É difícil de entender um livro que não tenha nenhum objetivo além de espichar uma história por várias páginas.
Qualquer curso de criação literária deveria começar com uma pergunta aparentemente singela, mas reveladora sobre a forma através da qual a literatura é vista pelos olhos de um futuro autor ou autora: qual o seu objetivo ao escrever um livro? Se o desejo de trazer outra obra à essa imensa biblioteca que chamamos de planeta Terra não passar perto da necessidade imperiosa, quase carnal, de contar uma história e atingir com toda a força o ser humano que um dia terá o livro nas mãos, é melhor nem começar a sujar a folha de papel. Parece cruel exigir uma resposta tão definitiva de um projeto de escritor ou escritora – ou de qualquer artista; afinal, mudam os meios e a ideia permanece intacta -, mas a pessoa precisa saber, desde o início, que uma obra de arte é um assunto sério. Não existe nada mais desanimador para um leitor esperançoso do que perder tempo por causa de algo vazio e sem alma.
Ao final da leitura de A arte de desaparecer, da escritora, poeta e tradutora americana Idra Novey, é impossível não se perguntar se a jornada através das suas 268 páginas valeu a pena. Admite-se que alguns livros tenham propósitos de simples entretenimento, e que outros busquem só dar algumas horas agradáveis para os leitores; é possível concordar com a ideia de que um livro sirva para despertar dúvidas existenciais e/ou filosóficas, assim como outros possuem finalidades estritamente estéticas, brincando com experimentações e com a linguagem. A literatura comporta múltiplas funções. Por tal motivo, é difícil de entender um livro que não tenha nenhum objetivo além de espichar uma história por várias páginas, resvalando para uma série de clichês narrativos, sem sequer um personagem carismático ou um dilema interessante. A arte de desaparecer é um livro que, assim como uma semente malograda, não desabrochou em narrativa.
Antes de prosseguir, um alerta: essa resenha é a opinião de um leitor atento e imparcial. Não ignora os paratextos que cercam a obra, como a informação na contracapa de que o mesmo livro foi “vencedor de inúmeros prêmios, entre eles o Brooklyn Eagles Literary Prize 2016 e o Sami Rohr Prize 2017”, ou as opiniões elogiosas dos colunistas da New York Times Book Review e do Wall Street Journal. Também não ignora a orelha escrita por Paulo Henriques Britto ou a tradução (primorosa, importante destacar) levada a cabo por Roberto Taddei. A julgar pelos prêmios e pelos comentários entusiasmados dos jornalistas nos comentários da quarta capa, é bem possível que a presente resenha seja o ponto fora da curva ou, para ficar em um clichê disfarçado de ditado popular, “a exceção que confirma a regra”. Ainda assim, para continuar nos ditados populares, “não se pode tapar o sol com a peneira” e deixar de observar que A arte de desaparecer é um livro que não diz o motivo pelo qual veio a esse mundo.
A trama gira em torno do desaparecimento da escritora Beatriz Yagoda, vista pela última vez subindo uma árvore em Copacabana. Ela é uma mulher distante e fria, considerada excêntrica, com poucos envolvimentos pessoais, e seu sumiço chama a atenção da mídia. A tradutora de Beatriz para os leitores americanos, Emma, viaja de Pittsburgh para o Rio de Janeiro com o plano de localizar a escritora. Encontra-se com os filhos da desaparecida, e descobre que ela devia dinheiro para um agiota. Ao mesmo tempo, o editor de Beatriz, Rocha, continua se comunicando com ela, e logo todos descobrem que o desaparecimento pode estar vinculado não à onipresença violenta do agiota – chamado Flamenguinho -, mas à circunstância da escritora desejar um acerto de contas com o seu passado no último livro que estava escrevendo.
Todos os paratextos dentro do livro, inclusive a biografia da autora Idra Novey, destacam o fato dela ser tradutora de Clarice Lispector para o mercado americano, e é na imagem da escritora brasileira que é construída a personagem de Beatriz Yagoda, tanto pela descrição do estilo de suas histórias quanto pelas menções físicas (como a cor dos olhos e a aparência atraente). Da mesma forma, não é uma coincidência que a personagem principal do livro seja uma tradutora, assim como a sua autora, realizando um espelhamento com a realidade que nem sempre funciona bem no campo ficcional urdido dentro de A arte de desaparecer.
Desiludida com uma vida sem grandes emoções nos Estados Unidos, Emma vem para o Brasil em busca da escritora que imagina conhecer melhor do que ninguém. As suas reflexões sobre o trabalho de traduzir a obra de uma pessoa para outra língua contém uma série de questões teóricas sobre o assunto, tais como a dita invisibilidade do tradutor, a ideia de que toda tradução constitui uma traição ao original e o fato dos tradutores também realizarem um trabalho de criação ao verter um texto para outro idioma, algo que os aproxima até espiritualmente da ideia de autoria. Uma pena que tais questões não tenham sido abordadas com maior atenção no interior da narrativa, pois constituíam uma parte importante da construção da personagem Emma: a relação nem sempre pacífica entre tradutora e autora.
O livro se transforma em uma busca à escritora desaparecida, mas realizada por personagens nada cativantes: além de Emma e de Flamenguinho (que segue o modelo estereotipado de “bandido brasileiro”, para frustração do leitor que esperava um personagem menos óbvio), participam da busca Raquel, a filha prática e racional que se sente preterida no amor pela mãe; Marcus, o filho sedutor no estilo “malandro carioca” – novamente um personagem cansativo de tão envolto por estereótipos – e o já mencionado Rocha, editor dos livros de Beatriz Yagoda, que, a julgar pelo altíssimo investimento material e humano na autora, funciona mais como um editor americano do que um brasileiro, chegando às raias da inverossimilhança. Desenvolvidos de forma superficial e rápida, os personagens não cativam e nem empolgam, soando mais como esquetes de um seriado de televisão do que como pessoas que um leitor gostaria de acreditar.
Tentando quebrar a linearidade da trama e conceder-lhe maior força, a autora usa com timidez o recurso de inserir, entre alguns capítulos, noticiários de rádio (que soam falsos graças à sua plasticidade forçada), e-mails de personagens e verbetes falsos de um dicionário. Curiosamente, logo após a inserção desses capítulos extras, as cenas posteriores retomam os temas nele explorados, o que demonstra ser mais uma estratégia estrutural de narrativa para soar contemporâneo do que algo orgânico, natural.
Contudo, não se pode ignorar que A arte de desaparecer é um livro muito bem escrito, e seus capítulos curtos não são cansativos, fluindo sem problemas. Pode não interessar para o leitor que busca uma obra que lhe desafie ou desacomode, mas, para aqueles atrás de um livro sem grandes pretensões ou ambições, com vontade de contar uma história sem demasiadas profundidades ou camadas, ou um passatempo inocente para uma tarde de ócio, ele seria a melhor indicação.
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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