Butcher’s Crossing e Eclesiastes: o caminho através do vale de ossos

por Lucas Petry Bender (23/06/2019)

O que sobra da vida depois de se deparar com a sua verdade essencial?

Imagens da caça e esfola de búfalos, assunto certamente muito pesquisado por John Williams, considerando a riqueza de detalhes do romance.

Em Moby Dick, lemos que “o mais verdadeiro de todos os livros é o de Salomão: o Eclesiastes é o aço mais bem forjado da dor”. O esforço por compreender toda a verdade dessa sentença é uma chave para nos aproximarmos do obscuro coração de um romance que certamente foi bastante influenciado pelo clássico de Melville: Butcher’s Crossing, de John Williams (Editora Rádio Londres, tradução de Alexandre Barbosa de Souza).

Protagonizada pelo jovem William Andrews, que chega ao vilarejo que dá nome ao romance em algum momento na segunda metade do século XIX, após abandonar os estudos em Harvard, a narrativa nos mostra o árduo caminho para dentro da natureza selvagem. Andrews encontra na caça de búfalos para o comércio de peles a justificativa para se integrar a um grupo de experientes caçadores através das pradarias do Kansas até o sopé das montanhas do Colorado.

As intenções de Andrews são vagas, existenciais, íntimas – pouco importa o fruto do trabalho em si, o empreendimento, o comércio das peles. Provavelmente influenciado por certa idealização da natureza – no tom da epígrafe de Ralph Waldo Emerson e dos relatos de Thoreau – Andrews parece estar em busca da essência da realidade, da vida verdadeira, de

uma forma de liberdade e beleza, de esperança e vigor, que lhe parecia a base de todas as coisas mais familiares em sua vida, que não eram livres nem belas, tampouco cheias de esperança ou vigor. O que ele buscava era a origem e a salvação de seu mundo, um mundo que sempre parecia recusar as próprias origens.

Idealismo típico da juventude, mas também generosa abertura ao desconhecido, franca busca por um sentido que redima a miséria do mundo e a confusão da vida. Desde já, o leitor um pouco mais experiente tem vontade de perguntar a Andrews: digamos que se possa conhecer essa fonte da realidade, essa raiz da vida verdadeira, o que resta depois de conhecê-la? O que sobra da vida depois de se deparar com a sua verdade essencial? Como continuar vivendo – trabalhar, comer, dormir, cortar as unhas, limpar a casa, rir de uma bobagem qualquer, e todos os milhares de incontornáveis atos de imanência diários – depois de ver a face nua da realidade?

Vã filosofia

Começamos este texto já pelas questões fundamentais da vida, quando o mais recomendado seria introduzir a história e o tema. Publicado nos Estados Unidos em 1960, Butcher’s Crossing é um romance preenchido em sua maior parte por elementos básicos de interação do homem com a natureza selvagem. Estrelas, fogueiras, frio, sol, acampamentos, estoque de água e de comida, sede, tédio, carne assada, café, pedregulhos, pradarias, rios, vales, búfalos, tiros, neve, neve, neve. A empolgação com a caça. A solidão que ameaça tornar-se loucura. O aprendizado de muitas artimanhas para lidar com os imprevistos da vida no meio natural. A frustração com a incapacidade de prever e de vencer as insondáveis forças da natureza. O senso de aventura. O senso de inutilidade de todos os esforços humanos. A grandeza de tudo que existe. A miséria de tudo o que existe. A vida abundante, exuberante, livre e vigorosa. A carcaça da vida, o desperdício de toda abundância, a morte.

Pretendíamos resumir o enredo e novamente caímos nos fundamentos da vida. Não é por acaso; Andrews está em busca desses fundamentos, com toda a ingenuidade e generosidade que a juventude devota à realidade desconhecida. Com uma prosa contida e precisa, quase desprovida de ornamentações e evitando grandes reflexões sobre os personagens, preferindo a expressividade das descrições dos cenários naturais e das rotinas humanas, John Williams entrega ao leitor uma prazerosa imersão no texto e na história, ao mesmo tempo em que nos confronta com o penoso fardo da vida que é empurrado montanha acima apenas para que o vejamos rolar abaixo.

O tom geral do livro é o de um esforço em vão, como o de Sísifo – de vaidade, qualidade do que é vão, por isso Eclesiastes se oferece como chave para sua compreensão. Antes de continuarmos, convém indicar duas análises sobre Butcher’s Crossing que nos servem de parâmetro para avançar na aventura da conversação. André de Leones, em texto que abrange os três principais romances de Williams, publicado no jornal Cândido, reflete principalmente sobre o senso de responsabilidade pessoal diante do descompasso entre as expectativas dos personagens e o que o mundo lhes oferece de fato. Rodrigo Duarte Garcia, em ensaio na Amálgama, enfatiza o niilismo do romance, que vai na contramão de expectativas transcendentalistas. Ambos os elementos destacados naquelas leituras dizem respeito também ao que o livro de Eclesiastes descortina, ou seja, a desilusão do homem e o vazio do mundo.

Não pretendemos entrar em detalhes que revelem o teor da narrativa. Mas, como estamos falando sobre os fundamentos da vida, não podemos escapar das questões mais incômodas que Williams provoca; sobretudo, não podemos evitar o desolador senso de vaidade que se alastra por dentro do leitor. Quando lidamos com palavras desgastadas pelo uso abusivo, convém retomar a definição. Vaidade, de acordo com o dicionário Houaiss, é a qualidade do que é vão, vazio, firmado sobre aparência ilusória.

“Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?”, constata o mais antigo e mais atual livro sobre o tema, o Eclesiastes (ou Coélet), atribuído ao rei Salomão, em frases que serviriam muito apropriadamente para definir o romance em questão. Butcher’s Crossing coloca o leitor de frente para o abismo das ilusões humanas. A busca de Andrews pelos fundamentos da verdadeira realidade encontra o pó de onde tudo veio e para onde tudo retorna. Mais do que vaidade humana, nos perguntamos sobre o caráter vão da realidade mesma.

“Porque o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais.” (Ecl 3, 19)

Vento que passa

O sol e o vento, poderosas forças primitivas que ilustram os fundamentos da realidade no Eclesiastes, são também figuras expressivas em Butcher’s Crossing. A dualidade marcada nas duas epígrafes do romance convida a refletir sobre o duplo aspecto do reino natural. Por um lado, existe uma realidade oculta na natureza, algo que se manifesta através do senso de beleza, ordem, harmonia, vigor. Entretanto, esses aspectos se apresentam terrivelmente indiferentes à vida humana – a própria consciência do homem parece apartada de tudo isso –, de modo frequentemente cruel, destrutivo, cego. Nessa oposição não se consegue enxergar alguma substância consistente na essência da realidade e da vida humana. Por mais exuberantes e variadas que sejam as manifestações da natureza, o homem lúcido não pode deixar de notar que tudo parece feito para desmoronar, pois tudo veio do pó e para o pó voltará. Resta, fundamentalmente, apenas o vento que passa, e todo o resto parece palha seca levada a esmo.

No entremeio do duplo aspecto da natureza, o aparente e o oculto, emerge o enigma da consciência humana, que, por sua vez, constitui outra dualidade: de um lado, a dignidade da autoconsciência – a responsabilidade pessoal, a lucidez resiliente, a liberdade interior – e, de outro, o seu fardo existencial, a angústia, a solidão, o tédio, a ansiedade, o desespero. O desafio de uma vida examinada e bem vivida se depara, mais cedo ou mais tarde, com o vento gelado varrendo o pó a esmo, como expressado no Eclesiastes.

O jovem Andrews não está sozinho, mas acompanhado de três homens experientes e vividos, acostumados com a dureza dos meses passados no meio da natureza selvagem, habituados com a árdua caça aos búfalos. Entretanto, Andrews está, sim, sozinho, na medida em que, diferente dos demais personagens, busca os fundamentos da vida no seio do desconhecido, por mais inarticulado e vago que seja seu anseio. A solidão de Andrews é a solidão inerente à busca consciente pelos contornos e profundidades da realidade. Ainda que ele seja jovem demais para saber disso, a lucidez radical de Eclesiastes o aguarda nos limites da vida.

Por mais vaga e inarticulada que seja a busca de Andrews, adivinhamos que ele desconfia que a vida não seja mais do que vaidade, que os muitos livros que leu não passem de vaidade das vaidades, e que a esperança de redenção dessa realidade mesquinha esteja oculta no seio da natureza selvagem. Na verdade, a essência que Andrews procura é uma fé maior do que a própria vida, algo pelo qual valha a pena viver e morrer. É significativo que num dos momentos mais sublimes, após a terrível nevasca, quando Andrews sai do acampamento pela primeira vez sozinho através do vale, encantado com a beleza da brancura imaculada que cobre tudo – é significativo que o reflexo do sol na neve brilhe tão intensamente que provoque cegueira momentânea; Andrews começa a entender que não vai encontrar o que procura, pois não é possível contemplar diretamente o esplendor da grande beleza, não é possível olhar diretamente para o brilho da fonte da vida.

Andrews quer vislumbrar o paraíso, mas sua solidão e imaturidade, de um lado, e sua lucidez e coragem, de outro, o levam ao encontro de uma “paisagem fraturada” (expressão de André de Leones) que, além de despedaçar as suas expectativas, não oferece uma base segura e comum de sustentação e compartilhamento da realidade. A essência da realidade que Andrews procura, saindo do leste densamente civilizado em direção ao incógnito oeste, passa também por adentrar no silêncio – o silêncio ensurdecedor que expõe o vácuo, a ausência, o vazio do mundo. Assim como o Eclesiastes, o romance de John Williams cria esse silêncio fundamental, primevo, essencial (cujo risco de extinção atualmente é muito superior ao dos búfalos). Silêncio que convida a um olhar despido sobre si próprio e sobre o mundo.

E o que o olhar conduzido por John Williams nos revela é um tremendo desperdício – de tempo, de energia, de trabalho, de confiança, de beleza, de toda abundância que se esvai –, de inutilidade, de vaidade! O mais próximo que Andrews chega de uma essência da realidade é o encontro com a morte, com o acaso sem sentido, com o grande vazio e inutilidade de tudo que existe.

Nem mesmo conseguia se lembrar da força daquela outra paixão que o impelira através do continente para o mundo selvagem, no qual sonhara encontrar, como numa visão, seu eu imutável. Quase com remorso, agora ele era capaz de admitir a vaidade despertada por essas paixões.

“A vantagem dos homens sobre os animais não é nenhuma, porque todos são vaidade.” (Ecl 3, 19)

Onde o vento faz a curva

Como diz Peter Kreeft em Três filosofias de vida (Editora Quadrante, 2015), o maior medo do homem moderno não é o inferno, o pecado, a morte, a culpa – mas o nada, a falta de sentido. Butcher’s Crossing se encontra com Eclesiastes para essa revelação através das trevas, através da carcaça da vida, mostrando onde não está o sentido e deixando o caminho livre para descobrirmos que entre o céu e a terra existe mais do que sonha a nossa vã filosofia.

Contemplar a carcaça da vida, no entanto, é tarefa muito dura e penosa – tanto quanto é duro e penoso atravessar o Eclesiastes, inclusive para o leitor que crê na revelação bíblica. Muitos de nós certamente já nos deparamos com o desgosto existencial provocado pela vaidade das vaidades, a ponto de nos levar a questionar se a revelação de Eclesiastes não arruína todo o “resto” das sagradas escrituras, ou toda tentativa de dar sentido à vida  – e quantos não são os que se julgam críticos das religiões e da fé e, no entanto, sequer sabem que a Bíblia mesma possui o mais radical dos questionamentos?! Por outro lado, quantos não são os que proclamam a fé, embora ignorem a vaidade das vaidades, convenientemente contornando a Palavra contida em Eclesiastes?!

A perplexidade é inevitável, seja no âmbito veterotestamentário, evangélico, agnóstico ou mesmo ateísta. Somos desafiados a compreender de que modo Eclesiastes não é a palavra final sobre a realidade, o mundo e o homem – pois, se fosse, não haveria um motivo digno para você estar lendo este texto, nem para eu escrevê-lo, nem para Butcher’s Crossing vir à luz, nem para escovar os dentes, limpar a casa, trabalhar, comer, rir etc. E, contudo, sabemos e sentimos, nos ossos, nas entranhas, no coração, no “fundo insubornável do ser” (expressão de Ortega y Gasset), que Eclesiastes fala a verdade.

Voltemos a Peter Kreeft, que, além de considerar Eclesiastes o melhor livro de filosofia desde sempre, o define como a expressão da vaidade como filosofia do inferno, sendo o livro de Jó a expressão do sofrimento como filosofia do purgatório, e o Cântico dos Cânticos do amor como filosofia do paraíso. Percorre-se, assim, um caminho ascendente – imortalizado por Dante n’A Divina Comédia – em que a vaidade das vaidades é experiência fundamental do ser e expressão essencial da realidade, mas que não as esgota; pelo contrário, pavimenta uma trajetória de descoberta e de abertura ao mistério do Amor. De fato, ao virarmos a última página do Eclesiastes já estamos abrindo a primeira página do Cântico dos Cânticos.

Não por acaso, cinco anos depois de Butcher’s Crossing John Williams trouxe à luz seu romance seguinte, Stoner (1965), um verdadeiro tesouro que, de modo simultaneamente similar e oposto ao livro anterior, trata de uma imersão não na natureza selvagem, mas na cultura, nas forças civilizacionais (família, casamento, arte, ciência, trabalho, amizade etc), sendo que o sentido mais profundo e rico se encontra no relacionamento do protagonista William Stoner com as diversas facetas do amor, como analisado por Martim Vasques da Cunha em ensaio na Amálgama. Ou seja, a obra literária de John Williams trilha uma trajetória que sugere o percurso aqui abordado, partindo da ilusão infernal para a plenitude do amor. Da vaidade das vaidades para o cântico dos cânticos.

“Todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó.” (Ecl 3, 20)

Nada de novo debaixo do sol?

A vida humana, por mais vã que possa ser, acontece no tempo, se inscreve num movimento e numa trajetória, é sempre um caminhar. Nesse sentido, pode-se considerar que Butcher’s Crossing conta a trajetória de abertura de um jovem idealista ao Amor, após atravessar o inferno da vaidade do mundo, o que inclui a desilusão com o que Andrews esperava ser o amor, que se esgota num vácuo de dias e noites indistintos ao lado de Francine. O livro termina, contudo, com o sol brilhando e um caminho que segue, e intuímos que Andrews está pronto para descobrir o verdadeiro Amor, pois ele não cria ilusões, não mente para si mesmo, olha nos olhos da vida. Seu ato final de generosidade para com Francine demonstra isso, ao passo que os demais homens sucumbem à loucura e à destruição.

Como todo jovem precisa descobrir se quiser amadurecer, não adianta querer já o amor, sem antes se deparar com a vaidade do mundo, com a pergunta fundamental sobre o ser. Como aponta Peter Kreeft, o amor é a resposta, mas não podemos desfrutá-lo antes de nos debruçarmos sobre a pergunta. É o que faz John Williams através de Butcher’s Crossing. Essa lucidez é o antídoto para que o amor não se reduza a sentimentalismo, ideologia, laxismo, hedonismo ou qualquer das distorções que frequentemente o atingem.

Como dissemos, no final de Butcher’s Crossing o sol novamente se levanta e há um caminho que segue – como seguem os escritos após o Eclesiastes, como segue a vida após a vaidade. “Pois Deus julgará todas as ações, também as ocultas, sejam boas ou más” (Ecl 12, 14). Assim como o livro do Eclesiastes encerra com esse versículo de esperança renovada – purificada e fortalecida após a vaidade de tudo –, também Butcher’s Crossing encerra com o sol brilhando e uma abertura de perspectivas.

Há algo de novo sob o sol; sobretudo, há uma Boa Nova. Mas, para que ela seja realmente boa e verdadeiramente nova, é preciso atravessar as pradarias da vaidade e os vales de ossos, enfrentando os ventos gelados nos ermos do sentido. Só assim não vagamos a esmo em círculos, num mundo que parece sempre recusar as próprias origens. Pode ser que o homem, essa criatura decaída, tenha perdido o rastro e não saiba reconhecer que tudo é graça, que tudo manifesta o Amor. Mas quem procura, acha.

Lucas Petry Bender

Servidor público, nascido em 1985, vive em Porto Alegre. Escreve sobre cinema em personacinema.com.br e no estadodaarte.estadao.com.br.

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