Burke e sua atualidade

por Vinícius Justo (11/06/2017)

Diante de nossa difícil situação, o Brasil poderia levar em consideração parte das reflexões de Edmund Burke.

“Reflexões sobre a revolução na França”, de Edmund Burke (Vide Editorial, 2017, 364 páginas)

Não é exagero dizer que nenhuma lista de clássicos da filosofia política estaria completa sem os escritos de Edmund Burke sobre o processo revolucionário na França. Muitos consideram o texto – escrito como uma carta, porém com passagens dignas de um tratado elaboradíssimo – o nascimento do pensamento conservador moderno, ao qual todos precisamos retornar de tempos em tempos para compreender um ponto de vista nem sempre bem representado por estudos políticos. O conservadorismo pode não ser sedutor como ideais voltados a modificações profundas na sociedade, mas é essencial para entendê-la, ainda que seja apenas para sabermos melhor como modificá-la.

Esta nova versão brasileira do clássico, traduzida e editada com alta qualidade pela Vide Editorial, permite avaliar o impacto da obra de Burke e traz um prefácio informativo e esclarecedor de um dos conservadores mais conhecidos no Brasil, o português João Pereira Coutinho. Edições como essa permitem ao leitor não especializado tomar contato com uma obra fascinante, especialmente por ter sido escrita praticamente no calor da hora, enquanto a Revolução Francesa abalava o mundo e gerava simpatias e antipatias por toda parte.

Particularmente não sou conservador, e acredito que mesmo os melhores conservadores tendem a desmerecer muito rapidamente certos esforços por mudança (especialmente aqueles conflituosos com seus interesses pessoais, como todos nós), mas não é possível construir um entendimento razoável da política sem dar ouvidos àqueles preocupados com a manutenção do tecido social. Ainda mais no caso de Burke, escritor brilhante e astucioso na apresentação de sua visão e seus argumentos, com o objetivo sempre claro de convencer seus leitores ao menos da validade analítica de suas ponderações.

O que salta aos olhos nessa releitura é a atualidade dos argumentos de Burke. Sua longa peroração a respeito da Revolução Gloriosa e sua diferença para os acontecimentos franceses coloca o ponto de forma magistral: a atuação algo revolucionária pode ser necessária para lutar contra tiranias, mas os resultados mais duradouros e satisfatórios são derivados das ações que procuram manter as leis e as tradições que funcionaram para um povo ao longo de um século, reforçando as instituições em seus aspectos positivos e eliminando os negativos.

É difícil discordar de Burke sobre sua avaliação da balbúrdia que se seguiu à Revolução Francesa, particularmente quando sabemos como a instabilidade durou décadas e se espalhou pela Europa e pela América. Hoje é fácil para nós enxergar um construto teleológico que nunca esteve dado de antemão, referente à importância da Revolução para garantir o avanço da democracia, algo que é poucas vezes questionado. No entanto, parece claro que o caminho inglês, também com seus percalços extremamente violentos, mas certamente mais consensual em seu desenvolvimento, ofereceu melhores chances para a construção de instituições democráticas sólidas ao longo do tempo.

O que pode passar despercebido por Burke, em parte por seu ponto de vista externo e notadamente privilegiado, é que a situação francesa talvez não pudesse ter se resolvido de outra forma. Atores políticos tendem a agir em seu interesse, e a força do Antigo Regime talvez exigisse de fato uma atitude revolucionária a partir do momento em que o povo e seus pretensos representantes não puderam mais expressar seus interesses crescentes de modo legítimo. A admoestação burkeana contra a pretensão de que um grupo de indivíduos possa substituir com vantagem todo o arcabouço sociopolítico secular de uma nação certamente tem validade, mas não pode ser confundida com um chamado à inação. Burke não chega a esse ponto, mas prefere se concentrar sobremaneira no ímpeto equivocado dos revolucionários, sem considerar que talvez o que pretenda manter do status quo seja algo inaceitável para a própria nação.

No entanto, seria equivocado atribuir ao conservadorismo burkeano a desfaçatez hoje evocada pelas elites políticas em inúmeros países no mundo quando confrontados com os resultados indesejáveis de sua atuação no poder. Consideremos o caso brasileiro. As provas onipresentes de corrupção (ou seja, justamente o desrespeito às leis e às instituições legadas) dos nossos líderes são ignoradas, enquanto estes procuram convencer a população de que é necessário não derrubar a ordem vigente – na verdade, querem dizer que eles não devem ser derrubados –, para evitar sofrimento causado pela continuidade das crises política e econômica. Oras, a ordem corrompida é exatamente aquilo que Burke diria ser necessário remover; os políticos pretendem ser a fonte única de legitimidade para instituições por eles mesmos solapadas. Esse personalismo não tem lugar no conservadorismo preocupado em manter a coesão de uma sociedade. Na verdade, é seu parasita, arquiteto último de sua destruição.

Diante de nossa situação cada vez mais difícil de sustentar, o Brasil poderia levar em consideração parte das reflexões de Burke. O exercício conservador envolve necessariamente a separação do joio e do trigo, compreendendo que tentativas de reformar nossas instituições precisam ser depurações constantes, mantendo o que há de bom e cultivando nossos bons sucessos, ainda que escassos. Infelizmente não é uma lição levada em conta pela nossa classe política, cada vez mais interessada em desmanchar os últimos laços positivos que restam na sociedade e em reforçar aqueles dos quais deveríamos nos livrar. Nossos políticos não são conservadores burkeanos; em sua maioria, não possuem outro desejo além da própria sobrevivência às custas de tudo que deveríamos proteger. Maus auspícios.

Vinícius Justo

Mestre em Teoria Literária pela USP.

Avatar
Colabore com um Pix para:
[email protected]