As divergências sobre o caráter ofensivo de uma afirmação abrem margem para mudanças convenientes de critérios adotados.
1.
Há, pelo menos, duas questões diversas por trás dessa formulação do problema: em primeiro lugar, saber se constitui uma ofensa chamar um negro de capitão do mato; em segundo, saber se, a despeito de ser uma ofensa, o indivíduo que a profere tem o direito de fazê-lo.
Saber se a frase constitui ou não uma ofensa depende, por óbvio, do nosso conceito de ofensa. Algumas pessoas assumem, implicitamente, que o critério para avaliar um discurso como ofensivo ou não é inteiramente subjetivo: se algum indivíduo sentiu-se ofendido (ou então, se o alvo específico da afirmação sentiu-se ofendido), então a frase foi ofensiva e seu conteúdo constitui uma ofensa.
Mas será que o alvo realmente sentiu-se ofendido? Há quem admita que o critério para aplicação do conceito de ofensa é inteiramente subjetivo, mas que é preciso diferenciar entre sentimentos autênticos e não autênticos. A pessoa pode dizer-se ofendida sem que realmente o esteja.
Essa solução tem, pelo menos, dois problemas: o primeiro é que é difícil – talvez impossível – estabelecer quando uma reação é ou não autêntica. Seria preciso ter acesso aos recantos insondáveis da mente de outra pessoa para atestar se seu sentimento foi ou não autêntico.
Em segundo lugar, isso resultaria numa situação que grande parte dos que propõem essa solução não aceitaria: casos em que a pessoa concorda ter havido uma ofensa, mas nos quais o ofensor sempre pode objetar inexistir uma sentimento autêntico de “sentir-se ofendido”.
Para usar um exemplo recente: será mesmo que o casal de homens que pediu a um confeiteiro americano que preparasse um bolo para seu casamento sentiu-se autenticamente ofendido com a recusa? Ou será que não se sentiram realmente ofendidos, mas pretenderam avançar a questão em razão dos seus contornos morais e políticos? O critério subjetivo, combinado com a separação entre reações autênticas e não autênticas, na prática refuta-se a si mesmo.
2.
Uma segunda opção, portanto, é afirmar que o critério para aplicação do conceito de “ofensa” não depende da reação subjetiva do alvo do ofensa, ou de alguma outra pessoa cujos interesses estejam envolvidos na questão.
A ofensividade possuiria um critério objetivo: existem atos que constituem ofensa, mesmo que o alvo, ou mesmo qualquer pessoa, sinta-se ofendido.
Algumas pessoas sugeriram esse critério quando analisaram o caso dos brasileiros gritando obscenidades para uma mulher russa. Segundo argumentaram, é irrelevante saber se a mulher sentiu-se ou não ofendida, uma vez que o ato foi, objetivamente, ofensivo.
Essa opção também possui alguns problemas. Em primeiro lugar, isso poderia resultar na situação contra-intuitiva de uma ofensa que não ofende a ninguém. Se é possível que um ato seja ofensivo independentemente da reação subjetiva das pessoas, é possível que um ato seja ofensivo sem que uma única pessoa sinta-se ofendida.
Em segundo lugar, ainda teríamos que estabelecer o critério por meio do qual estabelecer, objetivamente, se um ato foi ou não ofensivo. Teríamos que enfrentar, aqui, o difícil problema do desacordo moral que, ainda que não insuperável, passa a exigir mais argumentos para se definir um ato como ofensivo ou não.
Pode-se argumentar, por exemplo, que chamar um negro de capitão do mato é uma ofensa, mesmo que o alvo não se sinta ofendido. E isso é assim porque há, nessa afirmação, um evidente viés de raça. Não é comum que brancos sejam chamados de capitães do mato. No caso específico, por exemplo, um dos colegas do sujeito, e que compartilha com eles praticamente as mesmas posições, não foi alvo das afirmações. O negro, sim.
Uma resposta possível seria afirmar que não constitui ofensa quando a afirmação, a despeito de gerar reações ofendidas, é objetivamente verdadeira. Ninguém pode se ofender ao ouvir a verdade.
O problema, mais uma vez, é que a afirmação de que um negro é um “capitão do mato” não é uma afirmação descritiva e empiricamente verdadeira. Ela é, por definição, uma comparação, que envolve um juízo de valor sobre o termo e sobre a conduta da pessoa a quem esse termo é atribuído.
3.
Mas admitamos que juízos de valor podem ser verdadeiros ou falsos. Nesse caso, a divergência em si não seria uma objeção. Entretanto, teríamos que admitir ser possível, pelo menos hipoteticamente, que certas pessoas passem a afirmar, por exemplo, que certos tipos de orientação sexual ou de gênero são erradas, inadequadas ou pervertidas — sem que possamos, já de pronto, afirmar que houve uma ofensa. Basta que o ofensor consiga sustentar um argumento em favor dessa posição.
Se esse exemplo não é suficiente – alguém poderia objetar que essas afirmações, na verdade, são objetivamente falsas – pode-se questionar: seria ofensivo chamar uma mulher ou um homem de “gordo” ou “obeso” quando eles estão, objetivamente, acima do peso?
Nessa opção, ainda que adotemos a premissa da objetividade da moral, teríamos que admitir um intenso desacordo sobre o conteúdo ofensivo de certos discursos e o caráter muitas vezes fugidio ou precário de nossas conclusões sobre eles. E ainda teríamos que lidar com a seguinte situação: e se considerarmos objetivamente correto que um certo termo valorativo aplica-se a uma certa pessoa (digamos, que ela objetivamente possa ser considerada “capitão do mato” ou “obesa”), como reagiríamos se as demais pessoas naquela situação afirmassem que se sentem ofendidas com o uso do termo? E se todas as demais pessoas concordarem que o termo é ofensivo e afirmarem que se sentem subjetivamente ofendidas com o seu uso público — ainda assim manteríamos nossa conclusão de que aquela afirmação não constitui, de fato, uma ofensa?
Uma saída seria acrescentar um elemento subjetivo, mas agora do ofensor: é uma ofensa quando o ofensor tem a intenção de ofender, e afirma algo objetivamente ofensivo.
O problema, aqui, é que deixaríamos nas mãos do próprio ofensor o critério da ofensividade. Quando um candidato à Presidente, em uma rádio, chama um desafeto de capitão do mato, tem ele a intenção de ofender? Ele pode afirmar que não, e novamente não teríamos como sondar sua mente para saber se a intenção efetivamente estava lá.
Mas também podemos afirmar que o fato de ele escolher um termo só aplicável a negros, e em geral para denotar características negativas, já revela sua intenção — a despeito de ele concretamente possui-la ou não. Nesse caso, a ideia mesma de intenção subjetiva perderia importância, e voltaríamos à opção do critério objetivo da ofensa, com seus demais problemas.
4.
Definir o que é ou não uma ofensa é, portanto, uma tarefa difícil. Tentei analisar alguns critérios possíveis para aplicação do conceito.
Mas há algo pior do que a simples dificuldade. As divergências sobre o caráter ofensivo de uma afirmação abrem margem para mudanças convenientes de critérios adotados. Consideramos certas situações e afirmações como ofensivas, mas nos recusamos a admitir que, pelos mesmos critérios, uma outra também é. No mais das vezes, o critério não é racional, mas antes político.
Talvez, então, a solução para discursos ofensivos – ou aparentemente ofensivos – não esteja na resposta ao primeiro problema, mas ao segundo: temos o direito de proferir ofensas? As dificuldades em definir critérios para aplicação do conceito é um bom argumento a favor da liberdade de expressão, ainda que não seja um argumento definitivo.
Seja como for, se quisermos ser consistentes com nossas premissas teóricas, devemos explicar de maneira rigorosa por que, a despeito das divergências, consideramos que certos casos constituem ofensas – e devem ser reprimidos – e outros não.
Um trabalho difícil diante da contaminação ideológica do nosso debate público.
Horacio Neiva
Mestre em Teoria do Direito pela USP.