Hilda Hilst, a ave rara da poesia brasileira

por Emmanuel Santiago (25/06/2017)

Em seus aspectos fundamentais, a poesia de Hilst estabeleceu-se à margem das principais tendências de sua época.

“Da poesia”, de Hilda Hilst (Companhia das Letras, 2017, 616 páginas)

A recente publicação do volume que reúne toda a obra poética de Hilda Hilst (1930-2004) oferece a oportunidade de melhor distinguirmos a posição da autora na literatura brasileira. Poetisa conhecida por um público ainda restrito, porém muito reverenciada, sua obra tem sido eclipsada pelos lances folclóricos de sua biografia, como a tentativa de se comunicar com os mortos por meio de aparelhos eletrônicos, a reclusão na Casa do Sol (onde cuidava de dezenas de cachorros) e a incursão pela literatura pornográfica no começo dos anos 90, com a debochada desculpa de ser para “ganhar dinheiro”. Contudo, o que se revela nas mais de quinhentas páginas de Da poesia é uma autora de grande envergadura, responsável por um dos registros líricos mais interessantes da poesia brasileira da segunda metade do século XX. Talvez seja por conta de seu caráter particular que a obra hilstiana, que dificilmente se integra à linha principal de desenvolvimento da poesia brasileira mais recente, continue sendo negligenciada.

Verdade seja dita, a autora tem se tornado uma referência constante para jovens poetas, sobretudo no caso de autoras que orbitam a casa dos vinte e trinta anos de idade, além de já ter rendido bons trabalhos acadêmicos. É possível que, com sua publicação por uma das principais casas editoriais do país, sua obra atinja um público mais amplo, vindo a se consolidar, de vez, entre os grandes nomes de nossa literatura.

A obra de Hilda Hilst pode ser pensada como uma ponte entre a poesia da década de 1930 e a literatura contemporânea, passando ao largo das principais tendências poéticas que se firmaram após 1950. Os primeiros trabalhos da autora estão repletos de reverberações de poetas da segunda fase do modernismo brasileiro, como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Vinícius de Moraes. Desde muito cedo, no entanto, é possível perceber uma modulação de tais reverberações num timbre bastante pessoal.

O que se destaca nos primeiros livros de Hilst é certo imaginário surrealista à Murilo Mendes, que vai gradativamente evoluindo em direção a um panteísmo sinestésico, no qual os elementos da natureza, estabelecendo associações surpreendentes entre si, convertem-se numa verdadeira “floresta de símbolos” que traduz, em imagens concretas, desde experiências psicológicas intensas até variações sutis de estado de espírito, evocando o que o poeta T. S. Eliot chamou de “correlato objetivo” da emoção. Essa ênfase na dimensão imagética da poesia (fanopeia) constitui-se como eixo formal da poesia de Hilda Hilst, desde sua estreia literária em Presságios (1950) até o último livro, Cantares do sem nome e de partida (1995).

Na criação de uma atmosfera onírica, de raiz surrealista, e no uso da fanopeia, Hilst se adéqua aos postulados estéticos da geração de 45, constituída por autores como Alphonsus de Guimaraens Filho, Geir Campos, Ledo Ivo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, entre outros. Com estes, a autora compartilha também a preferência por temas universais, de matriz neossimbolista — como o amor, o desejo, a morte, o sagrado, o tempo etc. —, em detrimento das circunstâncias imediatas da vida, ou seja: do cotidiano, assunto dileto da renovação modernista em nossa literatura. Não que a poetisa faça tábula rasa do cotidiano, mas este — principalmente no que diz respeito à vivência do desejo e do sentimento amoroso — apresenta-se sempre como janela a ser aberta para o sublime, quando não para o metafísico.

Entretanto, Hilst consegue conjugar a universalidade de seus temas com um tom pessoal, que se avizinha do confessional, distanciando-se da dicção solene e depurada que, via de regra, caracteriza os poetas de 45. No fundo de sua poesia trabalhada com grande sensibilidade, como delicadas filigranas, persiste algo de crueza e visceralidade, o que empresta pungência a seu lirismo. Isso fica claro, por exemplo, na apropriação que a autora realiza dos versos de um poeta que debutou pouco antes dela, João Cabral de Melo Neto, que também cursaria uma trajetória bastante peculiar na poesia brasileira. Em seu “O engenheiro” — poema do livro homônimo (1945), que marca uma guinada do imaginário surrealista de matriz muriliana de “Pedra do sono” (1942) para uma poética cada vez mais construtivista e objetiva —, encontramos:

A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de  água.

Já na quinta elegia do Roteiro do silêncio (1959) de Hilda Hilst, podemos ler:

Tu que projetas e inventas
Estruturas ascendentes
E sonhas com superfícies
Além destes continentes
(…)
Lembra-te um pouco de mim:
Que eu morra olhando as alturas.
E que a chuva no meu rosto
Faça crescer tenro caule
De flor. (Ainda que obscura).

Às coisas claras que habitam o sonho do engenheiro cabralino, opõe-se o eu lírico hilstiano com a floração obscura de uma sensibilidade de quem morre mirando as alturas, num cantar de amor e de entrega.

Outra característica da geração de 45, da qual Hilst é herdeira direta, é a retomada da versificação tradicional e das formas fixas. Os títulos da autora não traem tal filiação: Balada de Alzira, Balada do festival (1955), Trovas de muito amor para um amado senhor (1960), Ode fragmentária (1961) etc. No livro de 1959, Roteiro do silêncio, as duas primeiras seções se intitulam “Cinco elegias” e “Sonetos que não são”. Ao longo da década de 1950, mesmo nomes consagrados da geração de 30, como Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima e Murilo Mendes — que se destacavam, até então, pelo uso do verso livre, em linha de continuidade com o modernismo de 1922 — aderiram a uma estética tradicionalista, fenômeno chamado por José Guilherme Merquior de “reclassicização”.

A métrica de Hilda Hilst, porém, está longe de seguir o rigor dos poetas de 45, aceitando variações no número de sílabas poéticas, na disposição dos ictos (tônicas obrigatórias) e no uso de rimas toantes — características semelhantes às da obra de João Cabral, contudo, neste, trabalhadas com rigor construtivista e matemático, numa poesia avessa ao lirismo. Tal flexibilidade na composição do verso manifesta-se, igualmente, no exercício das formas fixas, como sugere o título de uma das seções do livro de 1959, “Sonetos que não são”. Muitas vezes, o que temos é o esboço dessas formas, reproduzindo apenas alguns elementos delas, que, assim, evocam no leitor a ideia do todo, numa espécie de gestalt poética. O mais notável exemplo está em Trovas de muito amor para um amado senhor, em que uma dicção em alguma medida arcaizante, aliada a rimas e a um vocabulário típicos da poesia medieval, tudo arranjado em estrofes mais ou menos regulares, remetem ao trovadorismo galego-português, sem consistir, entretanto, numa tentativa de reproduzir com exatidão as formas emuladas.

Em muitos sentidos, a geração de 45 foi uma reação ao que se considerava, então, o desleixo formal dos poetas modernistas e seu acentuado prosaísmo, que resvalaria na vulgaridade dos temas. Hilda Hilst, mesmo incorporando características dessa geração (inclusive, o primeiro de seus “sonetos que não são” é dedicado a Péricles Eugênio da Silva Ramos), nunca traiu uma sensibilidade poética formada na leitura dos modernistas de 1930, temperando o esteticismo dos de 45 com um espírito de liberdade no uso das formas tradicionais e um lirismo sem melindres de sê-lo. Uma estranha no ninho, portanto.

Dois contemporâneos de Hilda Hilst, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos — igualmente gerados no seio da geração de 45 —, unidos a Décio Pignatari, dariam origem ao movimento neovanguardista da poesia concreta, que, lançando mão do experimentalismo, buscava trabalhar a linguagem em sua dimensão material, o que incluía a exploração das palavras em seu aspectos fonéticos e gráficos, uma ruptura com a sintaxe e o abandono da versificação, além da exploração das possibilidades de interface da palavra escrita com novos suportes e mídias. Outros importantes integrantes da mesma safra de poetas, como Ferreira Gullar e José Paulo Paes, acabariam também enveredando por algum tempo pela seara das neovanguardas — mas Hilst, não. Se o concretismo possuía um caráter cerebral e experimental, a poesia hilstiana dava testemunho de um lirismo pungente e de uma fidelidade à noção do verso como unidade semântica e rítmica.

Tampouco Hilda Hilst faria uma incursão pelo universo da contracultura daqueles que começaram a poetar ao longo da década de 1970, seja no contexto do desbunde tropicalista, seja no da poesia marginal (cujos autores integravam a chamada “geração mimeógrafo”). Os poetas de tais vertentes, embora fossem em algum sentido continuadores do concretismo no que se refere à incorporação de elementos da cultura de massas e na compreensão da linguagem poética essencialmente como função poética da linguagem (daí o caráter lúdico que a linguagem assume em seus poemas), reagiam  à teorética formalista da poesia concreta com “relaxo”, categoria que não deve ser entendida como mero descaso pelos procedimentos compositivos, mas como postura estética e existencial engendradora de formas permeáveis às impurezas e à aleatoriedade da vida.

Mesmo nesse contexto, que a médio prazo configuraria um novo establishment literário, a poesia hilstiana confirmava sua opção pelo tom sublimizante, que desmaterializa o cotidiano nas malhas da vivência interior, e sua concepção artesanal do trabalho poético em diálogo contínuo com a tradição. Tanto que, em 1974, é lançado Júbilo, memória, noviciado da paixão, um dos pontos altos da obra de Hilst, no qual as características que vinham definindo o estilo da autora encontram uma grande síntese. Nele, verifica-se uma continuidade entre a experiência erótica e a metafísica, numa floração da carne em espírito que dissolve o velho dualismo idealista. Essa reversibilidade de paixão erótica em angústia espiritual torna-se a principal característica do modo como a temática religiosa é abordada pela poetisa, como se percebe em Poemas malditos, gozosos e devotos (1984) e Sobre a tua grande face (1986).

Para não dizer que a autora teria passado completamente incólume pelos movimentos literários que cruzaram sua carreira literária, é preciso destacar a seção “Poemas aos homens de nossos tempos”, do livro de 1974, na qual temos uma poesia participante que denuncia a barbárie contemporânea, voltando-se contra o autoritarismo e a tirania. No poema X, por exemplo, lê-se um libelo contra a censura: “Amada vida:/ Que essa garra de ferro/ Imensa/ Que apunhala a palavra/ Se afaste/ Da boca dos poetas”; já no XII, há uma denúncia da tortura:

Vou indo recortando
Alguns textos antigos
Onde a faca finíssima
Sublinhava
As legendas políticas
E um punhal incisivo
Apunhalava
Um corpo amolecido
O olho aberto, uma bota
Pontiaguda
Entrando no teu peito
(…)

Cabe lembrar que, em 1974, estávamos no auge da repressão no regime militar, no final dos “anos de chumbo”. Tais poemas podem ser relacionados, com algum atraso, ao engajamento político proposto pelos artistas de esquerda ligados ao Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, entre os quais se contavam poetas como o Gullar pós-neoconcretismo e Affonso Romano de Sant’anna, cujos trabalhos foram reunidos nos três volumes da coletânea Violão de rua (1962), que contou com a adesão de escritores de gerações anteriores, como Joaquim Cardozo e Geir Campos. Contudo, ainda assim, os poemas de Hilst, repletos de simbolismo e de subjetividade, escapam ao didatismo da poesia engajada da década anterior. Talvez esses poemas estejam mais próximos do Drummond de livros como Sentimento do mundo e A rosa do povo do que do engajamento programático dos poetas de 1960. Embora se trate de uma temática isolada dentro da obra de Hilda Hilst, ela não representou nenhuma ruptura com o estilo da autora, a essa altura mais do que consolidado.

Em seus aspectos fundamentais, a poesia de Hilda Hilst manterá, até o final, uma coerência estilística, constituindo uma trajetória singular e uma obra única na literatura brasileira, estabelecidas à margem das principais tendências de sua época. Até mesmo na incursão pela pornografia — que, na produção poética, daria origem a Bufólicas (1992) —, Hilst reafirma seu caráter excepcional em nossas letras, pois pouquíssimas vezes nossos escritores ousaram encarar tal temática de maneira tão franca (mesmo quando consideramos O amor natural de Drummond, de publicação póstuma). Ao termos em mão o volume de Da poesia, o que se vislumbra é o registro de uma poderosa individualidade que converteu suas idiossincrasias e referências literárias numa das obras poéticas mais intensas e interessantes da segunda metade do século XX no Brasil. Que, cada vez mais, o público leitor possa conhecer essa ave rara de nossa poesia!

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Resumo bibliográfico

NUERBENGER, Renan. Inquietudo: uma poética possível no Brasil dos anos 1970. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2014.
COUTINHO, Afrânio (org). A literatura no Brasil – era modernista. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: EDUFF, 1986.

Emmanuel Santiago

Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).

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