Sob a sina da demofobia

por Luiz Ramiro (02/06/2018)

A greve dos caminhoneiros deflagrou algo novo entre liberais e conservadores na política recente do país: rachas.

A porta foi deixada aberta, mas não quiseram entrar

Ao longo de oito ou nove dias o país entrou num estágio de paralisia. Entre 21 e 29 de maio de 2018 os caminhões foram estacionados nos postos de gasolina e acostamentos de rodovias por todo o país, realizando uma das greves mais marcantes da história. Não foi qualquer greve, não foi qualquer paralisação. Organizada à revelia dos sindicatos e associações de classe tradicionais, acionada por uma categoria bastante heterogênea, a greve dos caminhoneiros acabou ganhando um quê de 2013 e de 2015. Ainda que a pauta fosse a princípio exclusiva de uma categoria, algo dela remetia a demandas amplas e difusas como ocorreu outrora: a crítica quanto a alta taxação tributária, o clamor por segurança e a descrença na classe política. Ou seja, parte desse enredo também perpassou aqueles movimentos de rua de 2013 e 2015, e mais uma vez cenas parecidas: governos incapazes de dar respostas à altura, a grande imprensa com informações desencontradas e interpretações atravessadas que jogava o jogo do establishment político em prol da manutenção do seu status quo e as instituições representativas tradicionais – sindicatos e partidos – estando menos ainda a par do assunto. Talvez uma diferença importante referente a esta greve dos caminhoneiros é que, embora o apoio por parte da população tenha sido maciço, os caminhoneiros ficaram sozinhos enquanto movimento.

E por que isso aconteceu? Alegoricamente, os caminhoneiros deixaram uma porta aberta, à espera de alguém para tomar carona nessa viagem, mas aqueles que poderiam embarcar não o fizeram. Como explicar que personagens e movimentos que outrora foram a expressão da renovação democrática (liberal) nacional (à direita) – como MBL e Vem Pra Rua– simplesmente se esquivaram,tendo em vista que havia nas reivindicações dos caminhoneiros demandas comuns a todos os brasileiros?Portanto, a pergunta: por que os movimentos de 2015 não apareceram para fazer uma Revolta do Vintém do século XXI, ou seja, transformar a greve dos caminhoneiros – que de fato gerou uma expectativa de mobilização nacional – em uma revolta anti-tributos?

A hipótese é a da contaminação pela demofobia. É bem provável que esse dilema do paradigma democrático revele o porquê de boa parte dos liberais e uma parcela de conservadores não terem abraçado os caminhoneiros, cujas pautas pendiam para esses espectros ideológicos. O resultado foi que a turma da boleia acabou ficando isolada com o apoio pulverizado da população, mas sem movimentos sociais de ação a não ser o dos inconsequentes “intervencionistas militares”. Pouco importa se a lista de demandas dos caminhoneiros não era estritamente contemplada pelo universo liberal-conservador dos movimentos de 2015, que possuem ícones das redes sociais à altura de lideranças nacionais. Na verdade nenhum dos grandes abalos no país desde 2013 teve pauta única. Por isso é espantoso reconhecer como os caminhoneiros foram deixados praticamente no vácuo. Por que não houve oportunismo, no sentido positivo do termo, para lançar mão dessa ocasião a fim de um propósito comum? Pois nessa luta dos caminhoneiros há pelo menos duas demandas capazes de amarrar todo um país insatisfeito com uma classe política corrupta que se retroalimenta na máquina estatal: tanto uma revolta anti-tributos, como um rechaço ao establishment político.

Explicações sobre o condão que une as mobilizações de 2013, 2015 e 2018 já estão sendo produzidas por melhores intérpretes – até agora mencionaria pelo menos os textos de Facebook e o artigo na Amálgama de Eduardo de Alencar. O que se pretende aqui é, no máximo, discorrer sobre um aspecto da falta de oportunismo político de determinados agentes perante a greve dos caminhoneiros. Em que justamente a sina da demofobia torna-se uma chave explicativa desse entrave, o que pode ser até mesmo uma pedra no sapato dessa pretensa renovação política desabrochada a partir de 2013, que aponta para o fim de um ciclo político nascido da redemocratização nos anos 1980 – e marcado pela Constituição Federal de 1988. Se por um lado os movimentos dos últimos cinco anos expressaram novidades no agir político, as organizações que daí surgiram correm o risco de repetir torpezas recorrentes da história política brasileira – mas que agora já não seriam tão compreensíveis dentro do espectro democratizante. É verdade que a demofobia é mais aparente na forma com que as entidades representativas clássicas encaram essas renovações, ao terem suas estruturas confrontadas com novas práticas e o rechaço marcante da população com descrédito a essas instituições. Pudera, já que partidos, sindicatos, Poder Legislativo e Poder Executivo estão na rabeira das instituições mais confiáveis do país. Mas o curioso é que, na greve dos caminhoneiros, o fenômeno também apareceu: alguns dos principais personagens da Nova Direita, organismos e até políticos apresentaram elementos comuns à síndrome da demofobia, ao expressarem desconfiança, descrença, rechaço ou até desdenho com relação aos caminhoneiros. Rodrigo Constantino, por exemplo, em seu blog no jornal Gazeta do Povo, rechaçou exaustivamente a greve dos caminhoneiros porque não se tratava de uma trilha liberal, de modo que, segundo ele, o Brasil precisa é de uma Revolução cultural e não de ação grevista. No blog de Constantino também eram comuns as reproduções de textos do Instituto Liberal, que condenava na mesma trilha o movimento dos caminhoneiros. MBL e Vem Pra Rua até escreveram frases de apoio nas redes sociais, testaram seu público com críticas à classe política e aos escorchantes tributos pagos pelo brasileiro, mas ao fim e ao cabo não botaram ninguém na rua para efetivamente fazer uso dessa oportunidade aberta pelo pessoal da estrada. Até mesmo Bolsonaro, tido como o político preferido dos caminhoneiros, começou tímido no seu apoio e, mesmo tendo sido o mais simpático à categoria, frustrou os grevistas quando pediu que voltassem ao trabalho, alegando em vídeo que o caos não podia se instaurar [1].

Mas o que é essa tal de demofobia?

A demofobia enquanto medo do povo, da turba, da massa, funciona como método para escamotear ou rejeitar a entrada desse mesmo povo na seara política. Segundo Marc Crépon, é algo que decorre da alergia, apreensão ou desconfiança, suscitada contra esse mesmo povo, reputado como ‘ignorante’,pois vítima das suas afeições apaixonadas ou indiferentes. Com efeito, trata-se de um instrumento de “proteção” formulado pelo pensamento político moderno a fim de lidar com as multidões, e que perpassa diferentes pensadores, sejam eles liberais (como Benjamin Constant, Tocqueville, Stuart Mill, Spencer, Schumpeter, Pareto, entre outros), sejam eles socialistas (como Marx, Engels e Lênin) [2].

Os sintomas da demofobia aparecem pari passu ao surgimento das grandes cidades nos países que encarnam o paradigma democrático – num primeiro momento, em França, Inglaterra e Estados Unidos. Mesmo nesses lugares em que o discurso recorrente do “povo” era conclamado, a massa urbana é um sujeito estranho, desconhecido, cujo surgimento era gradativo e esporádico. Conjunto amorfo e politicamente mobilizável, a plebe não era reconhecida como agente consciente de ação política. Afinal, para a vertente liberal, o rumo à civilização preconizava a progressiva qualificação do indivíduo, dotado de capacidades racionais de disciplina, ordem, instrução. Por seu turno, a ordem coletivista,ascendente na segunda metade do século XIX, ainda que protagonista de uma inserção das massas, estava pautada por lideranças e instituições socialistas tão aristocratizadas quanto o sistema social que prometia sepultar –que o diga Robert Michels. Nessa mesma época surge também uma literatura conservadora preocupada em estabelecer um controle sobre essas massas, como no caso de Gustave Le Bon, que na Psicologia das multidões tinha como mote a preparação política a fim de salvar a civilização das turbas.

O pensamento político moderno – que sai da monarquia, passa pela oligarquia e segue numa vaga democrática – surge com um passo em falso, pela incapacidade de dar conta daquilo que criou. A promessa de entrada em massa na política é frustrada pelo dilema da demofobia. Não há opções teóricas à disposição prontas a dar conta desse problema, de modo que são praticamente imbatíveis as estratégias de ação ou interpretação contrárias ao paradigma democrático igualitarista: através de elites dirigentes, lideranças, vanguardas, chefes e caciques partidários, estamentos burocráticos, políticos profissionais, oligarcas e plutocratas políticos. Seguindo esse realismo analítico, a demofobia é um dado que radiografa o comportamento dos agentes de elite frente às massas.

Na história política brasileira há sucessivas ocorrências em que a demofobia foi flagrante. Entre os Inconfidentes de Vila Rica, Alvarenga Peixoto sugerira para a elite colonial que o governo dos iguais deixava de ser bom quando estendido aos de iguais, ou seja, aos pobres (“o povo mecânico”), ou pior ainda, aos escravos. No século seguinte, a Revolução Pernambucana de 1817 não passava, em suma, de uma “rebelião de demagogos”. Nos debates em torno da Independência do Brasil, entre 1820 e 1822, quando surgia alguma remissão aos escravos, parte da elite política revelava o temor da “haitianização” do país. Contudo, o pavor da anarquia a partir de um povo ampliado não se resumia ao ideário conservador, como prova o líder liberal da Revolução de 1842, o mineiro Teófilo Otoni, que usando como símbolo de campanha o lenço branco, em 1860, expunha aos eleitores a busca pela democracia… mas a “democracia da gravata lavada” [3]. Otoni perfazia uma identificação de povo enquanto populus (a elite política), e não enquanto plebs (a plebe). Coincidência ou não, o partido da “redemocratização” de 1945, os liberais da União Democrática Nacional (UDN), fizeram uso do lenço branco como símbolo do ideal de uma democracia educada [4].

Ao longo da Primeira República (1889-1930) as expressões da demofobia foram ainda mais flagrantes. Um dos eventos mais amargos da história nacional foi o massacre de Canudos, em 1897, em que o Exército foi posto para debelar o arraial montado por fanáticos religiosos no interior da Bahia. Euclides de Cunha, testemunha ocular daquilo, num primeiro momento descreveu Canudos como “A Nossa Vendéia”, em que realmente os nossos “atrasados” mereciam ser superados a qualquer preço. Porém, depois de ter percebido que o cangaceiro era o povo brasileiro, em Os Sertões,a reflexão é outra, pois beira o arrependimento, já que as forças oficiais do Estado haviam matado o seu próprio povo. Contestado foi algo parecido, assim como entre 16 de novembro de 1904 e 23 de fevereiro de 1905 a Revolta da Vacina, em que mais uma vez o Estado agiu com repressão contra a população, a partir da decretação de estado de sítio [5].

Esses sucessivos exemplos depõem em favor da dimensão aristocrática no percurso liberal democrático brasileiro. Algo que, segundo Christian Lynch, dificulta a interpretação intelectual da nossa democratização, pelo desencontro com o paradigma social e igualitário [6]. Parte desse processo de democratização inacabada refere-se à dificuldade dos “democratas” em expressarem um diagnóstico e prognóstico sobre o processo político que vá além da igualdade perante a lei e os mesmos estratos financeiros e sociais. Não se trata aqui de fazer coro por um democratismo rasteiro, de um igualitarismo por si só ou de uma adoção de agendas minoritárias. Trata-se, no entanto, de uma constatação e de como há uma pressão para que esses dissensos da modernização política sejam resolvidos – ou que se torne clara a sua aporia [7].

O caminhoneiro é um “homem de palavra”

Pois bem, resta saber se no caso os caminhoneiros são realmente uma massa amorfa e quais grupos de elite sinalizaram com uma espécie de demofobia. De antemão é possível identificar um equívoco ao se lidar com a greve dos caminhoneiros como fruto de uma patuleia desvairada ou como a mera expressão de capachos a serviço de meia dúzia de empresários do setor. Ou seja, o estigma da demofobia não deveria ter lugar. Porém, há sintomas desse fenômeno que podem ser interpretados a partir do desdenho de personagens da Nova Direita brasileira a respeito dos grevistas.

A categoria dos caminhoneiros é amplamente formada por autônomos, empregados comissionados e uma miríade de transportadores, desde pequenos a tubarões do setor logístico. As características dos caminhoneiros revelam na prática um self made man brasileiro, com uma vertebração moral reconhecível: profissão masculinizada, por vezes bruta, aderente a valores culturais semi-urbanos – como a música sertaneja, o churrasco, a vida na estrada. A própria capacidade de organização em uma pluralidade de associações, num país de dimensões continentais como o Brasil, nos informa o quanto é estranho pesar sobre essa categoria o estigma da demofobia. Ao mesmo tempo em que não são estranhos aos caracteres comuns da população brasileira, eles se fizeram presentes nessa greve de uma forma coordenada e consciente – ao contrário do que os teóricos da psicologia das massas descreviam sobre a malta populacional.

Outra marca de uma gama de empregados do setor de transporte e logística é a precariedade das relações de trabalho. Contratos incertos ou à margem de todas as conformidades legais evidenciam muitas vezes a relativa informalidade de parte do setor. Como são relações de mercado, enquanto os vínculos contratuais legais são limitados, as relações de confiança pessoal naturalmente se sobrepõem. Não à toa, um dos líderes do movimento, ao designar a confiança que os caminhoneiros tiveram na própria greve – tão exaustiva e longínqua –, comentou que esses eram “homens de palavra” [8].

Por que a greve dos caminhoneiros (não) se tornou uma Revolta Anti-Tributos?

Impressiona o modo como o governo Temer, a mídia de um modo geral e uma parcela significativa de liberais e conservadores têm atacado a greve dos caminhoneiros. Mesmo que no domingo, dia 27, em caráter extraordinário, o presidente tenha anunciado um pacote de medidas que cumpriam em parte com o rol de reclames dos caminhoneiros, a metralhadora de ataques foi tamanha que o ocaso da greve na terça-feira, dia 29, acabou sendo uma vitória do governo. O mesmo vácuo em que os caminhoneiros foram deixados parece ter sido jogado para toda a população brasileira: atônita, num ar de sábado vespertino estendido – já que muitos comércios, empresas, escolas e demais estabelecimentos seguiram sem funcionamento ou limitado por conta do desabastecimento, e na quinta-feira era feriado de Corpus Christi.

É ainda possível que a greve dos caminhoneiros se torne uma revolta anti-tributos. Já há expressões desse desejo em redes sociais. Até porque a greve parece ter deixado uma série de aberturas, é como se estivéssemos num intermezzo. Algo virá. Pelo menos uma chamada de nova greve já está sendo anunciada para o domingo, 3 de junho. Porém, a maré montante de difamação contra os caminhoneiros faz esmorecer a esperança. Influenciadores digitais da classe média financista, assim como blogueiros liberais e pró-status quo – como o já citado Rodrigo Constantino ou Reinaldo Azevedo –, expressam a vertente demofóbica. Ainda que espantosamente a manifestação tenha sido pacífica na maior parte dos dias, e por tanto tempo num território gigantesco, eram frequentes os adjetivos negativos aos caminhoneiros: selvagens, violentos, incivilizados, arruaceiros, caóticos. Enfim, a má-vontade tem sido tamanha a ponto de ofuscar a possibilidade do movimento dos caminhoneiros se tornar uma expressão de desobediência civil. Há indícios para isso, pois grande parte dos que estiveram parados foram responsáveis pelos seus próprios sacrifícios.

O desconforto com os caminhoneiros por parte dos liberais é fruto de um espectro de pensamento que atravessa o individualismo, a crença no sistema representativo, a liberdade econômica e a não-intervenção do Estado no domínio social. Esse arco de princípios blinda uma conexão e solidariedade para com a pauta dos caminhoneiros, que por sua vez é mais próxima de uma perspectiva conservadoras. De fato o caminhoneiro é um empreendedor, mas não é propriamente um liberal, não é um “investidor da XP” em sua grande maioria. Mesmo assim, e mais uma vez, retornamos à questão inicial: como o conjunto de “influenciadores” à direita perderam (ou estão perdendo) a oportunidade diante desse bonde que está a passar.

O que resta disso tudo?

Duas questões precisam ser trabalhadas como balanço sociológico dessa greve dos caminhoneiros. Primeiramente, como o governo ou praticamente o estamento burocrático brasileiro lidou com a crise em prol do – “tem que manter isso, viu?”. Segundo, como 2018 pode ainda se afirmar como um movimento nacional – e não tachado como exclusivo de um egoísmo de uma categoria contra o resto do país.

O governo cometeu uma série de erros no enfrentamento da crise do setor de transportes. Desde a completa incapacidade na administração de conflitos, no desdém quanto às demandas que já eram elencadas pelas associações e sindicatos profissionais desde pelo menos 2017, e até pela demora à realização do diálogo logo que a greve havia sido deflagrada. O setor de inteligência institucional, que deveria ter avaliado o poder de fogo dessas mobilizações, também foi leniente, e o modo como tentou se realizar acordos com os supostos líderes dos caminhoneiros perfez o pior enredo possível. Acostumado a lidar com oligarcas, o governo Temer acreditou que a cooptação de algumas lideranças – tidas como corruptas por parte significativa da categoria – seria o suficiente para estancar a sangria. Erro crasso:depois da reunião da sexta-feira, 25 de maio, o que se viu foi uma ampliação das paralisações, e não o contrário. É que esses movimentos já estão pautados por uma renovação de lideranças que não se enquadram mais nos modos de organização e ação dos sindicatos tradicionais. O governo patinou nesse sentido. E teve que ceder mais do que gostaria.

Mas mesmo com essa sucessão trágica, a sensação é de que o governo foi vitorioso. Afinal, recursos públicos para atender a algumas das pautas dos caminhoneiros serão retirados de outras fontes – como saúde, educação, segurança. Não houve uma preocupação com corte de gastos, diminuição de cargos comissionados, ou qualquer remissão ao princípio da economicidade. A provisória vitória governamental também não ocorreu porque houve a manutenção do poder, pois o “Fora Temer” nem aparecia nos primeiros dias de greve – aliás, a letargia do próprio governo é que permitiu esse patamar de protestos. Foi, na verdade, mais pelo modo como as instituições conseguiram até agora se restabelecer. Com a avalanche de condenações ao caos do desabastecimento no país, por parte da grande mídia e de uma série de influenciadores nas redes sociais, o governo logrou margem para sua própria vitimização, tendo os caminhoneiros como vilões. Para o general Sérgio Etchegoyen, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a própria população foi corresponsável pelo caos ao apoiar os caminhoneiros.

Michel Temer não fez por menos. Pelo menos três reclames à ordem partiram do presidente ou de seu staff. Primeiro, a orientação ao trabalho, expresso numa frase reproduzida nos jornais no dia 28 de maio, quando Temer causou polêmica ao reproduzir o seguinte dito: “não fale em crise, trabalhe”. Segundo, pelo emprego do instrumento policial contra a greve, ao decretar uma ação de GLO (Garantia de Lei e da Ordem) em todo o país. Tratou-se de algo que criou receio nos manifestantes e um imbróglio para as Forças Armadas e polícias federais, pois os caminhoneiros não queriam confronto e sim um país com ordem. Terceiro, o modo como Temer tentou “salvar” a sua política recorrendo a um elemento pré-moderno bastante singular, a religião: em meio a ampla descrença popular em seu governo, recorreu aos evangélicos da Assembleia de Deus, a ponto de dizer no encerramento de um evento dessa igreja que fora “iluminado por Deus”.

Em todas essas respostas políticas é possível identificar remissões à demofobia. Na verdade isso já começa pela capacidade do establishment político em se reintegrar, mesmo desmoralizado e campeão em equívocos. O modo como o poder público está estabelecido contribui para isso, pois Brasília é metaforicamente e estruturalmente um oásis frente ao povo brasileiro. É a forma acabada de uma demofobia institucional, pois foi feita exatamente com o propósito de alijar o centro político do centro demográfico – até hoje o Brasil tem uma das capitais mais insulares do mundo. Essa ilha da fantasia blinda as figuras públicas de serem públicas. Elas no máximo agem performaticamente. Por isso que aqueles no “andar de baixo” são levados à descrença com respeito àquilo que vem de Brasília, pois aquelas pessoas não vivem a vida real.

Portanto, é razoável que várias lideranças dos caminhoneiros não acreditem nos compromissos do governo quanto a suas pautas. E por isso estão a clamar pela renovação do movimento de greve. Esse mote da descrença na classe política é tão unificador quanto a pauta da redução dos impostos. Ambas podem ser abraçadas por qualquer movimento da Nova Direita, muito mais do que pela esquerda – que até tentou se aproveitar do movimento, mas não teve sucesso.

A greve dos caminhoneiros deflagrou algo novo entre liberais e conservadores na política recente do país: rachas. Na verdade, houve confusões, pois, exceto para aqueles que não se situam no conservadorismo governamental ou que acreditam na estabilidade da ordem do mercado, a greve revelou equívocos de análise. Equivocaram-se aqueles que apontavam que a consequência do movimento era apenas algo particular de um setor. E mesmo que fosse, o fato é que parou o país e teve adesão quase completa. Sem contar as possibilidades de coalizão que têm sido abertas entre os movimentos políticos e sociais já existentes desde 2015, assim como a evolução de novos movimentos.

Se realmente a hipótese da demofobia explica a reticência da Nova Direita quanto aos caminhoneiros, há duas receitas para vencer esse preconceito. Primeiro, pela aproximação, pelo conhecimento e pela superação da desconfiança. Aproximação concreta: tête-à-tête mesmo. É certo que entre o mundo da garotada de MBLs e cia. e o dos caminhoneiros há uma galáxia – linguagens, modos de vida, pensamentos e perspectivas são diferenças marcantes. Mas não são intransponíveis. Em segundo lugar, e como mostrou a facilidade com que os tresloucados intervencionistas militares praticamente levaram os caminhoneiros a um precipício, há uma flagrante carência por liderança, por mecanismos de ação política e canais de diálogo com a população para o movimento grevista. Essas duas receitas expõem oportunidades em aberto que podem ou não ser desperdiçadas. Vejamos o que irá acontecer…

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NOTAS

[1] É possível inclusive que Bolsonaro tenha tomado mais atenção aos caminhoneiros depois que Olavo de Carvalho escreveu em seu Facebook que o deputado deveria liderar essa movimentação, já que as pautas dos caminhoneiros eram muito próximas as do próprio candidato a presidência. Mas isso é só uma especulação.

[2] Recomendo a tese de Thais Florêncio Aguiar sobre demofobia e demofilia. Ver em: AGUIAR, Thais Florencio. Uma genealogia de princípios de demofilia em concepções utópicas de democrarização; 2013; Tese (Doutorado em Pós-Graduação em Ciência Política) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ.

[3] OTONI, Teófilo Benedito. Circular dedicada aos Srs. Eleitores de senadores pela província de Minas Gerais no quadriênio atual e especialmente dirigida aos Srs. eleitores de deputados pelo 2º distrito eleitoral da mesma Província para a próxima legislatura. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LXXVIII, Parte 2. Rio de Janeiro: 1916.

[4] LYNCH, Christian E. C.. “Do Despotismo da Gentalha à Democracia da Gravata Lavada: História do Conceito de Democracia no Brasil (1770-1870)”, em DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 54, no 3, 2011, pp. 355 a 390.

[5] LYNCH, Christian E. C.. “A multidão é louca, a multidão é mulher”: a demofobiaoligárquicofederativa da Primeira República e o tema da mudança da capital” em Revista de História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.20, n.2, abr.-jun. 2013, p.653-673 v.20, n.4, out.-dez. 2013, p.1491-1514.

[6] LYNCH, Christian, 2011, pp. 385.

[7] Pretende-se demonstrar que o fenômeno da democratização é presente. Os quatro sintomas do cronótopo moderno elencados por Reinhart Koselleck são evidentes a partir do período de 1750 a 1850, e seguem se desabrochando ainda neste século XXI: a democratização – camadas sociais, outrora alijadas politicamente, fazendo uso dessa dimensão de ação; a temporalização – conceitos passaram a se identificar com o futuro e não mais tendo o passado como referência; a ideologização – a concretude dos conceitos perde lugar para a pressão ideológica, tornando esses mesmos conceitos cada vez mais abstratos e inapreensíveis; e, a politização – repercussão maior dos conceitos políticos em todo o meio social, na medida em que os conceitos se tornam polissêmicos e empregados nas mais diversas arenas.

[8] “Coronelismo da estrada”? A noção de autonomia dos caminhoneiros pode ser contestada como sendo incompleta, se enxergarmos na categoria uma espécie de coronelismo das transportadoras. É possível que isso aconteça, e que parte significativa dos motoristas esteja sob a batuta de “coronéis” do asfalto, verdadeiros tubarões do setor de logístico que controlam os caminhoneiros autônomos e motoristas que prestam serviço. Isso reproduziria o que se encontra em uma série de atividades econômicas no país, e que se desenhou na República Velha pelo nome de coronelismo, quando grandes fazendeiros exerciam poder sobre pequenos fazendeiros, e estes sobre os demais trabalhadores rurais. Neste cenário a relação de autonomia individual era inexistente, pela sistemática informal de favores, o que equivale a defasagem estrutural do setor de transporte para tratar dos caminhoneiros atualmente.

Luiz Ramiro

Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.

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