Dom Quixote não é um personagem genial por ser um arquétipo perfeito das loucuras vindouras, mas porque é uma resposta a esse arquétipo.
“We do not laugh at him[Dom Quixote] any longer. His blazon is pity, his banner is beauty. He stands for everything that is gentle, forlorn, pure, unselfish, and gallant.”
– Vladimir Nabokov, Lectures on Dom Quixote
Simon Leys confessa nunca ter entendido a má conotação que o adjetivo “quixotesco” adquiriu no imaginário moderno, porque o termo mais lhe parece um grande elogio do que uma ofensa ou um sinônimo de loucura¹. Ora, por mais irrisórias que pareçam ser as desventuras do personagem de Miguel de Cervantes, as suas atitudes não deixam de exprimir certa nobreza. E seria preciso muito esforço imaginativo para, por exemplo, imaginar que o Dom Quixote, diante do perigo iminente dos moinhos de vento, em vez de arriscar a vida partindo para o combate direto, cavalheiresco, optasse por mover um abaixo assinado virtual, levantar uma hashtag ou, à calada da noite, num surto de ânimo, quando os moinhos estivessem adormecidos, se pusesse a rabiscar, em tinta vermelha, entre mensagens e símbolos de ódio, talvez, alguns versos de músicas de protesto. Muito embora os moinhos de vento não fossem gigantes – e essa é, ao que parece, a opinião de Cervantes –, Dom Quixote teve skin in the game e os enfrentou como se o fossem, machucando-se no processo, em um gesto patético, sim, mas também admirável, capaz de convencer leitores dos séculos seguintes a tomarem o seu lado contra o dos coadjuvantes que o não levaram a sério, e até mesmo contra o do próprio escritor.
Fossem os carneiros realmente um exército, os moinhos realmente gigantes, o livro nos persuade que Dom Quixote os enfrentaria com a mesma disposição. Considerem: por trás de cada gesto patético do cavaleiro existe uma virtude admirável que nos é vendida junto do riso. Ainda que o Quixote invente problemas e obstáculos imaginários, ele não o faz como desculpa para evitar o perigo, mas para enfrentá-lo com ainda mais fôlego; não é idólatra, mas corajoso. E, por outro lado, nas sucessivas trapalhadas do Quixote, é testada uma perseverança quase ascética que o sustenta, firme e forte, sofrimento atrás de sofrimento, sem nunca desesperar, mesmo que a triste figura marque seu semblante: há um mundo em apuros e cabe a ele salvá-lo. Se é verdade que na ficção convencer o leitor de um vício é mais fácil do que convencê-lo de uma virtude – e o desafio fica ainda maior quando se tratam de virtudes teologais -, a solução engenhosa de Cervantes foi fazer o serviço pelo avesso, vendendo ao leitor um herói que dá provas de seus méritos apesar do pequeno detalhe de estar sempre em ocasião inapropriada, fora de lugar e de tempo.
Passam-se as páginas iniciais e o leitor vai percebendo que, afinal, aquilo que há de realmente singular em Dom Quixote não é sua loucura caricata – vício com o qual pode se identificar com facilidade, porque é constantemente culpado de aumentar problemas, de idolatrar deuses de barro, de se apaixonar por perfis fakes de nigerianos à procura de um green card, etc – mas a paixão que a anima e sustenta. Toda a piada do livro se revela como um espelho, porque rir de Dom Quixote é rir de si mesmo, mas um espelho envolto pela moldura simples, discreta, do exemplo. E o leitor, acostumado a comentar histórias sexuais obscuras na vida de celebridades, vê-se incapaz de questionar a pureza desse personagem em particular. Se antes debochávamos do personagem junto do próprio autor, ao fim do livro, começamos a nos perguntar se Cervantes não exagera e se Quixote merece tanto escárnio.
Dom Quixote não é um personagem genial por ser um arquétipo perfeito das loucuras vindouras, mas porque é uma resposta a esse arquétipo; o grande mérito de Cervantes, penso, não foi prever os vícios da era seguinte, mas antecipar que o herói dessa era não poderia se apresentar como um herói. E, ainda que não pudesse imaginar o quanto, Cervantes estava certo. A virtude tanto nos constrange que, ante o legado desse grande escritor, ante a sua estátua vandalizada, cá estamos nós, enfatizando falhas pontuais e inventando outras tantas. A todo custo, nos esforçamos para colocar o gênio em nossa frente, acuado, pronto para ser odiado, ou perdoado, pelo pecado de não ter sido tão moderno como nós; o transformamos em uma figura humanizada, com a qual é mais fácil de lidar, de elogiar entre parênteses longos, explicando que em seu tempo o contexto era outro, e que, caso relevemos seus pecados, ele pode ter algo a nos ensinar de interessante, de útil.
Dom Quixote é o primeiro herói sem pinta de herói (e melhor tradução não há para o grego areté). Ele não chega a ser um anti-herói, mas um herói genuíno, puro, só que fora de ocasião: o anti-herói consegue ser levado a sério, ser interessante, por causa dos vícios de que faz uso, mas nada ensina da velha nobreza; o Quixote, por sua vez, é capaz de inspirar sem ser respeitado. Ele surge-nos, à primeira vista, cambaleante, sem agredir nossa visão sensível, sem emitir clarão maior que o tolerável, permitindo que o olhemos de cima para baixo, mantendo os pescoços acomodados; um exemplo que se nos apresenta pelo avesso, uma reverência inaugurada pelo escárnio. E, por curioso que seja, é porque Dom Quixote está sempre no lugar errado e na hora errada que serve a todo lugar e a toda hora; seu arquétipo é onipresente, e sua lição, se não atemporal, urgente:
in the prision of his days
teach the free man how to praise.
/
mostre aos escravos ao dia
Como se reverencia ²
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NOTAS
¹ Ver o capítulo “Quixotism” no livro The Hall of Uselessness de Simon Leys
² Trecho final de “In Memory of W.B.Yeats”- W.H.Auden, em tradução minha
Pedro Almendra
Estudante. Vive em Teresina.
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