O fio condutor da obra é o curso do filósofo Olavo de Carvalho sobre as 12 camadas da personalidade.
Para causar espanto
Há cerca de uma semana foi lançado no Cine Odeon, no Rio de Janeiro, o filme Bonifácio: O Fundador do Brasil, de Mauro Ventura. O documentário cinematográfico esbanja beleza, harmonia e delicadeza. Retrato recortado da vida de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o “patriarca” da Independência do Brasil, o filme é sobretudo a revelação de uma personalidade, de sua construção, superação e destino. A sequência encanta pela composição fotográfica e musical. Mas não se resume a uma exposição da memória de uma personagem histórica; há algo que está nisso, mas vai além disso: um toque profundo, uma mensagem, um estalo provocador.
No mínimo, uma pergunta deixada no ar, nos primeiros minutos, nos envolve e faz o mais desatento espectador se contorcer na poltrona: por que tanto desprezo por nós mesmos? Desprezo pelo que fomos, somos e sobre quem lavrou esta terra, fiou esta pátria? Ainda que isso possa residir em algo superior — posto em Oração por Santa Tereza D’Ávila: “…Lembrai-vos, Senhor, de que nós não nos compreendemos a nós mesmos, que não sabemos o que queremos e que nos afastamos infinitamente daquilo que desejamos” –, é dramático perceber essa nossa desconsideração por aquilo que está num estágio ainda mais elementar e material. Se as projeções do hoje e do amanhã são fruto daquilo que conhecemos, como é que seguimos vagando neste mundo, já que tornamos irrelevantes a nossa própria constituição?
Duas dimensões estão conectadas nessa questão: o próprio indivíduo e o grupo social. Do mesmo modo, o filme vai tecendo o íntimo e o externo da vida de José Bonifácio. O resultado disso é a construção de uma nação, pois de fato se trata de uma costura relacional. Sendo assim, qual é a afinidade que nós temos com esses pontos? Quando os norte-americanos peregrinam nas casas que foram de seus Founding Fathers, fazem encenações dos fatos marcantes da Independência, e dos campos de batalha transformam em pontos turísticos nacionais, estão a cada geração transbordando algo que poderia ser alheio ao indivíduo, em algo particular.
Essa comparação, cá entre nós, já causa espécie pelo modo como somos desavisados sobre aquilo que é o rés do chão do país em que vivemos. José Bonifácio, Visconde de Cairu, Marquês de Caravelas, Hipólito da Costa, Antônio Carlos de Andrada, ou figuras menos importantes como os marqueses de Queluz e Barbacena — todos marcantes na nossa formação como país separado de Portugal, figuram no máximo como caricaturas em livros didáticos que enfadonhamente folheávamos na escola.
Qual é a proposta?
Bonifácio: O Fundador do Brasil tem a capacidade de dirimir esse distanciamento sobre a formação brasileira. Ao trazer o caso de uma vida, que como qualquer vida é particular, e que também se expande para algo além de si, o filme revela a contínua associação do próprio Bonifácio em seu percurso — formação moral e intelectual, rumos, carreira, conquistas, desafetos, derrotas, consolos e desaforos — com aquilo que está nos patamares da construção nacional. O fazendo de modo íntimo, que pode caber a cada um, e que outrora era exclusivo de Bonifácio. Seus dramas eram brasileiros, mesmo ao longo das três décadas longe da terra natal: a distância, as frustrações, as potencialidades, a grandiosidade, a mesquinhez, a injustiça, o reconhecimento. Altos e baixos, idas e vindas. Não se trata da exposição biográfica dos ministros do Supremo Tribunal Federal, ou de qualquer jurista orgulhoso, que sempre parecem ser sujeitos do poema de Fernando Pessoa — “campeões em tudo” — como uma biografia feita da sequência de vitórias ininterruptas. Nada disso. O que o documentário expõe é decididamente o desenvolvimento quase que completo de uma personalidade.
O fio condutor da obra é o curso do filósofo Olavo de Carvalho sobre as 12 camadas da personalidade. Essa é a proposta do filme. Não se trata de uma biografia com os detalhes do percurso político de José Bonifácio, já que há lacunas importantes que não foram preenchidas nesse sentido, como o dissenso com José Joaquim Carneiro de Campos em 1823 no âmbito da Constituinte e as reaproximações com o mesmo em 1830[1]. Entre as entrevistas, há trechos piegas e despropositados, como a tataraneta de José Bonifácio dizendo que ele “gostava era de estudar” (!?).
Além disso, por mais que o esforço de pesquisa de Rafael Nogueira tenha sido notório, cairia bem a fala de outras referências nos estudos da história política luso-brasileira do período, entre outros, a professora Lúcia Bastos Pereira das Neves da UERJ, o também historiador Ronaldo Vainfas da UFF, ou o politólogo Christian Lynch do IESP-UERJ, ou ainda o português Rui Ramos, um dos maiores nomes da historiografia lusitana atual. Ainda assim, essas supostas faltas, defeitos, incorreções, buracos, estão dentro do pacote do objetivo do filme.
Não se trata de um documentário acadêmico, nem de uma peça de propaganda institucional, e menos ainda da defesa de uma tese. É uma contribuição, uma rica contribuição sobre a personalidade de uma das figuras mais ímpares da história mundial, e que é brasileiro, que é nosso. E nesse aspecto as falas de Sérgio Pachá e Olavo de Carvalho são tão musicais quanta a belíssima trilha sonora do filme.
Não os defeitos, mas os efeitos
Poderia ficar como chato a procurar defeitos, entrar em polêmicas sobre a relação de José Bonifácio com a maçonaria, ou os debates na historiografia sobre o “Brasil Colônia”. Contudo, a generosidade desse trabalho nos coloca a procurar os efeitos que ele causa, pois é isso o que importa.
Primeiro, Bonifácio: O Fundador do Brasil surge como analgésico ao empobrecimento do imaginário brasileiro. São raras as produções cinematográficas de momentos dos séculos XVIII e XIX no Brasil, e muitas das que retratam algo do século passado são ainda mais lamentáveis. Os Inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, pode ser uma exceção, e mais um ou outro contados nos dedos. O diferencial do filme de Mauro Ventura é o cuidado estético sem igual, o que também tem como efeito mexer com nossa consciência histórica: não só José Bonifácio é retratado com dignidade, mas monumentos nacionais que poderiam parecer tão banais, como o Palácio São Cristóvão, são retratados com muita fineza.
O descuido público com o patrimônio, com nossa arquitetura, com o nosso passado, com as nossas biografias marcantes, é retribuído pelo filme com a identificação da harmonia. É possível que do pó, da desgraça, do escanteio, surja não um ressentimento, mas um brilho e uma esperança. Pois assim foi o próprio Bonifácio, assim foi sua vida. Esse é o terceiro efeito que o filme causa, algo sobre a nossa própria personalidade. Conhecer a biografia de José Bonifácio é se embrenhar no modo como alguém pode expandir seu caráter, subir além das vicissitudes da vida, de seus constrangimentos, injustiças e adversidades. Creio que o documentário conseguiu contemplar em sua inteireza algo do próprio José Bonifácio, o espírito de entrega, esforço e doação — ainda que diante de tanta adversidade e ingratidão.
O filme não contou com recursos governamentais. A equipe da produtora IVIN, do pessoal da “salinha do COF”, fez algo no peito e na raça, com doações e trabalhos voluntários, tendo sido inclusive o maior crowdfunding cinematográfico do Brasil. Em uma palavra, merecem os parabéns! Obrigado.
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[1] Detalhes dessa relação entre os Andradas, e em especial José Bonifácio com José Joaquim Carneiro de Campos (Marquês de Caravelas) foram retratados no livro de Christian Edward Cyril Lynch, Monarquia sem Despotismo e Liberdades sem Anarquia: O Pensamento Político do Marquês de Caravelas, Editora UFMG, 2014, pp. 54-55.
Luiz Ramiro
Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.
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