A manifestação de uma opinião não é a expressão de um pensamento, mas a adesão a um grupo social.
Antes de ler este artigo, veja este vídeo. Nele, eleitores democratas declaram apoio a declarações de Trump apresentadas como sendo de Hillary Clinton. As frases escolhidas poderiam de fato ter sido pronunciadas por qualquer um dos dois candidatos. A definição de verdade ou mentira, concordância ou discordância, estava mais relacionada a quem fala que ao quê estava sendo dito.
Neste artigo, vamos abordar um pouco dos mecanismos sociais de construção de opinião. A crença comumente aceita é que uma opinião é a expressão de uma reflexão pessoal baseada em dados. Contudo, nosso cérebro vive nos enganando para nós proteger, selecionando os dados de forma a nos trazer segurança. Por isso, uma opinião é muito mais a manifestação de adesão a um determinado grupo social que transmite segurança ao indivíduo que o mero resultado de uma reflexão imparcial. A sociedade pune os não alinhados com o ostracismo ou a excomunhão, e a maioria das pessoas é sensata o suficiente para se submeter inconscientemente a isso.
O cérebro medroso
Kant já diferenciava a razão pura, fundamento da ciência, da razão prática, que embasa a tomada de decisões morais concretas. Isso é importante para a construção dos chamados modelos de escolha racional, no qual modelos matemáticos são construídos para simular uma tomada de decisão baseada em determinados conjuntos de dados disponíveis. Nestes modelos, as decisões imperfeitas ou irracionais são baseadas em “informações assimétricas”, ou seja, na falta de informação disponível para todos os decisores. A teoria do agir comunicativo de Habermas está baseada na premissa de que a escolha da informação a ser comunicada é um ato que visa causar determinado impacto no interlocutor – por isso é um agir comunicativo.
A neurociência recente, contudo, descobriu que o problema não é a presença ou ausência de informação na tomada de decisão, mas o seu processamento. Analisando-se o cérebro por meio de equipamentos de ressonância magnética, foi possível descobrir que a tomada de decisão acontece não exatamente nas áreas responsáveis pelo raciocínio, mas nas responsáveis pela sobrevivência. O raciocínio não entra no processo para embasar a decisão, mas para justificá-la.
Agora, lembremo-nos que somos o resultado de milênios de evolução. Muito antes do desenvolvimento da pólvora, dos drones e dos coletes à prova de balas, os homens mais aptos a fugir e se esconder sobreviveram e procriaram, enquanto os valentes viraram alimentos de mamute. A busca por segurança, por adesão a um grupo confiável, foi determinante para a nossa sobrevivência em uma natureza cruel. Só os medrosos e covardes sobreviveram. Ou seja, nós.
As feministas gostam de dizer que são as filhas das bruxas mortas no passado. Errado. Elas são as filhas das mulheres que aderiram ao status quo e sobreviveram. Somos os descendentes dos covardes do passado. Marighela enfrenta a ditadura com valentia e morre, Zé Dirceu se esconde no interior do Paraná e sobrevive. I rest my case.
Segue o líder
Corrijo-me. Também sobreviveram os grandes estrategistas como Carlos Martel, conhecido como o maior general da Idade Média, capaz de surpreender o inimigo. Basicamente, o sucesso de estrategistas como Martel se apoia na capacidade de aprender com os erros dos valentões que o antecederam e perderam. Isso nada mais é que o uso estratégico do medo para converter a fuga em uma luta bem sucedida. Ou, em palavras modernas, gestão de riscos. Somos os descendentes de medrosos e de calculistas de risco.
Um elemento importante do processo de gestão de riscos é escolher o líder vencedor e se aliar a ele. Estar no grupo certo traz segurança. Seguir um líder disposto a te proteger, a dar a vida por você, é fundamental. Em termos religiosos, esse líder precisa apresentar uma espécie de poder mágico que lhe assegura a vitória onde nosso medo só vê derrota. É o que Weber chamava de carisma. Ou, quando esse poder mágico se encontra institucionalizado, ele se transmite por meio do cargo, ao qual está vinculado uma espécie de graça, garantida pelo carisma daquele líder fundador.
Ao líder carismático é permitido quebrar as regras. O Alcorão estabelece que todo noivo deve pagar o dote à família da noiva, exceto o Profeta. Pelo seu carisma, ele tem direito à isenção do dote. Da mesma forma, Steve Jobs pode se comportar como um doido, pois ele é o demiurgo que traz vida aos produtos da Apple. Mas as regras do Alcorão submetem a todo muçulmano, sendo considerado a origem de todo Direito em um país islâmico. Assim também, todo designer da Apple tem que seguir o estilo e os parâmetros estabelecidos por Jobs. Tim Cook não é nada parecido com Steve Jobs, mas nele reside a “graça” por ter sido escolhido em vida por Jobs.
Agenda setting
Estudos sobre teoria das mídias na década de 1970 já apontavam que, diferentemente do que afirmava a tese da indústria cultural formulada pela escola de Frankfurt, o espectador não absorvia acriticamente as informações transmitidas pela mídia de massa. Antes submetiam-nas a um líder reconhecido para formular a sua opinião. O máximo poder que a mídia tinha se resumia a agendar os temas do debate, mas não a opinião das pessoas.
Dentro de uma lógica de busca da segurança, este processo faz todo o sentido. Ao seguir à avaliação do líder abalizado, o indivíduo assegura a sua pertença a um grupo. Assim, se sou de esquerda, é importante que meu discurso esteja alinhado ao que pensam os líderes de esquerda sobre determinados temas. Se sou católico, é no parecer de um padre que vou encontrar a identidade católica sobre um tema. Se sou católico e de esquerda, delimito quais aspectos estarão subordinados ao discurso da esquerda e quais estarão ao discurso católico.
Ao mesmo tempo, nada pior para um indivíduo que trair seu grupo ou cair em desgraça com ele. Isso pode acontecer se sua opinião refletir não a de seu grupo mas a daquele ou daqueles que são considerados seus inimigos. É o caso, por exemplo, de um católico favorável ao aborto, ou um esquerdista que defenda a responsabilidade fiscal. São heresias, e o grupo pune o herege com a excomunhão.
Em sociedades complexas como a nossa, mais do que grupo social, é correto falar em campo ideológico. O campo ideológico é algo maior que um grupo, no qual as relações se dão sob a forma de identidades e referências, e não no relacionamento direto. Por exemplo, podemos afirmar que o lulopetismo é um campo ideológico: as pessoas se identificam com ele, mas não necessariamente se relacionam com o mesmo. Da mesma forma o tradicionalismo católico, o fundamentalismo evangélico, o intervencionismo militar, os liberais etc.
Deslocamentos estruturais de grupos
No decorrer do tempo, a opinião de um grupo pode se deslocar para algo contrário à sua posição original. É o que aconteceu, por exemplo, na relação da esquerda comunista com Stalin. A partir do discurso secreto de Kruschev, houve um longo distanciamento da esquerda em relação ao modelo stalinista, que se intensificou na rebelião anti-burocrática de 1968 e na queda do Muro de Berlim. Contudo, recentemente a esquerda militante tem reabilitado a figura de Stalin como o grande vencedor da Segunda Guerra Mundial.
Este processo se dá por causa de dissonâncias cognitivas seguidas por reinterpretações dos fatos dentro do grupo. Dissonância cognitiva acontece quando a realidade escancara as fragilidades do modelo explicativo adotado. Deflagra-se então dentro do grupo uma disputa pela liderança, que é também uma disputa pela explicação mais aceita. Neste momento, o grupo se desloca em conjunto para um modelo explicativo diferente sobre os fatos, e reinterpreta inclusive a História para sustentar este novo modelo.
Por exemplo, o campo ideológico lulopetista trabalhava até 2013 com a tese de ascensão da nova classe média e como isso era uma transformação social promovida pelos governos petistas. A ideia do surgimento de uma classe ascendente empreendora e orgulhosa de si mesma era visto como algo positivo. Em junho de 2013, no entanto, essa nova classe média transbordou de raiva e expressou sua insatisfação com os limites do pacto lulista. Como reação, o modelo explicativo lulopetista se deslocou em bloco para uma narrativa de golpe, e a classe empreendora ascendente passou a ser vista como manipulados pelo neoliberalismo e o fundamentalismo religioso.
O deslocamento do lulopetismo para a Narrativa do Golpe se deu sem mudanças dos líderes. O mesmo não se deu com o campo ideológico da extrema direita. Até às manifestações pró-impeachment a direita brasileira reivindicava o governo FHC e o liberalismo econômico, alinhando-se automaticamente ao PSDB e DEM. Setores críticos pela direita eram marginais, geralmente relacionados ao tradicionalismo católico e a Olavo de Carvalho. Mesmo evangélicos como Malafaia orbitavam em torno dos tucanos.
Após as manifestações pró-impeachment a direita se deslocou da órbita tucana para novas lideranças de perfil alt-right. Expressão deste deslocamento foi o crescimento político de Bolsonaro e o esvaziamento do PSDB nessas eleições. Neste novo modelo explicativo o governo FHC tornou-se de esquerda, e o liberalismo econômico foi substituído por um intervencionismo estatal no padrão dos governos militares.
O mais incrível deste processo de deslocamento estrutural é que o indivíduo não percebe que mudou de lado. O petismo migrou da denúncia do compadrio entre empreiteiras e governos para a defesa deste compadrio sob a ótica do desenvolvimentismo sem que os indivíduos abarcados por este campo ideológico percebessem que mudaram de lado. Pelo contrário, não há mal estar. O fato de o indivíduo estar cercado pelas pessoas em quem ele confia o ajuda a ter certeza de que está sendo coerente, apesar de toda lógica contrária.
Construção de identidades e contradições
Para que um campo ideológico consiga se deslocar mantendo a hegemonia de seus líderes é importante amalgamar as identidades. Uma identidade se constrói entre si e em relação a um opositor claro. Este opositor não necessariamente precisa existir, ele só tem que fazer sentido no modelo explicativo. Por exemplo, o lulopetismo se organiza contra o golpismo neoliberal, e a nova direita contra a conspiração comunista. Nenhum desses adversários existem, mas quem faz parte do campo acredita que sim.
Parte deste processo de construção de um opositor passa pela desumanização do outro, processo que se acelera com as bolhas virtuais. É fundamental que quem está alinhado ao inimigo seja visto como um monstro, a encarnação de tudo que está errado no mundo, e não como alguém que pode ter muito em comum. Para o direitista que denuncia a ideologia de gênero, o casal LGBT se torna um abusador de menores ao invés de pais carinhosos. Para o identitarismo, o religioso é um sufocador de liberdades, e não uma pessoa capaz de tomar cerveja no bar e falar sobre amenidades.
A tecnologia favorece a desumanização por meio da disseminação de fake news. A professora, inexistente, que obrigou os meninos do ensino fundamental a vestirem saia rosa. O padre, imaginário, que orienta os fiéis a espancarem gays com lâmpadas fluorescentes. O filho do Lula dono da Friboi. O movimento de direita financiado pelos irmãos Koch. O livro de Gramsci dedicado a Satanás. A filiação de Sérgio Moro ao PSDB. Essas histórias, muitas vezes saborosas pela criatividade, alimentam o imaginário do campo ideológico contra seu opositor perigoso.
A impossibilidade do diálogo
Por tudo isso o diálogo se torna uma impossibilidade real. A tese de Leibnitz “da discussão nasce a luz” nunca se provou tão falsa. Por quê?
1. O indivíduo não quer correr o risco de romper com seu campo ideológico. Assumir a humanidade do adversário, romper o estereótipo e estabelecer a possibilidade de que ele tenha alguma razão significa mergulhar na incerteza. É muito risco, e o cérebro vai evitar isso a todo custo.
2. Desafiar uma opinião gera uma reação defensiva. Diante do risco de ser questionado pelo interlocutor, o indivíduo sentirá medo e procurará se defender. Ad hominem, boato, forçação de barra, tudo será acionado para evitar desmontar a narrativa que traz segurança.
3. Viés de confirmação. O próprio cérebro direciona nossa atenção para os elementos que confirmam as nossas crenças.
O que fazer?
Se você chegou até aqui, é sinal de que você se preocupa com o desenvolvimento de uma cultura de diálogo. Acredito que as soluções não são simples, mas começam com algumas atitudes individuais, como praticar a empatia, escapar de debates inúteis, treinar-se para evitar a desumanização de um interlocutor diferente.
O maior desafio é planejar como deslocar os campos para modelos explicativos que estejam mais abertos à alteridade. Sobre isso, não tenho a resposta, gostaria de ouvir dicas.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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