Três livros recentes mostram o valor do subgênero "crime de quarto fechado".
Um cadáver é encontrado com uma faca nas costas numa sala sem janelas e com a porta trancada por dentro. Um corpo baleado à queima-roupa, com dois tiros no peito e marcas de pólvora em torno de ambas as feridas, é achado no meio de um campo coberto de neve – sem nenhuma pegada ao redor, sem o menor sinal da arma. Esses são dois cenários clássicos do subgênero da literatura de mistério conhecida como de “crime de quarto fechado”, ou “crime impossível”, que teve grande voga no início do século passado, mas que com a ascensão da escola mais “realista” da literatura policial, caiu no esquecimento – ou não?
Só nos últimos doze meses, foram publicadas no Reino Unido duas antologias importantes dedicadas aos clássicos da forma: Classic locked-room mysteries, editada por David Stuart Davies, e Miraculous mysteries, seleção de Martin Edwards para a coleção de “mistérios esquecidos” da British Library, dedicada a resgatar autores que fizeram sucesso durante a chamada Era de Ouro do Crime – comumente definida como o período entre-guerras do século passado –, mas que acabaram caindo no esquecimento.
Antes disso, em 2014, o incansável editor americano Otto Penzler, proprietário da única livraria especializada em edições raras de livros de mistério, a Mysterious Bookshop de Nova York, havia trazido ao mundo sua compilação The big book of locked-room mysteries, um catatau de 960 páginas e com autores indo de Edgar Allan Poe a Stephen King, passando por Georges Simenon, Fredric Brown e, claro, G.K. Chesterton.
Fã inveterado de paradoxos (o homem era um apologista católico, afinal), o criador do Padre Brown era um autor incansável de crimes impossíveis, tendo produzido mais de duas dezenas de enredos do tipo. Chesterton escreve tão bem que até dá para lhe perdoar o cacoete de fazer com que todos os secularistas e ateus que aparecem em suas histórias serem idiotas ou canalhas. Ou idiotas canalhas.
Há alguma sobreposição entre as antologias, como seria inevitável – o maravilhoso “The Doomdorf mystery”, de Melville Davisson Post, é presença comum nas coletâneas de Penzler e Davies (e se ainda não conhece os mistérios de Tio Abner, o justiceiro bíblico da América pós-colonial, você está perdendo uma das melhores séries de ficção curta de todos os tempos). Provavalmente, Davisson Post só não entrou no livro de Edwards porque essa coletânea se restringe a autores britânicos. “The tea-leaf”, de Edgar Jepson e Robert Eustace, é uma unanimidade: encontra-se em todas as três. Se você for comprar um desses livros, o de Penzler é o melhor. Davies e Edwards meio que se equivalem mas, tendo de optar, sugiro ficar com Davies.
Com o predomínio do estilo noir, a partir da Segunda Guerra Mundial, a ênfase da literatura de mistério passou da construção lógica do enredo para a exposição de mazelas sociais ou dos dramas pessoais dos personagens. Há quem considere essa escola mais realista, mas não sei se é realismo imaginar que 90% dos crimes cabeludos de uma cidade como Nova York são resolvidos por policiais alcoólatras, divorciados e injustamente acusados de corrupção.
Raymond Chandler chegou a afirmar, num ensaio, que um escritor “de verdade” não tem como perder tempo com minúcias de trama, e John Dicskson Carr respondeu lembrando que o autor mais admirado por Chandler, Dashiell Hammett, construía enredos bem sólidos, sim senhor (O falcão maltês, obra-prima de Hammett, é um mistério de perfeito fair-play, onde o leitor tem todas as condições de desvendar o assassinato antes do detetive).
Com isso, o crime impossível virou uma espécie de especialidade de nicho. Ao longo do século 20, Edward D. Hoch desenvolveu a série de crimes impossíveis desvendada pelo Dr. Sam Hawthorne para a Ellery Queen Mystery Magazine, John Dickson Carr continuou com seus romances de quarto fechado – um dos quais, The hollow man (ou The three coffins, dependendo da edição), foi eleito a melhor história do tipo de todos os tempos – mas autores assim eram vistos como excêntricos, fora da corrente principal do gênero. Ainda assim, a atração do enigma aparentemente insolúvel é forte demais: até mesmo Lawrence Block se viu tentado a pôr seu ladrão de livros Bernie Rodhenbarr numa situação clássica de crime na biblioteca trancada, no conto “The burglar who smelled smoke”.
Parte do descrédito a que o crime impossível se viu relegado pela crítica mais intelectualizada se deve, talvez, a sua ligação com o chamado “mistério aconchegante”, o crime cometido numa casa de campo e que tem como vítima uma figura da alta sociedade. Agatha Christie transformou o estilo “aconchegante” numa indústria, e os críticos que não gostam dela (ou que preferem uma literatura de crítica social – ou as duas coisas) consideraram o quarto fechado culpado por associação.
Mas isso é injusto: nem todo mistério impossível se passa numa ambientação “aconchegante” – o primeiro romance do gênero, o folhetim The big bow mystery, escrito pelo líder sionista Israel Zangwill e publicado em 1891, se passa num cortiço e tem como personagens líderes sindicais e poetas esfaimados. Outra crítica comum vê as histórias de crimes de quarto fechado como uma espécie de literatura de trucagem, o equivalente de um filme que depende demasiadamente de efeitos especiais. A implicação sendo de que a ênfase no truque se dá em detrimento de qualidades mais relevantes. Mas essa é uma generalização injusta: os méritos devem ser adjudicados caso a caso.
O quarto fechado está na própria raiz da literatura de mistério: tanto a narrativa do roubo do tesouro do faraó Rampsinitos, encontrada em Heródoto, quanto a investigação do ídolo de Bel pelo profeta Daniel (Capítulo 14 do Livro de Daniel para os católicos, ou o Conto de Bel e o Dragão dos Livros Apócrifos, para os protestantes), histórias comumente citadas como as primeiras novelas policiais, são exemplos da forma. E ambas, curiosamente, oferecem como solução o truque mais manjado de todos – a passagem secreta.
Por falar em passagens secretas, os métodos para se cometer um “crime impossível” – no papel – são um objeto de estudo à parte. Dickson Carr, em Hollow man, oferece uma preleção sobre o assunto. O livro-ensaio Locked room murders, de Robert Adey, cita vinte maneiras de se penetrar uma sala hermeticamente fechada – e matar alguém.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.
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