Entre o partido e as ruas: dilemas e saídas do governo Bolsonaro

por Luiz Ramiro (07/06/2019)

Não serão os caciques políticos e tampouco os generais que demandarão um partido para a renovação política, pois esses já possuem os seus.

por Luiz Ramiro e Gabriel Rocha Guimarães*

Uma nova situação política veio à tona com a vitória de Jair Bolsonaro nas Eleições de 2018. Como uma onda o “Bolsonarismo” quebrou as expectativas políticas dos mais conhecidos partidos e líderes. Não se tratou de um trabalho de organicidade e previdência, mas de algo aleatório, a partir de redes sociais difusas. A superação sobre partidos tradicionais, o desdém com relação a ataques ferozes da grande mídia e de formadores de opinião, o enfrentamento ante oódio da esquerda, a conquista de apoio popular mesmo com recursos muito aquém dos concorrentes, e, ter sofrido uma tentativa de assassinato diante da multidão: isso tudo esteve no pacote do “anti-frágil” Bolsonaro.

O impacto do azarão que atingiu o ápice, contra tudo e contra todos, ainda está a ser compreendido pelos intérpretes. Pelo menos dois ciclos foram quebrados: (i) o do condomínio partidário entre PSDB e PT – temperado pelo PMDB, e (ii) o constitucional. Os partidos que dominaram a Nova República desde a reabertura democrática já não contam com o mesmo poder e nem mesmo voltarão a tê-lo daqui para frente. A Constituição de 1988, por seu turno, está em frangalhos e com a sua salvaguarda institucional, o Supremo Tribunal Federal (STF), entre as instituições mais desmoralizadas e atacadas do país.

Por outro lado, se Bolsonaro surge com o apelo social, não contava (e ainda não conta) com um elemento singular da organização política: um verdadeiro partido. Para se candidatar foram várias idas e vindas entre uma agremiação e outra. Chegou a namorar o Patriotas, mas acabou noivando o minúsculo PSL, cujo “boss”, Luciano Bivar (PE), expurgou a ala mais libertária (Livres) e abriu alas para o então deputado federal pelo Rio de Janeiro ser o candidato do partido às Presidência da República em 2018. Ou seja, Jair Bolsonaro precisou se arranjar num partido de aluguel, cuja articulação nacional ficou a cargo de uma das figuras mais estranhas do “bolsonarismo”, e que depois se mostrou suspeito de traição, o advogado carioca Gustavo Bebbiano, gerente dos candidatos do PSL e com fundamental intervenção na escolha do vice-presidente, preterindo o “príncipe”Luiz Philippe de Orléans e Bragança, para escolher o general Hamilton Mourão.

Um governo sem partido

Como toda onda, o “Bolsonarismo” não só arrasou opositores, como também trouxe parte da velha (e da nova) sujeira. Aproveitadores e ineptos foram alçados aos mais altos escalões da política nacional. Pessoas até então desconhecidas logo se tornaram deputados estaduais, federais, senadores e até mesmo governadores. Atualmente, o PSL compõe uma das maiores bancadas da Câmara Federal com 54 deputados[2], ainda no Legislativo nacional são 4 senadores, e nos estados foram 3 governadores e 76 congressistas estaduais.

É inegável o sucesso do transbordamento da popularidade social à arena institucional. O próprio Jair Bolsonaro calculava que teria entre 20 e 30 deputados eleitos pelo seu novo partido. O resultado do primeiro turno trouxe a grata surpresa: quase o dobro da estimativa máxima. No entanto, assim que a vitória foi consolidada no segundo turno, os problemas de um novo governo apareceram. Bolsonaro não tinha trânsito institucional, embora já fosse um nome nacionalmente conhecido há pelo menos 4 anos. De um lado, jamais esteve integrado ideologicamente a um partido, fazia parte do “baixo clero”, atuava num pequeno reduto legislativo – a defesa do direito dos militares e policiais, e, sempre esteve marcado pela extravagância e pelo isolacionismo irreverente. Por outro, se tornou o líder das ruas, aquele que paralisava aeroportos e em cada rincão do país impulsionava carreatas em verde e amarelo. Toda a campanha de 2018, com o PSL e diversos partidos e candidatos avulsos atrás, foram caudatários do nome “Bolsonaro”. Apesar da inflação do nome, o conteúdo partidário parecia oco: faltava uma amarra teórica, um livro ou um pensador que identificasse e unificasse o partido. No máximo poderia se mencionar o filósofo Olavo de Carvalho, mas nem assim lograva unificar todo o bolsonarismo, e nem mesmo o PSL em torno de suas ideias. O fato é que até hoje o partido do governo se resume a mais a um grupo de Whatsapp do que a uma agremiação partidária.

Desde o iniciou, em 1º de janeiro de 2019, o governo Bolsonaro se arrasta, sem lograr até o meio do ano a aprovação das reformas mais importantes. O principal motivo é a indisposição com as lideranças congressuais, afinal o governo tem evitado se curvar aos sabores da chamada “velha política” – marcada pelo presidencialismo de coalisão, o “toma lá dá cá”, o suborno para votações legislativas e a troca de cargos ministeriais e de outros escalões apenas pelo preço político, sem viés técnico. Ao contrário de seguir essa sorte de hábitos viciados, os ministérios foram montados majoritariamente a partir de especialistas nas áreas de atuação, e com nomes que de modo geral não tinham trânsito dentro da corriqueira política praticada em Brasília.

Era previsível que as reações seriam grandes, intermitentes e diversificadas. Esquerdas, universitários, intelectuais, jornalistas, sindicalistas, partidos de oposição e mesmo integrantes da nova situação, se esperneiam pela retomada do status quo anterior – alguns por não compartilharem com o plano de governo vencedor e outros por pura canalhice. O desconforto é ainda maior porque a estratégia do governo não é reconhecida pelos políticos, tampouco pelos analistas. Se todos estão perdidos, teme-se que o próprio Bolsonaro não tenha plano algum para uma articulação alternativa a da “velha política”.

Ainda no período de campanha um dos argumentos a respeito do trato de um futuro governo Bolsonaro com o Congresso compreendia a atuação junto a “bancadas”. Mais do que aliar-se a partidos, o governo criaria vínculos com essas bancadas, como a da Bala, da Bíblia, do Agronegócio, e dessa maneira criaria uma fórmula para enfrentar a oposição entrincheirada nos partidos. A estratégia não teve vazão pela própria falta de coordenação do PSL, que enquanto base do governo se organizou como partido, e não dentro dessas bancadas.

A segunda hipótese de ação do governo no Congresso é a da “abstinência”. O governo parece agir como alguém que lida como um viciado em crack: retirando tudo que possa ser instrumentalizado ao vício, deixando a pessoa em estágio de abstinência, e, por conseguinte, de desespero e ira. O habitual da política feita em Brasília, sobretudo por parte do “Centrão”[2], e que se espraia por todo o país, é perniciosa, regada a verbas nababescas, cargos comissionados, dinheiro público desviado, suborno, tráfico de influência e toda sorte de corrupções. Quando surge uma quebra com essa expectativa, com essa sistemática de intercâmbios, o efeito é o do adicto que não encontra meios de suprir o seu vício. O governo, por sua vez, resiste e não cede, pois sabe que se o fizer se torna cúmplice. Daí Jair Bolsonaro dizer que não pretende repetir a fórmula dos presidentes anteriores,que terminaram com a prisão decretada por envolvimento em esquemas de corrupção, como ocorreu com Lula e Temer.

Mesmo que essa seja uma estratégia, ela é manca, serve para inibir os inimigos e falsários, mas também pode afastar o trânsito com os aliados. O governo pode se tornar tão puritano e draconiano que nem mesmo aliados se sintam confortáveis em dialogar, sob pena de serem tachados de “velha política”.

Outras três colunas de sustentação do governo, e que poderiam ser imbatíveis, têm sido fustigadas sem conseguir pressionar os deputados e senadores a agirem em consonância com o governo. Primeiro, a continuidade da Operação Lava-Jato, cujo principal nome, o ex-juiz federal Sérgio Moro, foi integrado ao novo governo como ministro da Justiça e Segurança Pública. Esperava-se que a “revolução lavajateira” seria de pronto turbinada, ganhando agilidade e eficiência, fazendo com que os políticos opositores às transformações em prol da sanidade política do país fossem expurgados. Porém, como a operação perdeu a razão de ser para parte da classe política, não era defendida com a mesma ênfase em Brasília e sofreu revezes cada vez maiores no STF, que em seu contumaz antagonismo reverte as ações de primeira instância, expedindo recorrentes Habeas Corpus a políticos e empresários. Ademais, o próprio Sérgio Moro se apresentou menos político do que se imaginava, e sob forte pressão nem mesmo conseguiu dar andamento ao Pacote Anticrime, que corresponde a uma das principais demandas da sociedade brasileira em prol da superação da impunidade no país.

A segunda coluna corresponde aos militares das Forças Armadas que ocupam em boa medida os mais variados ministérios e o próprio entorno de Jair Bolsonaro. Contudo, o projeto político dos generais que estão no governo não é o mesmo do presidente eleito. Há um evidente desconcerto quanto ao horizonte político, pois as correntes que geraram o sucesso nas eleições de 2018 não compartilham com o propósito de estabilização e acomodação pretendidos pelo generalato que está no governo, como Santos Cruz, Rego Barros, e, o mais dissonante de todos: o vice Mourão, que cotidianamente acena à oposição e aos partidos de centro-direita como opção no lugar de Bolsonaro.

A terceira sustentação institucional do governo seria o próprio PSL. Caso solidificasse os 54 deputados, e reunisse os apoiadores das reformas que são de outros partidos de centro-direita, como o Novo, formaria de fato um bastião importante à consolidação do Executivo federal. Contudo, isso não acontece justamente pelos motivos já apresentados aqui, da confusão e descontrole do PSL.

Carente de traquejo político e de trânsito pacífico junto ao Congresso, o governo sofre até mesmo com as tarefas mais pragmáticas. Se não bastasse, o bolsonarismo acaba não logrando apresentar um projeto de fundo, de longo prazo. Do complexo de grupos que fazem parte ou influenciam esse governo, raros apresentam algo nesse sentido. Os militares parecem mais reativos do que propositivos, os lavajateiros se limitam ao discurso anticorrupção, os evangélicos não expressão um projeto pré-definido, mas se alinham em pautas unificadoras (como contra o aborto). Restam os conservadores afiliados às ideias de Olavo de Carvalho e os liberais de mercado.

Os primeiros encarnam uma perspectiva de transformação sob o viés de uma “revolução brasileira”, do “povo” contra o “estamento burocrático”, numa reedição de argumentos de Raymundo Faoro, com o cabedal de análises do filósofo radicado na Virgínia que repercute as ideias de Gilberto Freyre, Miguel Reale e Mário Ferreira dos Santos. Mais do que isso, o “Olavismo” propõe uma transformação à luz das revoluções coloridas que surtiram efeito nos países da antiga Cortina de Ferro. Porém, esse flanco ideológico é menos forte e coeso do que parece, e não logra atingir setores institucionais com a mesma força que tem nas redes sociais. Talvez seja uma influência que mesmo incapaz de converter ideologicamente os setores do governo, deixará efeitos no tempo, com um exército espontâneo de influenciadores digitais, e a profusão de publicações que repercutem na opinião pública, adentrando até mesmo o ensimesmado meio universitário brasileiro.

Já os liberais de mercado, encabeçados pelo ministro Paulo Guedes, trazem no bojo das reformas da Previdência e nas demais que estão sendo apresentadas, uma proposta de transformação da realidade nacional. O objetivo é superar a estrutura burocrática e cartorial do Estado brasileiro, com o estabelecimento de uma economia liberal, empreendedora,próxima do paradigma norte-americano. Assim como os conservadores, esses liberais estavam no ostracismo político há mais de três décadas, e viram em Bolsonaro uma chance de emplacar no Brasil uma sociedade aberta e de mercado. É certo que a ideia não é nova, e se tornou palatável a partir da própria popularidade do economista Paulo Guedes e da miríade de empresários, líderes sociais e influenciadores digitais que requerem essas transformações. Porém, o “casamento” de Guedes com Bolsonaro pode ser igual a relação do sapo que atravessa o escorpião nas costas: assim que passar as reformas e destravar a economia os liberais de mercado se tornam dispensáveis no governo, retomando a natureza do militarismo do presidente e de um conservadorismo brasileiro que se utiliza do Estado para organizar e reformar estruturalmente o país. Em sua vida particular Bolsonaro já se divorciou algumas vezes, na vida política já trocou de diversos partidos, não é difícil pensar noutra separação, logo que for conveniente.

Por que o governo precisa de um partido?

O quadro atual é desolador: o PSL não é confiável, o lava-jatismo não consegue se segurar sem apoio político, o Congresso não se comporta primordialmente por bancadas, os militares (generais da cúpula) não estão em sincronia com a “nova política” que elegeu o presidente, e, os demais grupos que compreendem a nova situação não estão preparados para conduzir, sozinhos, uma proposta partidária.

Acontece que o patamar de mudanças políticas atuais exige que haja uma maior conexão entre a política institucional e a chamada “política das ruas”, já que as ruas se mantém como um campo bastante ativado de disputas, havendo manifestações de proporções consideráveis, tanto contra, como a favor do governo de Jair Bolsonaro. As renovações e a disputa política acontecem tanto no âmbito institucional, quanto no social, e quando acontecem, pressionam o quadro institucional, não podendo se sustentar em governos intermitentemente radicais. Logo, requerem um canal de articulação com a base, ou no mínimo, algum tipo de resposta frente à política callejera. A ausência desse mecanismo tem sido a grande falha do novo governo, que se encastelou em Brasília e se olvidou dos apoiadores da base. Esse distanciamento só não é maior por conta das redes sociais.

A velha política e mesmo o universo dos militares de alta patente transitam ao largo da vida social, seja em “aquários” – como é Brasília, ou em “fortes-apaches” – como são alguns batalhões, quartéis e vilas militares. Daí a diferença de percepção de vida entre generais e a base das Forças Armadas (dos praças até alguns coronéis): enquanto aqueles estão alienados quanto ao efeito das redes sociais, estes percebem o cotidiano, seus desafios e desconfortos. Portanto, não serão os caciques políticos e tampouco os generais que demandarão um partido para a renovação política, pois esses já possuem os seus.

São aqueles que advogam por uma nova política que precisam realizar essa tarefa. Não basta à “Nova Direita” essa gama de agrupamentos reais e virtuais, é preciso compreender que isso não basta, pois há um verdadeiro desfiladeiro entre a política na arena pública e na institucional. Um governo pode ser bem sucedido socialmente, mas quando cai na inépcia institucional corre o risco de morte, sem mesmo ser salvo pela popularidade. Até porque um ente político se pautar sobre o elemento “povo” é algo etéreo, contingente, e arriscadíssimo. Vargas sabia bem disso e substituía “povo” por “Brasileiros”.

O personalismo é outro tiro de morte, por mais renitente na política latino-americana. Definitivamente, a ponte entre as ruas e as instituições deve ser o partido, uma vez que os partidos políticos se mostram, em praticamente todo o mundo como a principal forma de vascularização das demandas sociais frente ao estado. Mesmo em regimes de partido único, pode-se dizer que isso ocorre, pelo menos em alguma medida. Se a compreensão democrática privilegia o ritmo intenso e transformador das bases, para que as instituições não sejam deformadoras de uma vontade expressa nas urnas e pela contínua pressão pública, a forma moderna de organizar esse sistema é através de um partido, que de alguma forma saiba absorver aquilo vem dos movimentos. Algo que ao mesmo tempo esteja sintonizado com as mudanças correntes e que atue dentro do âmbito Legislativo e Executivo, em algum grau, facilitando a comunicação entre ambos.

A relação entre política institucional protagonizada pelos partidos políticos e a política extra institucional protagonizada pelos movimentos sociais pode gerar toda uma sorte de resultados. Um movimento social pode conseguir forçar uma determinada agenda para dentro de um partido constituído e que ocupa cargos de poder apenas com manifestações de rua. Um partido político pode, cooptar membros de movimentos sociais para dentro de si sem se imiscuir estruturalmente com o próprio movimento. O contrário também pode ocorrer, membros de movimentos se filiam a partidos com o intuito de fazer o movimento presente no partido, sem também, que o movimento e o partido partilhem qualquer tipo de amálgama de caráter estrutural e organizativo.

Alguns casos que têm chamado muita atenção nas últimas duas décadas, em vários países, são aqueles em que o movimento social surge renegando frontal e explicitamente a arena partidária eleitoral, mas em um determinado momento decide lançar candidatos, mantendo, pelo menos durante algum tempo, o seu formato original de movimento social. Em alguns casos, eles obtém tanto sucesso que conseguem o chegar ao executivo nacional e ainda maioria no Congresso como foi o Movimento ao Socialismo (MAS) na Bolívia. Em outros casos, se estabelecem fomo uma força regional, como o Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik (MUPP) do Equador. Alguns dos primeiros partidos de inspiração socialista da Europa ocidental surgiram dentro desse prisma, como o Partido Trabalhista Britânico, e a Seção Francesa da Internacional Operária. Esse tipo de força política pode ser chamado de “partido-movimento”, um movimento social que se transforma em um partido em um momento em que ainda se encontra no formato de um movimento. A esmagadora maioria desses fenômenos (se não todos), pelo menos em um contexto sulamericano, se encontra no campo das esquerdas, de maneira que, chama a atenção como no Brasil, nos últimos anos, um ambiente favorável à gestação de uma experiência semelhante no campo das direitas surgiu.

Mas o que é de fato um partido-movimento?

A ideia de partidos políticos existe desde a antiguidade clássica, perpassando todo o período medieval europeu, no sentido de que se toma “parte” de algo, de algum projeto, de algum objetivo. Entretanto, em linhas gerais, a atividade “partidária” era algo restrito a um número limitado de pessoas, fosse nas antigas cidades-estado gregas, fosse nas guildas e assembleias medievais. Foi o advento da modernidade que trouxe consigo a possibilidade de que cada vez mais atores políticos e setores componentes da vida social, em uma determinada unidade político-territorial, pudessem ter acesso e participar da vida política de uma forma mais ampla, ativa e aprofundada. A fórmula de inclusão das massas na vida política que mais parece ter se consolidado na maior parte de países do mundo é a dos partidos políticos.

Com o desenvolvimento do processo democrático e a difusão da ideia de “participação”, além da crise de representação política, há o surgimento dos “movimentos”. Inicialmente foram organizações sociais que levavam demandas aos poderes constituídos, tendo pouca ou nenhuma representação dentro desses poderes. A partir da familiaridade com as estruturas de poder as pautas passaram a mirar fins políticos, tornando esses movimentos mecanismos de ação e representação. Eis o embrião dos partidos-movimento.

Trata-se de uma forma de organização alternativa aos tradicionais partido que tiveram origem no século XIX. Ao invés de estruturas rígidas, piramidais, burocráticas, a tendência dos partidos-movimento é o contágio com os anseios constantes da sociedade e a criação de demandas e visões de mundo junto a esses anseios. Em geral forma-se primeiro um movimento, com alguma bandeira principal, uma pauta unificadora. Posteriormente, com a entrada na arena política,saem da esfera meramente social e se tornam francamente políticos, se institucionalizando diretamente como partido[3], concorrendo eleitoralmente por cargos, posições e poder público. O próprio PT no Brasil sempre buscou ser um “partido em movimento”, contudo na prática e, sobretudo no poder, esteve mais para uma incubadora de diversos movimentos de esquerda, com uma estrutura organizacional que gradativamente foi se engessando e burocratizando, sobretudo a partir de 2002. Um exemplo do lado mais “movimentalista” do partido que funcionava dentro do próprio PT era o MST.

Apesar das esquerdas terem sido proeminentes na evolução dos partidos-movimento, como no caso do MAS na Bolívia, que se tornou partido e há décadas comanda a nação andina, o que mais chama a atenção e cabe ao caso aqui analisado é a evolução à direita dos partidos-movimento. Na Itália o Movimento 5Stelle foi um dos mais proeminentes nesse processo, e hoje tem presença marcante no governo aquele país. No Brasil, o MBL se caracteriza como uma experiência de movimento à direita, que apenas não fundou um partido próprio, mas está acoplado dentro do DEM como uma bancada diferenciada. Aliás, a relação entre o MBL e o DEM é análoga ao do MST com relação ao PT.

O que é digno de nota é que o MBL, junto a outros movimentos de direita no Brasil que tem como parte central do seu repertório de ação as manifestações de rua, teve a chance de criar um partido diretamente originário dos movimentos sociais, um partido-movimento com pautas liberais de mercado e mesmo conservadoras, o que é algo raro. O escritor socialista britânico G.H Wells, autor de “A máquina do tempo” afirmava que na Inglaterra, as organizações socialistas e sindicais protagonizavam a política de rua, assim como as manifestações de massa, porque estavam ligados a pautas abrangentes e amplas, que visavam a construção de um mundo menos desigual e com maior liberdade para todos. Os conservadores não conseguiam tal façanha porque, supostamente, estavam contra esse mundo mais igualitário.

Os liberais, por sua vez, se ligavam a “pequenos” temas do universo cotidiano, como administração e gestão das finanças do estado e de órgãos estatais, os aspectos mais econométricos da vida econômica, aquelas coisas que são feitas através de “continhas” ligadas a pequenas melhorias da vida cotidiana e comum. Por essas razões não havia nesses grupos a ânsia por justiça nem a energia que levavam trabalhadores de fábricas, pequenos artesão e trabalhadores agrícolas às ruas manifestar às autoridades como enquadravam o seu mundo e sua vida de uma forma mais ampla, sustentados por grandes e amplos temas[4]. Em suma um enquadramento de mundo comum que desse coesão a organizações heterogêneas que muitas vezes estão voltadas para conjuntos de atividades que passam ao largo da vida propriamente política, mas podem se voltar para ela, as pequenas agências de micromobilização.

No caso da direita brasileira, o fato marcante é que surgem manifestações de grandes proporções, voltadas em certa medida, justamente para essas pautas que Wells via como demasiadamente frágeis para levar as pessoas às ruas. Entretanto, essas pautas foram sendo cada vez mais debatidas sobretudo nas redes sociais, internet e grupos de whatsapp, sendo capazes de arregimentar grande quantidade de pessoas rumo a manifestações de rua. As redes sociais constituíram algo que está na base dos partidos-movimento, as agências de micromobilização, esferas de interação social que servem, em um determinado momento, de base para ações rumo a um universo eminentemente político. No Brasil, o sentido foi nesse mesmo, de uma agência de micromobilização virtual para manifestações de rua de peso muito considerável.

Micromobilizações e a teoria do enquadramento nos partidos-movimento

Micromobilização e enquadramento estão no centro do eixo interpretativo do partido movimento. São fenômenos que se intercruzam na conformação de movimentos sociais que, por sua vez se tornam partidos apresentando um estilo próprio, os quais fizeram parte da formação dos primeiros partidos de massa da aurora da era industrial moderna, porém com um maior leque de conteúdos e diferenças substantivas.

Por enquadramento nos referimos a ligações de orientações interpretativas entre indivíduos e Movimentos Sociais, tal como alguns conjuntos de valores, crenças e interesses individuais. O termo “enquadramento” denota “esquemas de interpretação” que permitem aos indivíduos localizar, perceber, identificar, e rotular ocorrências no seu espaço de vida e no mundo de forma mais ampla. Ao dar significado a eventos e ocorrências o enquadramento funciona como organizador da experiência e um guia de ação, seja ela individual ou coletiva.

No caso do seu enquadramento ideológico, os partidos-movimento guardam algumas semelhanças com a esquerda “pré-marxista” do século XIX, uma esquerda que ainda reunia todos os descontentes das sociedades europeias, com sindicalistas, nacionalistas, alguns grupos religiosos, lumpen-proletariado, todos podendo estabelecer algum tipo de enquadramento comum. Para Robert Paxton, antes de ser disciplinada pela ideologia marxista[5], a esquerda podia ser nacionalista, diferentemente da esquerda de inícios do século XX, que já enxergava o nacionalismo como uma nítida expressão da hegemonia burguesa[6]. O socialismo marxista tornou se, por algumas décadas o principal enquadramento dos partidos e movimentos de esquerda em várias partes do mundo.

Definitivamente, há um grande desafio na conformação da direita brasileira, visto que, seja dentro das instituições formais de governo, seja nas manifestações há um problema quanto ao enquadramento. Como visto nas mobilizações do dia 26 de maio, em apoio às reformas do governo Jair Bolsonaro, há uma difusão de apoiadores do novo establishment, que não estão canalizados num partido que os aproxime do governo e dos parlamentares da base aliada. Há de fato um problema quando ao enquadramento, seja nas ruas, seja na consolidação de alianças e bancadas dentro do Congresso. Existem os grupos que se debruçam sobre um liberalismo de tipo britânico que requer mais liberdade de mercado, menos impostos, menos estatismo. Há um grupo que por si só já é bastante difuso, sendo chamado vagamente de “conservadores”, que acopla evangélicos e católicos tradicionais, são aqueles que batem frontalmente contra as agendas oriundas do que nos debates públicos ficou conhecido por “marxismo cultural”. Por fim há aqueles grupos mais ligados aos militares, que apelam até para uma maior presença das forças armadas na vida pública e se concentram, na maior parte das vezes, no tema da violência urbana. Existe um problema entre esses grupos, no que se refere à criação de um eixo comum que faça com que essa nova direita brasileira que surge, tenha um conjunto de demandas considerado por todos os grupos como imprescindível.

Poder-se-ia dizer que o que uniu de fato esses grupos foi apenas o antipetismo, e que teria alcançado seu ápice em 2015, aparentemente o timing ideal para a criação de um partido-movimento de direita, o que não ocorreu. Todavia as últimas manifestações do dia 26 mostram que não se trata bem disso, ou pelo menos somente disso, uma vez que os movimentos mostraram que continuam capazes de fazer algo próximo a 2015. Ainda assim, as dificuldades ligadas ao tema do enquadramento permanecem. Os manifestantes defendem algumas pautas específicas, contrariando a ideia de H.G. Wells, mas ainda não estabelecem uma visão de mundo em comum que perpasse todos os movimentos do campo da direita, o que ressoa na reformulação interna do PSL, que deveria ser feita pelo presidente e seu staff.

Mas afinal, o que unifica a popularidade de Jair Bolsonaro?

Para responder a essa pergunta é preciso lançar outra: Bolsonaro será capaz de renovar a era política brasileira? Se até hoje convivemos em boa medida com a “Era Vargas”, que desde os anos 1930 molda o espectro político nacional, das relações trabalhistas, das expectativas econômicas e da atuação do Estado nacional, é possível conjecturar uma quebra definitiva com essa quadratura político ideológica?

Isso é pertinente pois a força do Bolsonarismo se mede pela capacidade do líder político e da organização política que dirigir em agir com um “Bonaparte”: aquele que media os ímpetos revolucionários, estabiliza as transformações e reinventa um status quo de acordo com a nova configuração. E tudo isso passará pela sua capacidade de reformular seu próprio partido e suas alianças parlamentares em função daquilo que lhe é demandado fora da política institucional.

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* Luiz Ramiro é doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ e professor no Tecnólogo em Segurança Pública e Social da UFF/CEDERJ. E-mail: [email protected]. Gabriel Rocha Guimarães é doutor em Sociologia pelo IESP-UERJ e pós-doutorando no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, realizando pesquisa sobre a Nova Direita Europeia e Norte-americana. E-mail: [email protected]

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NOTAS

[1]A maior bancada da Câmara é formada pelo Bloco PP/39, MDB/34, PTB/11), com 84 parlamentares no total, tendo como líder Baleia Rossi (MDB). A segunda é formada pelo PT, com 55 deputados, liderada por Paulo Pimenta (PT), e, a terceira é o PSL, com 54, liderada pelo Delegado Waldir.

[2]O “Centrão” é uma reunião de caciques políticos que procuram manter as trocas políticas de outrora. Em geral fazem parte dos mesmos partidos que estão mergulhados no polo passivo da Lava-jato, como PP, PR, PRB, SD e DEM, dentre outros. Trata-se do maior grupo do Poder Legislativo federal. O Centrão é uma espécie de organização de viciados, de “cracudos” prontos para depenarem o Estado brasileiro a fim de manterem seus poderes. O “chefe da boca”, e que reune esses sacanas, é o presidente da câmara Rodrigo Maia (RJ). A seguir o nome de alguns deles que podem ser citados como lideranças do “Centrão”: Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), Arthur Lira (PP-AL), Elmar Nascimento (DEM-BA), Marcos Pereira (PRB-SP), Paulinho da Força (SD-SP) e Wellington Roberto (PR-PB).

[3] Ainda que em geral, sejam muito dependentes das bases, mesmo depois que conseguem cargos nas esferas institucionalizadas da política.

[4] Não se quer dizer que esses atores políticos não estivessem preocupados com essas “pequenas” melhorias da sua vida cotidiana, nem que muitas vezes suas manifestações não fossem impulsionadas por problemas do cotidiano que afetassem inclusive, sua vida privada e familiar. Mas ao estabelecer um enquadramento que os levasse às ruas, esses grupos diversificados e heterogêneos o faziam mediados por uma interpretação de mundo traduzida através de grandes pautas, como direito, justiça e liberdade, por exemplo.

[5] Pode-se acrescentar o leninismo nesse processo de disciplinamento. Porque não foi apenas a hegemonização da ideologia partidária inspirada na dialética de classes e no socialismo científico elaborados por Karl Marx que esmerou os primeiros partidos socialistas rumo aos partidos comunistas formados posteriormente. Essa diferenciação se deu também no aprimoramento da estrutura organizativa do partido que passou de um conjunto de seções mais ou menos coesas (socialistas) para uma estrutura mais rígida e disciplinada formada por células ligadas a um centro dirigente (comunistas). Esse estilo organizativo foi criado por Vladimir “Lenin” Ulianov.

[6] Essa esquerda podia, às vezes, adotar um discurso nacionalista. Mas era sempre no sentido de utilizar o nacionalismo taticamente, sendo que o objetivo almejado era a revolução internacional, ou transnacional.

Luiz Ramiro

Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.

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