Me vi deitado no chão, a boca escancarada num risada paranoica, me imaginando acusado de bucetarrosismo.
Hoje quis escrever um texto sobre o caso da “buceta rosa”. Na verdade, ontem. À noite. Antes de dormir. Pus a cabeça no travesseiro e, entre um ronco e outro, rascunhei mentalmente a história toda. Houve um momento, antes de finalmente pegar no sono pesado, em que cheguei a pensar que a história renderia um romance – ou no mínimo uma novela. Mas daí o dia nasceu, outros trabalhos tiveram prioridade e o texto, a despeito da gritaria na minha cabeça, acabou abortado.
Para quem não sabe ou chegou aqui por acaso, movido pelo título sensacionalista ou por instintos primitivos inconfessáveis, depois de uma busca apressada e equivocada no Google, resumo o acontecido que quase – quase – me serviu de inspiração. Durante a Copa da Rússia, um grupo de brasileiros se filmou abordando uma moça de traços eslavos (muito loira e branca, mas que não consigo achar muito atraente porque os traços dela lembram os da minha tia) e se pôs a entoar assim uma espécie de versão chula do Cântico dos Cânticos: buceta rosa! buceta rosa! buceta rosa!
Ali com os homens ao redor, a russa (suponho) repetia as palavras, provavelmente porque um daqueles brasileiros ali disse (mentiu) previamente a ela que “buceta rosa” em português significava algo como “viva o futebol!” ou “a Rússia é o melhor país do mundo!” ou quaisquer dessas coisas que se diz em torneios de futebol. E os homens riam e a mulher ria e alguns espectadores do vídeo riram, ao menos antes da Indignação Geral.
Disseminado pelo indefectível Whatsapp, o filminho de poucos segundos causou comoção, revolta e, como é normal nos dias de hoje, muito ódio. Um dos homens que aparece na imagem foi demitido. Os jornais publicaram laudas e mais laudas de pessoas virtuosas inconformadas com o assédio, a violência e até mesmo o estupro verbal (e poliglota, eu acrescentaria) da russa anônima. As feministas disseram “eu não avisei?” e houve até quem visse no episódio uma expressão clara do racismo, por causa de uma suposta predileção nazista pelas carnes rosadas.
Tudo isso me levou a certa exaustão, confesso, mas por outro lado atiçou minha sempre animadinha criatividade. Queria escrever sobre o assunto porque acredito que ele reúna alguns aspectos universais das relações humanas, da necessidade de ser engraçado para se sentir amado (num sentido mais amplo do termo) ao comportamento de manada, passando, obviamente, pelo machismo e, já no fim da história, pelo perdão que se pede e se dá ou não.
Imaginei, primeiro, o título. E nenhum título causaria mais espanto ao leitor do que o explícito “Buceta rosa”. Mas daí já previ a cara de repulsa dos leitores, a incapacidade de se perceber a ironia da coisa toda, a censura de familiares e amigos e até a impossibilidade de se divulgar algo com este título nos puritanos sistemas de publicidade digital das igualmente puritanas redes sociais. E o projeto começou a morrer.
Depois, imaginei os personagens. O Fulano que foi demitido eu poderia misturar ao Sicrano que pediu desculpas públicas com uma expressão de pavor que só vi antes em parricidas retratados por jornais sensacionalistas. Outra personagem necessária era a mulher-vítima, para a qual eu tinha até dado um nome simpático – Irina – e um sobrenome para exibir todo o meu conhecimento de literatura russa: Bulgakov.
Entre os personagens secundários estavam a mãe e a namorada do Fulano e o marido de Irina Bulgakov, um pintor de paredes russo cujo passatempo preferido era assistir ao noticiário esportivo em idiomas que ele não domina, como, evidentemente, o português. À noite, delirando com a ideia de poder escrever algo mais caudaloso do que esse texto apressado, incluí na história até mesmo uma ativista dos direitos das mulheres na Rússia e um promotor público já rascunhando o pedido de prisão do Fulano. Mas deixei para lá.
O enredo eu meio que o delineei no fim de semana, ao escrever o seguinte post, devidamente desprezado por meus “amigos”:
Pensei em descrever todos os pensamentos, ou melhor, impulsos que levaram Fulano a cercar Irina Bulgakov, incentivando-a a tecer loas à buceta rosa. Quis fazê-lo se lembrar de alguma traquinagem infantil (proibidíssima nos dias de hoje), como defecar numa caixa de pasta de dentes, embrulhá-la com papel de presente e colocá-la na rua até que alguém reconhecesse o embrulho, o pegasse do chão e. Almejei retratar com o máximo de poesia possível o prazer físico, emocional e – por que não?! – mental de, no meio da rua, gritar “buceta rosa!” ao lado de uma mulher russa. E quis muito mais.
Irina merecia um capítulo à parte. Um capítulo no qual ela chegaria em casa para encontrar um marido muito russo e muito bêbado. E também muito feliz. Por causa de seu passatempo inusitado, o marido de Irina (que não merece um nome para si) veria a mulher no noticiário brasileiro. Mas, sem entender português, ele suporia se tratar apenas de uma matéria sobre torcedores brasileiros na Rússia. Para contrariar a expectativa dos leitores, terminaria a história de Irina com uma cena de sexo apaixonado entre ela e o marido. Sim, sexo apaixonado, porque o marido de Irina, ao vê-la na televisão brasileira, a viu como há muito tempo não via, como a mulher atraente que ela realmente era e por quem ele ainda imberbe tinha se apaixonado.
Aí eu acho que retomaria a história do Fulano. O execrado Fulano, demitido (“bem-feito!”), abandonado pela mulher e repreendido pela mãe que, envergonhadíssima, tenta até se matar. Narraria a queda de Fulano com os tons mais cinzas que eu encontrasse em meu parco vocabulário. E encerraria com um quê de absurdo: Fulano morando na rua, cheio de crack na cabeça, pedindo perdão a pessoas aleatórias em troca de uma esmolinha, pelo amor de Deus.
Mas daí, e ao contrário dos brasileiros que gritaram “buceta rosa” para a moça, pensei melhor. Não satisfeito, pensei mais um pouco. E, antes de desistir completamente, tentei ainda encontrar um título mais poético e tão incisivo quanto, forte e ao mesmo tempo engraçado, que levasse a pessoa a começar (e, com sorte, terminar) a ler um longo texto sobre o caso da buceta rosa sem se importar muito com a ojeriza natural que o termo causa. Só que nada nesse sentido me ocorreu.
A partir daí, as coisas só pioraram. Imaginei um leitor ou muitos leitores indignados comigo não por causa do palavrão no título, mas por estar “justificando” a piada (ou o assédio, violência, estupro verbal, você é quem sabe) dos brasileiros e por estar sendo “ofensivamente irônico” ao retratar uma Irina feliz, bem casada e sexualmente satisfeita na sociedade machista russa. Antes mesmo de começar a escrever qualquer coisa, vislumbrei um dedo furioso apontado na minha direção, me acusando de ser um irresponsável. “Não se perdoa esse tipo de coisa, cara!”, diz o dedo. Quando, por trás dele, surgem olhos esbugalhados que vão ainda mais longe e atacam meu moralismo por ressaltar, na história, a importância e a necessidade do perdão.
Por fim, me vi deitado no chão, a boca escancarada num risada paranoica, me imaginando acusado de bucetarrosismo, isto é, de fazer piada inconveniente sobre tema sério e, assim, violentar moral e emocionalmente alguém que (por ironia, uma ironia tão explícita que me arrepia, não está percebendo a ironia?, procure de novo, leia de novo) não entendeu nada do que escrevi, porque o que eu escrevo muitas vezes pode soar como português a um russo.
E daí eu desisti.
Paulo Polzonoff Jr
Tradutor, jornalista e escritor. Autor de O homem que matou Luiz Inácio. Vive em Curitiba.