Refundação da república, ou mais do mesmo?

por Lucas Baqueiro (07/06/2018)

A refundação da república exige uma radical diminuição de atribuições do Estado e a descentralização dos seus poderes.

Durante sua participação no Roda Viva da última segunda, 04 de junho, Álvaro Dias revelou o grande mote de sua campanha: “refundar a república”, frase que elencou mais de uma vintena de vezes como seu principal norte num eventual governo. O que classificou o senador paranaense como refundação da república é, basicamente, a extinção de privilégios das autoridades e uma diminuição radical do número de cargos comissionados no Poder Executivo e de parlamentares, na esfera federal, estadual e municipal.

Basicamente, como apontou Paulo de Tarso Santos, a plataforma do candidato do Podemos está centrada no que o eleitor de centro – cansado de guerra, sem grandes razões para aderir a um dos lados da polarização política – quer ouvir. Tem um tom populista, de certo modo, porque promete resolver de forma simplista os problemas estruturais do Estado brasileiro.

No escopo deste projeto de refundação da república do senador Álvaro Dias entram, para mais além da extinção de privilégios, intensificação da guerra às drogas – com penas mais duras e combate mais intenso a traficantes e tratamento para usuários – e a destinação de 10% do PIB brasileiro para a educação.

Foi uma entrevista soporífera, sem grandes momentos. Seguramente, foi a participação menos empolgante no Roda Viva desde o início da sequência de diálogos com presidenciáveis. É difícil enxergar razão – a menos que o senador paranaense surpreenda a todos no decorrer da campanha – na previsão do vidente Carlinhos, que aponta Álvaro Dias como próximo presidente.

Está muito certo o candidato do Podemos em apontar que a república precisa ser refundada. Os privilégios dos políticos precisam ser extintos não amanhã, mas ontem. Contudo, isso é o mínimo do que o Brasil precisa para considerar a sua república refundada, porque de nada adianta manter o Estado como vai – grande gênese, diga-se de passagem, dos nossos problemas.

O mais grave problema do Brasil, hoje, não é a corrupção, mas o sistema de governo. A corrupção é patologia enraizada profundamente na alma do brasileiro pelo paternalismo estatal que herdamos dos portugueses – além da sífilis, é claro. Ela é amplamente favorecida, fortalecida e multiplicada, contudo, pelo gigantismo do Estado brasileiro e pelo presidencialismo de coalizão, pior inimigo de um país que precisa de estabilidade.

A refundação da república não pode passar sem a adoção de um sistema político mais estável, como o parlamentarismo. No parlamentarismo, há a chance de serem rompidos os pactos de governo, se formarem gabinetes com novos chefes, sem que para isso se levante qualquer sombra de golpe de Estado. Outra grande vantagem do sistema, ideal para o Brasil – e por isso, incluído por Afonso Arinos no seu anteprojeto constitucional na última Assembleia Constituinte, que foi mutilado pela sanha de roubar do nosso centrão – é a possibilidade de serem convocadas eleições a cada nova crise política, ouvindo transparentemente a voz do povo nessas ocasiões. Não precisaremos, portanto, aguentar governos que se arrastam moribundos, sem apoio de um parlamento com legitimidade casada nas aspirações do povo, como vimos no segundo governo de Dilma Rousseff e no atual, chefiado por Michel Temer.

Em Espanha nós vimos, na semana passada, um governo cair e outro radicalmente oposto assumir, sem que com isso ocorressem piquetes, gritos de golpe, e coisas semelhantes ao que acontecem no Brasil hoje. Nesse mesmo país, diante da insatisfação com a composição parlamentar, realizaram-se duas eleições em sete meses (uma em dezembro de 2015, outra em junho de 2016). A democracia não se rompeu e não pareceu estar abalada, mesmo com um clima de polarização sócio-política parecido com o nosso – eles, entre separatistas e nacionalistas; nós, entre populistas de esquerda e populistas de direita.

O parlamentarismo, para nós, iria representar uma extinção em massa de partidos políticos de aluguel: ora, se é responsabilidade do parlamento formar governo, a nossa tendência é escolher gente alinhada com os nossos candidatos; não haveria essa dissonância entre o governante que escolhemos e o parlamento que elegemos, porque tenderiam a vir das mesmas trincheiras, em maioria. O parlamentarismo é a morte de Eduardo Cunha como modelo de sucesso numa legislatura. O parlamentarismo é o fim de figuras como José Sarney na política – e muito por isso, lutou contra esse sistema de governo durante a Constituinte última.

A refundação da república exige uma radical diminuição de atribuições do Estado e a descentralização dos seus poderes. O município deveria ser o responsável pela maior parte da presença estatal na vida do cidadão, posto que é a esfera mais tangível para que o eleitor cobre os gestores. Concentrar tanto recurso e tanto poder na federação, afinal, facilita imensamente a falta de transparência e, à sequência, a corrupção como força motriz da política brasileira.

A democracia direta, exercida através de referendos e plebiscitos como parte corriqueira da cidadania – e não como situação excepcional, quase sempre desrespeitada, como inferimos das raríssimas ocasiões em que ocorreram, servindo de exemplo o referendo de 2005 sobre o armamento – faz parte de qualquer república refundada para o bem que se preze. A Confederação Suíça, país onde mais se pratica em todos os níveis a instituição da democracia direta, é um exemplo positivo do que poderíamos ser, em matéria de organização mais virtuosa.

O respeito às decisões do indivíduo, inclusive na questão de consumo de drogas, não devem sujeitar-se à avaliação de maturidade de uma sociedade por parte de um gestor ou candidato – ao contrário do que prega o senador Álvaro Dias, que estabelece o Brasil como insuficientemente maduro para dar autonomia de decidir aos cidadãos sobre a questão. Sem liberdade de costumes, não há refundação da república que se sustente.

A refundação da república para algo melhor do que mero artifício retórico não é possível sem, portanto, alterarmos radicalmente nosso sistema político para um mais transparente e sujeito à accountability do voto popular, sem inverter a pirâmide federativa, e, sem darmos poder decisório político e social ao cidadão. A extinção dos privilégios da classe política, que diz ser o presidenciável do Podemos a sua maior preocupação, não é possível sem cortar a fonte que os alimenta. Garantir a independência do cidadão das amarras do Estado, na economia e nos costumes, significa demolir sensivelmente o Brasil da aristocracia política, que transcende de pai para filho, e a construção de um novo capítulo da história.

Se não há espaço para a transparência e a liberdade, Álvaro Dias, a sua refundação da república é mera vacuidade, é apenas mais do mesmo.

Lucas Baqueiro

Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.

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