Quem mexeu no meu romance policial?

por Sérgio Tavares (22/06/2017)

Flávio Carneiro mergulha no universo de Hammett para construir as motivações de um serial killer que mata escritores de autoajuda.

“Um romance perigoso”, de Flávio Carneiro (Rocco, 2017, 288 páginas)

Um romance perigoso metaboliza o próprio gênero para galhofar de um outro.

Na terceira trama conduzida pela dupla de investigadores André e Gordo, o goiano Flávio Carneiro toma emprestado referências a enredos e a personagens de clássicos da literatura policial (e de seus subgêneros) para montar um quebra-cabeça relacionado a uma série de assassinatos de autores de livros de autoajuda.

Há, naturalmente, doses de suspense e de mistério, contudo o que sobressai é um humor fino e uma ironia para com o meio literário.

O cenário é o Rio de Janeiro da boemia, a cartografia carioca de bares e restaurantes tradicionais. Epifânio de Moraes Netto, um famoso escritor de livros de autoajuda, é encontrado morto num quarto de hotel de luxo. Causa da morte: envenenamento por estricnina, injetada no pescoço. Sobre a cama, foi deixado um exemplar de A irmãzinha, do norte-americano Raymond Chandler. Na parede, pichado com spray vermelho, um escandaloso X-9.

X-9 é uma gíria utilizada para denominar um alcaguete, um traidor. Sabe-se que Epifânio teve ligações com os militares, no período da ditadura, de onde vem a suspeita de que era um assíduo delator. A polícia também está a par de que, já célebre, havia ludibriado algumas pessoas. Mas as pistas param por aí. Então a viúva oferece uma recompensa de R$ 50 mil para quem trouxer informações que possam solucionar o crime.

É a deixa para Gordo, o dono de um sebo, convencer André, um detetive de casos menores, em especial adultérios, a partirem atrás da grana.

Convocam Heleno, um octogenário ex-policial (e uma tremenda figura), para acompanhar de perto os passos do delegado do caso, e Valdo Gomes, um alfaiate aficionado em romances policiais. A hipótese inicial é a de que o crime foi motivado por vingança. Chegam a investigar a vida sexual da vítima, com auxílio de Clóvis, um motorista de táxi que ficou rico ao transformar uma propriedade de família, no interior do estado, num motel-fazenda. No entanto, quando outro escritor de livros de autoajuda é assassinado com o mesmo modus operandis, a dupla se dá conta de que está lidando com um serial killer.

Carneiro consubstancia seu enredo a partir de ligações externas, aproximando o romance de um exercício de metaliteratura policial. A todo instante, um autor do gênero é mencionado, assim como um título, um trecho, um personagem ilustre. De Poe a Rubem Fonseca, de Ripley a Poirot. Os próprios agentes da trama são delineados pela literatura: Gordo é um exímio conhecedor de livros raros, cujo sobrado no qual está o sebo também abriga o escritório de André, cuja namorada Ana, que tem uma participação fundamental nas investigações, ocupa o cargo de editora de livros num selo paulista com ramificações internacionais.

As pistas deixadas pelo assassinado, da mesma forma, conjugam-se ao estilo noir; do livro de Chandler, sempre deixado nas cenas dos crimes, a um profundo mergulho na vida e na obra de seu mestre e compatriota, Dashiell Hammett. O autor ainda recorre a este vasto universo, ao determinar a maneira de comandar a ação. Dos personagens de Agatha Christie aos lendários Sherlock Holmes e Dr. Watson, seus detetives igualmente usam o raciocínio ao invés dos músculos e da violência.

Dois pontos, porém, são superiores. A estrutura, formada em grande parte por diálogos, fornece dinamismo ao texto, que traz para a leitura leveza e magnetismo. Quase sempre sentados à mesa de um bar, entre chopes e pratos fartos, três ou mais personagens discutem os desdobramentos do caso e é, a partir dessas conversas, que a história se desenrola. Nunca tergiversa. Mesmo os momentos românticos entre André e Ana são rápidos, e a trama avança rumo à revelação do assassino.

O humor é muito bem colocado, em tom de galhofa, e mira o mercado dos livros de autoajuda e os escritores que fazem fama e fortuna com esse filão. Há piadas sobre os títulos (o melhor é: “Jesus era magro. E você?”), as frases motivacionais, o nível intelectual (“é escritor de autoajuda, mas é um ser humano”), além de alfinetadas em editoras e até em Paulo Coelho. As interações entre André e Gordo garantem bons momentos de comicidade. Carneiro, de fato, tira sarro até do gênero que elegeu. “Hammett morreu frustrado, infeliz (…) Não conseguiu fazer ‘literatura de verdade’. Teve que se contentar com essa porcaria de romance policial”.

Para quem busca um livro bem escrito e divertido, não há mistério.

Sérgio Tavares

Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.

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