A vida real é bem diferente dos delírios lisérgicos de Petra Costa.
O documentário Democracia em vertigem, de Petra Costa, é a celebração masturbatória do petismo alucinado. A cornitude da realidade do petista-médio se evidencia desde o primeiro minuto de filme, quando um militante rechonchudinho berra, a plenos pulmões, que Lula não sairá do sindicato. E saiu. Cenas adiante, outros militantes ensandecidos, aparentemente alheios ao mundo que desmoronava, gritavam que não haveria impeachment. E houve.
Antes de adentrar a seara da devoção ao petismo e seus santos de barro, é necessário falar sobre a forma como a diretora do documentário tenta expiar o pecado de sua riqueza. O Diário do Centro do Mundo, sempre tão fidedigno e comovente, apresenta a diretora como “de origem de classe média alta”, mencionando en passant que é neta de um dos fundadores da Andrade Gutierrez. E é nesta fábula que tenta Petra Costa fazer o incauto espectador acreditar: que não é rica, que é filha de uma família humilde, que tem meros vínculos com uma empreiteira e com alguns políticos mineiros, como Aécio Neves. Chegamos a nos perguntar, ao ver a glamourização da pobreza em vestes e expressões, sobretudo dela mesma como a porta-voz de uma classe trabalhadora: teria sua parte da família sido alijada da herança da Andrade Gutierrez? Leva-nos Petra a crer, de forma displicente e ligeira, que sim!
O que não nos conta Petra, por exemplo, é que classe média é uma ova: sua mãe, vestida sempre como uma humilde senhorinha quase hippie, sem maquiagem, em trajes de flanela, é uma multimilionária sócia-acionista do conglomerado de empresas do Grupo Andrade Gutierrez, além de ter vastos investimentos na pecuária e em outros mercados. Ainda, não é alguém que meramente tem identificação com o petismo por ter lutado contra a ditadura: financiou, por exemplo, parte da campanha de Lula em 1989, chegando ao ponto de custear a cirurgia plástica da filha do ex-Presidente em Paris, emprestando seu apartamento durante a recuperação. Curiosíssima, aliás, essa classe média que tem apartamento em Paris! — pecado mortal, no caso de Fernando Henrique Cardoso. Foi casada, de quebra, com Luís Favre, por anos Secretário de Relações Internacionais do PT. Seu pai, Manuel da Silva Costa Júnior, cuja participação política a diretora faz tentar parecer que se resumiu ao tempo do regime militar, foi deputado federal pelo PMDB (olha só!) e serviu como secretário estadual do Planejamento no governo de Itamar Franco em Minas Gerais (1999-2003).
Se a fraude é a epítome da parte autobiográfica do documentário de Petra Costa, por que não seria a falsificação da verdade a principal tônica da parte que se pretende documento histórico? E, mais: a fábula sobre si, contada por Petra, para o espectador, é expiação ou crença? Vê-se como pobre? Vê o petismo como inocente? Vê a democracia em risco dentro da ótica que apresenta? Ou, deixa que todos os fios soltos sejam ligados por alguém mais arguto, para revelar a perspectiva da cornitude da realidade em vertigem?
A quem tenha mais do que quatro neurônios funcionais e queira economizar tempo, este é um texto guia, que desde já, dispensa da difícil obrigação de assistir a cento e vinte e um minutos de bobagens em desfile. Àqueles que tenham as funções cerebrais preservadas, todavia, mas que apreciam uma boa obra de comédia, referendo: o filme de Petra Costa desopila o fígado, entre gargalhadas e fancarias. É um filme trash que já nasceu célebre e merece figurar junto a outras obras-primas do cinema brasileiro, como Um Pistoleiro Chamado Papaco (1986).
Num só parágrafo, é possível sintetizar o documentário: uma grande conspiração envolvendo os americanos, interessados no pré-sal; os grandes bancos, interessados em derrubar a Presidente que mais diminuía juros bancários na história (risos!); a direita fascista e conservadora do PMDB, que representa as oligarquias no país, sob o comando do tradicional oligarca Michel Temer, cuja família se perpetua no comando da nação desde os tempos das capitanias hereditárias (esqueça que são imigrantes libaneses, por favor); e pela bancada do boi e da bala, sintetizada em Jair Bolsonaro, cujo objetivo é impedir que pobres andem de avião e filhos de empregadas domésticas, principalmente os pretos e pardos, frequentem universidades públicas; juntos, de mãos dadas, conspiraram para enfiar Lula na cadeia. Essa conspiração, aliás, tem ocorrido em verdadeiro conluio com a abjeta classe média que se crê rica, mas que pobre de direita é, desde junho de 2013. Houve corrupção nos governos do PT, é claro, mas não tanto quanto nos outros. E o que seria, afinal, esse dinheirinho roubado perto de tantas conquistas sociais, com milhões de cidadãos (não de reais; esses, eram bilhões) saídos da pobreza? E era essa corrupção tão perigosa perto da implantação do IV Reich no Brasil por Bolsonaro? Fim.
A vida real é bem diferente, todavia, dos delírios lisérgicos de Petra Costa.
Não é preciso dizer, por exemplo, que essa fixação com o petróleo e os americanos não apenas é doentia, como fruto da maluquice típica dos regimes autoritários. É a escusa básica, por exemplo, da ditadura chavista para tudo que acontece na Venezuela.
Nem é preciso dizer, também, que os interesses dos ricos convergiram com o dos pobres no impeachment de Dilma: enquanto a economia brasileira se escangalhava em crise e retração, uma massa de treze milhões de desempregados surgia como fruto de sua errática política econômica.
Soa muito mais como piada, de sua parte, dizer que o PMDB é fascista, oligárquico e conservador. Logo o PMDB, partido que elegeu o pai de Petra Costa deputado federal. Logo o PMDB, que fez oposição ao regime militar. Logo o PMDB, que é um grande conglomerado, um big tent, que acomoda e sempre acomodou todas as tendências e interesses políticos, da extrema-esquerda à direita. Pior é pretender chamar Michel Temer de oligarca: alguém que não tem família na política, que se elegeu por mérito próprio, que soube fazer-se, e que não herdou grande fortuna. É não saber distinguir, na verdade, conceitos básicos: nem todo corrupto é oligarca; nem todo fascista é oligarca; nem todo conservador é oligarca; nem todo partido que se choca com os interesses de Lula é oligarca.
Todos ficamos, nas últimas semanas, estarrecidos com as revelações feitas pelo site The Intercept, a respeito da conduta de Sérgio Moro enquanto juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba. É óbvio que seu juízo, no caso Lula, foi completamente parcial. Isso não apaga, todavia, o fato de que comprovadamente o ex-Presidente da República é ladrão, vendeu Medidas Provisórias, vendeu seu governo para empreiteiras (como a Andrade Gutierrez, de quem é uma das donas a mãe de Petra Costa), defecou solenemente para a sociedade, e pretendeu comprar o Parlamento através do Mensalão e outros meios espúrios.
Nem as revelações da JBS, por exemplo, mudam o fato de que Dilma Rousseff foi chutada para fora do Palácio do Planalto por realmente cometer crime de responsabilidade fiscal. Ou, que, enquanto Presidente da República, cultivou a pior relação possível com o Congresso Nacional, recusando-se a receber senadores e conversar com deputados federais na iminência de sofrer impeachment, evitando ser apeada do poder pela negociação. Nem que, enquanto administradora, praticamente destruiu a economia de um país, deixando a conta para os próximos três ou quatro presidentes. E que se envolveu pessoalmente em corrupção, como no caso do Petrolão, que contou com a participação ativa de empreiteiras como a Andrade Gutierrez, grupo empresarial de que é uma das donas a mãe da documentarista.
E, o pior: nada muda o fato de que Jair Bolsonaro foi construído como o adversário ideal pelo PT. Que o PT, aliás, na sua sanha hegemônica, tentou destruir todas as candidaturas viáveis contra o atual Presidente, na tentativa de viabilizar a patética pauta lulalivrista como a principal de campanha. Nem que ao PT interessava — como atestou Breno Altman, petista incurável — ter Bolsonaro no segundo turno. Ou que, no fim das contas, o cenário atual, com Bolsonaro na presidência, era o presente perfeito para que o partido mantivesse sua narrativa.
Petra Costa, é claro, prefere surfar ao largo da verdade e manter sua narrativa. Por isso, entrega-nos, para choros comovidos de Caetanos da vida — o muso de Santo Amaro jamais decepciona! — essa paródia de filme, misto de peça de ficção e propaganda. Deu no que deu.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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