o mesmo ser de desencantada carnalidade de Epicteto, filósofo grego que afirmou “não passas de uma pequena alma carregando um cadáver”, sendo depois repetido na definição de homem de Fernando Pessoa, “Sem a loucura que é o homem / Mais que a Besta sadia / cadáver adiado que procria”, conforme notamos:
Apóstrofe à carne
Quando eu pego nas carnes do meu rosto
Pressinto o fim da orgânica batalha:
– Olhos que o húmus necrófago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto…E o Homem – negro e heteróclito composto,
Onde a alva flama psíquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!Carne, feixe de mônadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!
Em “Apóstrofe à carne”, é possível ver duas características essenciais da obra de Augusto dos Anjos, ambas destacadas por Ferreira Gullar no vistoso – e muito instrutivo – estudo crítico que acompanha o livro. A primeira seria o desencanto de deixar herdeiros nesse mundo, algo que se justifica pela própria história do poeta paraibano, repleta de elementos trágicos: seu pai faleceu quando ele tinha 21 anos e, a partir de então, a morte tornou-se uma figura frequente na sua vida, tanto que ele dedica um poema, intitulado simplesmente “Soneto”, ao “meu primeiro filho nascido morto com sete meses incompletos”. Existe um claro flerte do poeta com a sua própria finitude, e os versos rondam o tema com fascínio, o que leva o poeta Ferreira Gullar a considerá-la a personagem central de toda a obra do paraibano. Não podemos deixar de recordar Machado de Assis, que, em Memórias Póstumas de Brás Cubas – um morto que emula muito da forma de pensar de Augusto dos Anjos – afirma textualmente “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
A segunda característica é o forte cientificismo e filosofia que o poeta utilizou com inegável habilidade nas suas imagens poéticas. Ferreira Gullar afirma que Augusto dos Anjos foi um grande leitor de Comte, Haeckel, Darwin, Spencer e Schopenhauer, trazendo pensadores então contemporâneos para o interior da sua obra por meio de uma mescla de linguagem prosaica e científica. Os poemas contidos em Toda poesia revelam uma grande capacidade de junção de pensamentos filosóficos, lições de química, considerações anatômicas e até mesmo temas religiosos dentro de uma linguagem lírica.
Tal versatilidade é tão bem executada que Gullar considera que Augusto dos Anjos nasceu em meio a uma cultura incapaz de apreciar tal simbiose, pois precedeu o próprio movimento modernista sem romper o formalismo clássico da construção de poemas. Assim acontece em “Depois da orgia”, “Insânia de um simples” e “Sonho de um monista”, sendo que, neste último, o poeta narra uma viagem onírica-existencial realizada com o cadáver de Ésquilo.
Outro tema que surge é a luta eterna do criador com a criatura, do escritor com a obra que insiste em se esconder no seu interior e, em tal sentido, o poema “Vencedor”, com o seu famoso e tão repetido verso final, é exemplar:
Vencedor
Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração – estranho carniceiro!Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma
Nenhum pôde domar o prisioneiro.Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem…
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
Augusto dos Anjos foi um gladiador das palavras que não se deixou dominar. A verve lírica foi mais forte do que a carne cuja fraqueza era tão temida; o poeta era muito espírito e pouca substância. Não seguiu modismos, não fez concessões e usou todas as leituras realizadas para esculpir o seu dom poético. O lançamento da obra completa – abrilhantada pelo estudo crítico de Ferreira Gullar – faz justiça para um poeta com poucos anos de vida, mas com uma vitalidade lírica que insiste em nos queimar a cada verso desferido contra a Morte, essa velha senhora que assombra nossos passos à espera de um tropeço para, então, se revelar. Augusto dos Anjos descobriu a única forma de vencer a Morte: encarando-a sem medo, prendendo-a dentro de estrofes e, no final, sendo mais largo do que a efemeridade irritante da vida física.
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
[email protected]