Em "Stálin", Stephen Kotkin mostra como, nas condições adequadas, qualquer um de nós pode se tornar um ditador.
Gostamos de ver Stálin como um degenerado. De certa forma, é reconfortante imaginá-lo além dos limites da humanidade. Isso nos deixa seguros da nossa superioridade moral, e psicologicamente ficamos tranquilos. Terrível seria imaginar que alguém como Stálin, capaz de matar seu próprio povo de fome e de executar seus camaradas de partido, poderia ser eu ou você.
Mas isso deveria ser óbvio. Santo Agostinho, no século V, já alertava que todo homem é capaz dos maiores crimes, e que se não os comete é apenas pela graça divina. Mais recentemente, Hannah Arendt demonstrava, ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann, que bons cumpridores de ordens também se tornam genocidas – aliás, precisamente por serem bons cumpridores de ordens é que se tornam criminosos.
A partir de uma análise exaustiva de documentos e relatos de todos os próximos a Stálin, Stephen Kotkin nos leva a este mesmo buraco negro que é o ser humano, em toda a sua humanidade, prestes a se tornar a encarnação de Lúcifer. E mostra como este caminho não é feito de grandes anormalidades, mas de decisões corriqueiras, como comprar um pão.
As biografias de Stálin procuraram alguma perversidade inata na figura do líder mais paranoico e sombrio da União Soviética. O que Kotkin descobre é que sua infância foi tão normal quanto seria possível em um Cáucaso disputado por russos e otomanos no final do século XIX. Uma infância pobre, em um ambiente rígido, como a de qualquer outro súdito do czar naquele período.
Da mesma forma, sua experiência no seminário ortodoxo não foi tão especial. Sim, ele perdeu a fé ali, como a maioria dos seminaristas, que acabavam se tornando militantes marxistas. Também o ambiente do Partido Social Democrata Russo e a prisão não foram tão diferentes para Stálin. Ele passou o mesmo que muitos.
Ao mesmo tempo, sua ascensão ao topo do partido bolchevique teve seus méritos. Era um dos poucos bolcheviques do Cáucaso, lia intensivamente os textos de Lênin, e era um dos poucos caras do partido que cumpriam uma tarefa até o fim. Por diversas razões – sua posição minoritária na Geórgia, não estar no exílio, o jogo duro dos mencheviques – aprendeu a organizar facções e a fazer o trabalho de base, coisa que seus colegas bolcheviques russos valorizavam pouco.
Disciplina, trato com as pessoas independentemente de sua origem, desconfiança de todos, capacidade de organizar o partido e de memorizar textos inteiros de Lênin, além de uma susceptibilidade que fazia o seu ego ser ferido por pouco. Essas foram as características que levaram Stálin ao poder. Ou seja, basicamente ele era um millennial com capacidade de sacrifício em uma Rússia escangalhada.
Para um europeu na virada do século XIX para o XX, os modelos de pessoas bem sucedidas não eram cidadãos pacíficos. Era Otto von Bismarck, o chanceler de ferro da Alemanha imperial. Na Rússia, um regime que gostava de chamar-se a si mesmo “autocracia” resistia a estabelecer um mínimo de democracia. Logo, a política era basicamente uma guerra entre terroristas fãs de Bismarck que promoviam atentados contra nobres ou czares fãs de Bismarck, os quais reagiam abrindo fogo contra a população que esperava um Bismarck. Some-se o espírito fatalista russo, tão bem descrito por Dostoiévski, e dificilmente teríamos uma revolução de pais fundadores na Eurásia russa.
Kotkin traça o cenário político e geopolítico em paralelo ao desenrolar da vida de Stálin. E assim vemos como a autocracia se desmanchou em seu próprio autoritarismo, mas como os líderes que a sucederam se mostraram frágeis. E como Lênin levou a melhor graças a uma força de vontade praticamente fanática, que levou à construção de um regime de partido único e a uma guerra civil que matou seu povo de fome.
Os bolcheviques tiveram que construir um novo regime das ruínas, e tiveram que fazê-lo sob ataque dos antigos apoiadores do czarismo – os brancos – e o risco constante de esfacelamento do país. O resultado foi um regime de perseguição constante, em que a paranoia se tornou política de estado. Stálin não construiu isso, mas herdou de Lênin. O regime de terror foi construído como resposta à Guerra Civil.
Em um ambiente paranoico, Lênin colocou o partido como facção interna do Estado, para vigiá-lo. Stálin, por sua vez, construiu a sua facção interna ao partido, para controlá-lo. Isso o fez forte: enquanto seus colegas de Comitê Central – inclusive e principalmente Trotsky – apostavam apenas na política de cúpula, Stálin construiu seu poder desde a base. Graças a isso, triunfou.
O texto para em 1928. É o primeiro de três volumes. Mas já é suficiente para desmontar alguns mitos. Por exemplo: não havia em Stálin mais crueldade que em seus colegas. O Trotsky democrata que o Ocidente conhece surgiu no exílio, após sua derrota. O Trotsky soviético era tão autoritário quanto seu oponente – e mais egocêntrico. Mesmo Lênin nada tinha a perder em paranoia e postura ditatorial. Nada garante que uma derrota de Stálin aliviaria o terror.
Posto isto, é importante compreender que Stálin respondeu humanamente às circunstâncias que lhe foram colocadas. Sim, é verdade, sempre há escolhas – e justamente por isso não podemos diminuir o peso moral dos seus crimes. Mas na Rússia do início do século XX havia muito poucos democratas – talvez o pobre menchevique Martov, morto no exílio. A elite política que derrubou a autocracia e construiu o regime soviético se formou na disputa entre terrorismo e absolutismo. Logo, só via o terror como meio de se fazer política. Stálin, neste sentido, era só mais um. Como eu ou você.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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